Por Felipe Faoro Bertoni e Diogo Machado de Carvalho
“Vícios do inquérito policial não contaminam a ação penal”: uma pilhéria dogmática e jurisprudencial que, malgrado o mau gosto, açula os mais incautos conservadores do processo penal brasileiro. Assim, “ceguinhos, nefelibatas e catedráticos”[1] defendem que, num passe de mágica jurídica, todo aquele veneno – inerente ao elemento de informação obtido nocivamente em âmbito de investigação preliminar – é facilmente dissipado (por um contorcionismo interpretativo) e manejado a bel-prazer pela acusação.
“É necessário que o discurso se faça. Inventam-se, então, obscuridades”.[2] Diante do (propalado) caráter endoprocedimental do inquérito policial e do (duvidoso) amparo discursivo das exceções às exclusionary rules – “independent source doctrine, good faith limitation, inevitable discovery excception, purget tainted limitation” e mais um punhado de estrangeirismos –[3] possibilita-se dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, legitimando fazer qualquer coisa contra qualquer um. Ou seja, a “sempre incólume” ação penal pode se embasar em atos administrativos irregulares (buscas e apreensões ilícitas, flagrantes preparados, interceptações telefônicas ilegais, confissões forçadas, etc.) que, de modo algum, haverá máculas no caminho processual.
Contudo, pensando o impensado, há que se começar a limpar as palavras da (mofada) dogmática processual penal, porque “a despoluição da realidade começa pela despoluição do discurso”.[4] Ainda que, efetivamente, o processo penal só nasça com o recebimento da ação, convém salientar que, desde a concepção, todo aquele material informativo que lhe serve de suporte deve ser democraticamente regulado. Com efeito, uma acusação com problemas congênitos – oriundos de uma má-formação investigativa – apenas carrega e reflete os seus imanentes defeitos ao longo do (e durante todo o) tempo.
De modo determinista, processo penal que nasce torto, nunca se endireita.
Para além do comezinho reducionismo, uma noção exata da complexa historicidade de um processo penal confere a possibilidade de apreensão (e revisão) de todos os atos já perpassados. Enquanto imbricada sucessão de etapas, o passado garante o presente; o presente legitima o passado.[5] Não há uma prova isolada, mas, sim, uma prova e sua história (cuja gênese, na maioria das vezes, remonta à investigação preliminar). Logo, do ponto de partida (policial) à linha de chegada (processual), o rastro probatório deve manter e ostentar a sua regularidade.
Outrossim, como se tortuoso labirinto fosse, a Constituição Federal oferece o único caminho investigativo a seguir. Desse modo, aqueles que imprudentemente saltam as barreiras (democráticas) impostas no afã irrequieto de alcançar mais rápido a (pseudo)verdade do crime, em algum momento, arcarão com a nulidade do trajeto escolhido. Não obstante os ferrenhos adeptos da yankee doutrina do caminho limpo – hipótese na qual a prova secundária (da original ilícita) poderia ser utilizada por supostamente percorrer um “caminho autônomo e lícito” -,[6] uma vez manchado o percurso probatório não há como purificá-lo.
Assim, em face da impossibilidade de se prolatar uma espécie de Decisão QBoa, com claros efeitos alvejantes, o dirty path (caminho sujo) investigativo deve ser todo refeito. Eis o preço democrático a se pagar.
[1] “Os ceguinhos, que servem à dominação por burrice e ignorância; os catedráticos, que a ela servem por safadeza; e os nefelibatas, que acabam fazendo a mesma coisa, por viverem nas nuvens” (LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar direito, hoje? In: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo (Org.). Introdução Crítica ao Direito (Série O Direito Achado na Rua –v. 01). 4. ed. Brasília: UNB, 1993. p. 23)
[2] BECKETT, Samuel. O inominável. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 08.
[3] “A noção de estrangeirismo, contudo, confere ao empréstimo uma suspeita de identidade alienígena, carregada de valores simbólicos aos falantes da língua que originou o empréstimo” (GARCEZ, Pedro M.; ZILLES, Ana Maria S. Estrangeirismos: desejos e ameaças. In: FARACO, Carlos Alberto (Org.). Estrangeirismos: guerras em torno da língua. 3. ed. São Paulo: Parábola, 2004. p. 15).
[4] SANT’ANNA, Affonso Romano de. A sedução da palavra. Brasília: Letraviva, 2000. p. 211.
[5] “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente” (BLOCH, Marc. Antologia da História ou ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 65).
[6] MOURÃO, Helena. O Efeito-à-Distância das Proibições de Prova no Direito Processual Penal Português. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, ano 16. n. 4, p. 614, out./dez. 2006.
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