By Roger Franchini; Ilustração por Daniel W.
O Roger Franchini é ex-investigador de polícia e escritor, autor dos romances policiais “Ponto Quarenta – a polícia para leigos”, “Toupeira – a história do assalto ao Banco Central”, “Richthofen – o assassinato dos pais de Suzane” e “Amor Esquartejado”. Se, assim como a gente, você também acompanha os blogs de denúncias internas da polícia e entende muito pouco, regozije-se as colaborações dele aqui no site.
Um helicóptero despeja bombas em lugares miseráveis. Poderia ser a descrição de uma magnífica passagem do filme Apocalipse Now, não fossem policiais militares de São Paulo os pilotos da aeronave e Jardim Brasil, zona norte da Capital, o cenário do espetáculo. Um estratagema de guerra aplicado à população civil para dispersar a patuleia que manifestava contra, ironicamente, a violência da própria PM.
A secretaria de segurança pública se defendeu, dizendo que não se tratava de napalm, mas somente bombas de efeito moral (sempre me vêm à cabeça um artefato que enfrenta a multidão com questões de abissal filosofia sobre sexo, religiosidade, o sagrado e o profano).
Com o aumento das manifestações populares este ano, o debate sobre o fim da violência da polícia se intensificou. E, com a mesma velocidade, concluiu-se que a característica militar das polícias ostensivas brasileiras seria a causa de tamanha brutalidade. O bordão “a PM é formada e treinada para combater o inimigo em uma guerra” tornou-se um argumento de questionamento proibido. Portanto, a solução seria sua desmilitarização.
O debate já começou errado. Até agora, pelo menos, não há um conceito satisfatório de “militarização” das polícias que justifique as mudanças pretendidas pela Proposta de Emenda Constitucional 51. A rígida hierarquização? A obediência às severas normas disciplinares poderia abalar a psique do soldado? Corre-se o risco de cuidar da febre com quimioterapia, por não se saber qual é a doença.
O superficial argumento de “má formação” do policial não sustenta. Fosse assim, bastaria trocar a grade curricular das academias. Na prática, as escolas policiais são instituições tão humanistas quanto qualquer outra. Aliás, uma piada comum para assustar recrutas é a velha “o que se aprende na academia deve ser esquecido nas ruas”. O problema é maior e mais vergonhoso porque envolve nossa responsabilidade. O escândalo da corrupção sempre está no outro, nunca em nós.
Para esclarecer o mito da militarização, entenda que o padrão mundial de segurança pública compõe-se de duas etapas: a primeira, ostensiva, que age preventivamente para evitar que o crime aconteça, patrulhando ruas de modo visível. Acredita-se que a mera sensação de sua presença é fator importante para que delitos não aconteçam. É essa a nossa PM. A segunda, entra em ação quando a primeira falha, ou seja, depois que o crime acontece. Esta, à paisana, é a policia responsável pela investigação que elucidará a autoria do crime, as polícias civis (ou federal, a depender da natureza do crime).
Afirmam que unir essas duas etapas em uma mesma instituição e torná-la “civil” seria o suficiente para o fim dos abusos. O consenso geral acredita existir uma ideologia inata de ódio e desumanização dos policiais militares contra o cidadão, fruto do ambiente castrense a que são submetidos. Será?
Nos países europeus, há corpos policiais responsáveis pelo policiamento ostensivo das ruas: as Gendarmaria, sendo a italiana Carabinieri a mais conhecida. Todas são independentes de outros órgãos policiais e, assim como nossas PMs, têm a estrutura de treinamento militar. Um enorme contingente de homens fortemente armados que, mesmo batendo continência, são um exemplo de instituição democrática.
Acabar com as PMs brasileiras significará, unicamente, apagar um nome pomposo. Porque permanecerá a proteção do cometimento de crimes por policiais quando o objetivo é combater o crime. Os governadores, autorizados pela opinião pública, incentivam a prática de desvios de conduta de seus polícias se o intuito for manter a ordem. Mas quando essa conduta é utilizada contra a classe média e seus usuais componentes, ela exige respostas rápidas para deixar de ser a vítima do problema, pouco se importando com seu grau de responsabilidade na questão.
As polícias brasileiras nunca foram órgãos a serviço do Estado, mas servem, tão somente, aos governos estaduais que as comandam. E os governos não são abstratos, como é o Estado. Ele tem identidade, cara e origem, nome e genealogia. A polícia que se deseja não pode continuar sendo o braço armado do governador para se manter no poder, blindando a ele e seus pares de escândalos e indiciamentos. Hoje, não há um PM ou delegado com bola no saco suficiente para registrar um boletim de ocorrência contra os membros do governo, por mais hediondo que seja o crime. Em troca, podem corromper-se com autorização velada.
Militar ou civil, enquanto autorizarmos que as polícias estejam submetidas aos humores do grupo que detém o poder, de nada importa se ela é formada em quartéis ou universidades. O gatilho da arma que dispara no Jardim Brasil é tão sensível quanto aquele que patrulha o Itaim Bibi.
Siga o Roger Franchini no Twitter: @franchini
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