A TODA PROVA
Indique o instrumento normativo que prevê normas de sobredireito para a solução de conflitos de normas internacionais de direitos humanos(Prova discursiva do VI Concurso Público para provimento de cargos do Quadro de Pessoal dos Serviços Auxiliares da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul).
A Fundação Universidade Empresa de Tecnologia e Ciência — Fundatec — formalizou o seguinte problema aos candidatos ao cargo de assessor jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul na prova discursiva do VI Concurso Público para provimento de cargos do Quadro de Pessoal dos Serviços Auxiliares do Órgão, aplicada em 6 de abril de 2014:
“Discorra sobre os principais tipos de instrumentos normativos no direito internacional dos direitos humanos, elencando pelo menos três desse instrumentos ora vigentes. Nesse contexto, explique a diferença entre o denominado “hard law” e “soft law” e indique o instrumento normativo que prevê normas de sobredireito para a solução de conflitos de normas internacionais de direitos humanos".
Segundo a organizadora, a resposta integralmente correta requeria:
1) a enumeração de, pelo menos, três tipos de instrumentos normativos de direito internacional público de direitos humanos (pacto, convenção, tratado, declaração, carta) ou três instrumentos vigentes (e. g. Convenção Americana de Direitos Humanos, Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher) ao longo da narrativa;
2) a demonstração de que o candidato compreendia a diferença entre "hard law" (instrumentos normativos com força cogente, que vinculam os Estados parte) e "soft law" (instrumentos desprovidos desta eficácia), o que não se confunde com a enumeração das fontes materiais ou formais do direito internacional público (tais como doutrina, costumes, jurisprudência), nem com qualquer teoria sobre a rigidez ou flexibilidade na interpretação das respectivas normas, nem com o conceito de "jus cogens" (normas que não podem sofrer qualquer tipo de derrogação por parte dos Estados, dado seu significado fundamental para a comunidade internacional);
3) a indicação da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, como o diploma normativo que estabelece normas de sobredireito que regulam a resolução de conflitos entre normas constantes de instrumentos normativos de direitos humanos.
Para alcançar as conclusões assinaladas, a banca parece não ter levado em consideração a autonomia dogmática do direito internacional dos direitos humanos em relação ao direito internacional público, pois além de fazer uso da expressão “instrumentos normativos de direito internacional público de direitos humanos” na grade de resposta do primeiro item dos critérios de correção, ao justificar os recursos interpostos pelos candidatos, afirmou que é “na Convenção de Viena que se encontram critérios para a solução de conflitos entre normas de direito internacional público, inclusive de direitos humanos”, e que “o direito internacional dos direitos humanos, ainda que tenha seu domínio específico dentro do direito internacional público, não se configura ramo distinto deste, mas sim campo próprio inserido no quadro maior do direito internacional público”.
Essa compreensão contraria a da doutrina dominante, para quem o direito internacional dos direitos humanos construiu os respectivos alicerces com base em princípios distintos dos que imperam no direito internacional público, e que o identificam e o individualizam em relação aos outros[1].
Diz a literatura que, diferentemente do que sucede naquele ramo do direito, o direito internacional dos direitos humanos não se fundamenta: a) no princípio da reciprocidade, que pressupõe a legalidade do não cumprimento de uma norma internacional por parte de um Estado como resposta ao não cumprimento da mesma norma por parte de outro ou de outros Estados[2]; b) no princípio da exclusividade da competência nacional, em que a proteção do individuo é confiada, em exclusivo, ao Estado de que é nacional[3]; c) no princípio da não ingerência nos assuntos internos, que desautoriza a intervenção internacional em assuntos que dependam essencialmente da jurisdição de qualquer Estado; d) no princípio da reversibilidade dos compromissos, segundo o qual um tratado que não contém disposição relativa à sua extinção, e que não prevê denúncia ou retirada, não é suscetível de denúncia ou retirada, a não ser que se estabeleça terem as partes tencionado admitir a possibilidade da denúncia ou retirada; ou um direito de denúncia ou retirada possa ser deduzido da natureza do tratado.
Ao que parece, o examinador fundamentou o gabarito com base no que consignou a Corte Interamericana de Direitos Humanos no parágrafo 48 da Opinião Consultiva 3/1983[4], relativa a restrições à pena de morte. Nele, o Tribunal diz que irá se valer de “critérios de interpretação consagrados na Convenção de Viena [sobre o Direito dos Tratados]” para “precisar o sentido e abrangência das disposições do artigo 4º da Convenção [Americana de Direitos Humanos], em especial, seus parágrafos 2 e 4”.
Ocorre que, nesse mesmo texto, a Corte, mais adiante, assevera que os parâmetros previstos no artigo 31 daquela Convenção, designadamente o princípio da boa-fé, “podem ser considerados como regras de direito internacional geral sobre o tema”, o que, obviamente, não implica dizer serem eles normas de sobredireito para a solução de conflitos de normas internacionais de direitos humanos.
Isso se dá porque a Convenção de Viena propõe um método de interpretação geral de normas internacionais (sejam elas de direitos humanos ou não), veiculadas por meio de tratados (“hard law”) regidos pelo direito internacional aplicável, ao passo em que as normas internacionais de direitos humanos também podem ser veiculadas por instrumentos “quase legais” (“soft law”), que não têm força jurídica vinculativa para os sujeitos de direito internacional — citem-se como exemplos os Princípios de Limburgo, os Princípios de Bangalore de Conduta Judicial e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Dito com outras palavras, as normas da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 dizem, em regra, respeito ao “hard law” (tratados, acordos, convenções, protocolos, costume, princípios gerais, decisões vinculativas etc.), mas não ao “soft law” (recomendações, resoluções, propostas, declarações e atas provenientes de conferências e organizações internacionais etc.)[5].
Assim, partindo-se da premissa de que ambas as plataformas (o “hard law” e o “soft law”) podem veicular normas de direitos humanos, quer nos parecer que o instrumento normativo no qual estão previstas normas de sobredireitopara a solução de conflitos dessa natureza (direito internacional dos direitos humanos) não deveria ser a Convenção de Viena de 1969, cuja aplicação, tivemos a oportunidade de constatar, dirige-se para o “hard law”, mas sim a ambivalente Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 (A/RES/217), especialmente em razão do que é preconizado pelos artigos XXIX e XXX do documento[6].
[1] Conferir, por todos: MARTINS, Ana Maria Guerra. "Direito Internacional dos Direitos Humanos", Coimbra: Almedina, 2006, p. 89.
[2] Idem, ibidem, pp. 88-89.
[3] Idem, ibidem, pp. 89-90.
[4] “48. A forma como é estabelecida a consulta faz necessário precisar o sentido e abrangência das disposições do artigo 4º da Convenção, em especial, seus parágrafos 2 e 4, as possíveis ligações guardadas por estes entre si, das quais dependerá a possibilidade de relacionar o efeito da reserva a um com o texto do outro. Para fazê-lo, a Corte utilizará os critérios de interpretação consagrados na Convenção de Viena, que podem ser considerados como regras de direito internacional geral sobre o tema”.
[5] Registre-se, contudo, haver o examinador destacado na impugnação ao recurso de nº 29053062643-5, acertadamente, não haver “contradição entre essas disposições, incidindo em momentos e espaços normativos diversos”.
[6] Nesse sentido, ao que tudo indica, André de Carvalho Ramos: “Quanto à poderação e conflito de direitos (grifo nosso), a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) prevê, em seu artigo XXIX, que toda pessoa temdeveres para com a comunidade e estará sujeita às limitações de direitos, para assegurar os direitos dos outros e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. O artigo XXX determina que nenhuma disposição da Declaração pode ser interpretada para justificar ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades lá estabelecidos, o que demonstra que os direitos não são absolutos” (“Curso de direitos humanos”, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 47).
Aldo de Campos Costa exerce o cargo de procurador da República. Foi advogado, professor substituto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, assessor especial do Ministro da Justiça e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Revista Consultor Jurídico
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