Publicado por Rômulo de Andrade Moreira
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É indiscutível que a nossa realidade carcerária é preocupante. Os nossos presídios e as nossas penitenciárias, abarrotados, recebem a cada dia um sem número de indiciados, processados ou condenados, sem que se tenha a mínima estrutura para recebê-los e há, ainda, milhares de mandados de prisão a serem cumpridos Ao invés de lugares de ressocialização do homem, tornam-se, ao contrário, fábrica de criminosos, de revoltados, de desiludidos, de desesperados. Por outro lado, a volta para a sociedade (através da liberdade), ao invés de solução, muitas das vezes torna-se mais uma via crucis, pois são homens fisicamente libertos, porém, de tal forma estigmatizados que se tornam reféns do seu próprio passado.
Hoje, o homem que cumpre uma pena ou de qualquer outra maneira deixa o cárcere encontra diante de si a triste realidade do desemprego, do descrédito, da desconfiança, do medo e do desprezo, restando-lhe poucas alternativas que não o acolhimento pelos seus antigos companheiros. Este homem é, em verdade, um ser destinado ao retorno: retorno à fome, ao crime, ao cárcere (só não volta se morrer).
Bem a propósito é a lição de Antônio Cláudio Mariz de Oliveira: "Ao clamar pelo encarceramento e por nada mais, a sociedade se esquece de que o homem preso voltará ao convívio social, cedo ou tarde. Portanto, prepará-lo para sua reinserção, se não encarado como um dever social e humanitário, deveria ser visto, pelo menos, pela ótica da autopreservação." (Folha de São Paulo, 06/06/2005).
Este é o nosso sistema penitenciário. Há solução?
Alguns advogam há algum tempo a idéia da privatização das prisões.
Somos intransigentemente contrários à privatização das prisões pelos motivos adiante aduzidos:
Como se sabe, é exclusividade do Estado manter a ordem pública mediante o uso da força, quando necessário, pois, salvo em casos excepcionais como a prisão em flagrante ou o desforço imediato, não é permitido ao particular coagir outrem com o uso da força; de regra, tal munus cabe à Administração Pública.
“Se parece certo que o sistema de justiça criminal se abre numa ponta para a incorporação explícita da racionalidade econômica, na outra ele tende a ser cada vez mais condicionado pela racionalidade do sistema político, que não por acaso passa a girar na dinâmica do governo pelo crime. Inflação normativa, conceitos jurídicos indeterminados e políticas draconianas para polícia, tribunais e prisões reforçam-se mutuamente como mecanismos de captação de dividendos eleitorais e figuram no centro do novo senso comum criminológico. Pela via do populismo penal, o governo pelo crime converte-se em arena de vocalização de medo, insegurança e ressentimento em tempos de violência-espetáculo e apartheid social. Note-se que o bode expiatório da “guerra ao crime” e da hiperpunição confere uma espécie de sobrevida irracional a sistemas políticos crescentemente esvaziados pela unidimensionalidade dos discursos e programas partidários, pela volatilidade indiferente que marca o intercâmbio das agendas e práticas institucionais entre administrações distintas, pelo circuito fechado dos arranjos neocorporativos entre os donos do dinheiro e os do poder, pela gansterização dos partidos, pela desterritorialização das arenas decisórias, pelo paradoxo da regulação da desregulação e pela substituição da gramática dos direitos do cidadão pelo melhor interesse do consumidor. O direito penal seletivamente mínimo da época anterior tende a assumir cada vez mais a forma de um contradireito penal máximo, que normaliza práticas punitivas incompatíveis com princípios elementares do Estado de Direito, na lógica de um direito penal do inimigo que se expressa emblematicamente na legalização da tortura, mas também na introdução de categorias jurídicas indeterminadas nos ordenamentos e no afrouxamento de garantias processuais em nome de um ideal de eficiência punitiva. Inserida nessa constelação de mudanças de largo alcance, a política de privatização do sistema penitenciário revela-se como uma figura central do estado de não-direito contemporâneo, em que a velha barbárie punitiva da periferia parece se realizar cada vez mais na novíssima regressão penal do centro.”
Assim, difícil é se admitir que seja delegada à iniciativa privada a possibilidade de ter sobre o homem o poder de sua guarda. Até do ponto de vista do Direito Administrativo isto não é possível. Analisando a questão sob este prisma, assim escreveu Ercília Rosana Carlos Reis:
“A execução penal, como vimos, não pode ser delegada a particular. As modalidades contratuais existentes hoje dentro da esfera da legislação administrativa não podem ser aproveitadas pelo programa de privatização, principalmente se o mesmo permitir que o particular aufira lucro e ainda se reembolse dos gastos com a construção de presídios através do trabalho dos presos. Essa forma de pagamento à empresa privada nada tem a ver com as que estão previstas na Lei de Licitações e Contratos hoje em vigor.”
No mesmo sentido, Rita Tourinho:
“Ocorre que a transferência da administração de presídios à iniciativa privada, na forma que vem sendo praticada, fere princípios básicos da Administração Pública, conforme demonstrado. Ademais, não se pode permitir que a incontrolável criminalidade que cresce no País, por motivo que não nos cabe analisar neste trabalho, transforme-se em instrumento de grandes negócios para influentes empresários”, cabendo “ao Ministério Público, no exercício de suas atribuições constitucionais, adotar medidas voltadas a impedir a proliferação de terceirização de presídios, contrária ao nosso ordenamento jurídico.”
Aliás, já em 1955, a Organização das Nações Unidas, a ONU, em um documento que foi chamado de “REGRAS MÍNIMAS PARA O TRATAMENTO DOS RECLUSOS”, no seu item 73.1, orientava:
“As indústrias e granjas penitenciárias deverão, preferivelmente, ser dirigidas pela própria administração, e não por contratantes particulares.”
Demonstra-se, com este documento, que a preocupação com a privatização das penitenciárias não é de agora.
Dois anos depois, em 1957, o Professor Oscar Stevenson, em um Anteprojeto de Código Penitenciário que apresentou, na sua Exposição de Motivos, afirmou com salutar propriedade:
“Veda-se, por outro lado, a locação do trabalho dos recolhidos a empresas privadas. A enterprise, ou contract system, a direta sujeição do recolhido a contratantes particulares é sistema que a experiência condenou.”
Destarte, os responsáveis pela administração de um sistema penitenciário devem ser primordialmente funcionários públicos, cidadãos pagos pelos cofres públicos e que exercerão uma função exclusiva da administração pública.
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