CRIME CONTINUADO
A legislação penal brasileira estipula prazos distintos para o reconhecimento dos diversos direitos no curso da execução da pena, baseando-se fundamentalmente na primariedade ou reincidência do apenado e na natureza hedionda (ou equiparada) ou comum do delito.
Por força do artigo 83 do Código Penal, é de 1/3 o prazo do livramento condicional para o indivíduo não reincidente que tenha praticado delito não hediondo, de metade para os reincidentes nessa espécie de crime e de 2/3 para os primários em crimes hediondos, não fazendo jus ao livramento aqueles reincidentes em crimes hediondos ou equiparados.
Por sua vez, com o advento da Lei 11.464/07, a progressão de regime passou a ser admitida após o cumprimento de 1/6 (quando o crime cometido não for hediondo ou equiparado), 2/5 (quando a pessoa condenada for primária e o delito hediondo ou equiparado) ou 3/5 da pena (pela prática de crime hediondo ou equiparado, sendo a pessoa condenada de qualquer modo reincidente).
Para ser elaborado, o chamado cálculo discriminado (ou diferenciado) de pena depende necessariamente da existência simultânea de condenações pela prática de crimes hediondos (ou equiparados) e não hediondos. Tem-se, como exemplo, a condenação de uma pessoa primária às penas de cinco anos de reclusão pela prática do delito de tráfico, previsto no artigo 33, da Lei 11.343/06 (sem direito à redução prevista no parágrafo 4° do mesmo artigo) e três anos de reclusão pela prática do delito de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, previsto no artigo 14, da Lei 10.826/03. Para fins de progressão de regime, o indivíduo deverá cumprir 2/5 da pena imposta pela prática do crime previsto no artigo 33, da Lei 11.343/06, mais 1/6 da condenação de três anos oriunda do crime previsto no artigo 14, da Lei 10.826/03. Ou seja, no caso em tela, o requisito objetivo para a progressão de regime prisional estará a princípio preenchido com o cumprimento de dois anos e seis meses da reprimenda.
A discussão que se coloca aqui é a de definir como deve ser feito o cálculo das frações necessárias aos direitos da execução penal (notadamente livramento condicional, progressão de regime, indulto e comutação de pena) nas hipóteses de continuidade delitiva entre delitos hediondos (ou equiparados) e não hediondos.
Se por um lado a configuração da continuidade delitiva (descrita no artigo 71 do Código Penal) necessita da ocorrência de dois ou mais crimes, por outro advém desta ficção jurídica a ideia de que uma pluralidade de crimes corresponderia a um crime único, seja ou não a continuidade formada por delitos hediondos e não hediondos.
Imaginemos o caso de uma pessoa primária que pratica três roubos circunstanciados (artigo 157, parágrafo 2º, do Código Penal) e um latrocínio tentado (artigo 157, parágrafo 3º, in fine, c/c 14 II do Código Penal). No processo de conhecimento é enfim reconhecida a continuidade delitiva, sendo a pena do latrocínio tentado fixada em oito anos e aumentada de 1/4 em virtude dos roubos, repousando assim em 10 anos de reclusão.
Diante desta reprimenda de 10 anos, não poderia ser deferida a progressão de regime com o cumprimento de apenas 1/6 da pena nem o livramento condicional com o cumprimento de 1/3 do total, eis que houve a condenação por um delito hediondo. Da mesma forma, não seria razoável exigir-se para a progressão o cumprimento da fração de 2/5, ou para o livramento a fração de 2/3 sobre o total aplicado (10 anos), pois o acréscimo penal oriundo da continuidade (1/4 ou 2 anos) decorre justamente da existência de crimes não hediondos (roubos circunstanciados).
Em outras palavras, a exigência do cumprimento de uma fração da pena correspondente a um crime hediondo jamais pode incidir sobre uma pena (ou acréscimo dela) decorrente de delitos não hediondos, sob pena de grave violação aos princípios da legalidade e proporcionalidade. O primeiro restaria vilipendiado pela exigência de cumprimento de uma fração de pena mais elevada do que a legalmente prevista. O segundo pela equiparação indevida de delitos normativamente díspares.
Assim, a nosso sentir, a solução adequada seria a desmistificação da ficção do crime único, unicamente para fins de execução penal e sempre de modo a favorecer o condenado. De fato, a ideia de unidade delitiva pressupõe a existência de uma só reprimenda, sem transcendências. Nesse aspecto, ou se admite a verdadeira unicidade, e se aplica uma só das penas, sem qualquer outro aumento, ou não se pode mais falar em crime único, vez que o acréscimo penal advém justamente da existência de outros delitos. Incongruente, portanto, imaginar a unidade através de uma fictio iuris e permitir, ao mesmo tempo, o incremento penal.
Com a desmistificação da ficção do crime único, operada em favor do condenado, seria possível a elaboração de um cálculo diferenciado (discriminado) de pena, de modo que o acréscimo penal oriundo da continuidade (1/6 a 2/3, na hipótese do artigo 71, caput, do Código Penal, ou o triplo, no caso do artigo 71, parágrafo único, do mesmo código) seja na verdade considerado uma parcela da pena relativa ao(s) crime(s) não hediondo(s). Frise-se que idêntico raciocínio aplica-se às hipóteses de concurso formal próprio. Aqui também deve ser realizado cálculo diferenciado no âmbito da execução penal, de modo que sobre o acréscimo de pena oriundo do concurso formal próprio incidam apenas as frações relativas aos crimes menos graves (em regra os não-hediondos).
Retornando-se ao exemplo acima formulado, seria possível construir o seguinte raciocínio: sobre a pena de oito anos relativa ao latrocínio tentado (crime hediondo) deve incidir a fração de 2/5 para fins de progressão de regime (ou a fração de 2/3 para fins de livramento condicional). Já sobre o acréscimo de pena oriundo da continuidade (dois anos — referentes exclusivamente aos roubos circunstanciados, não hediondos) deve ser aplicada a fração de 1/6 para a progressão de regime (ou 1/3 para livramento condicional). O mesmo raciocínio aplica-se, no que for compatível, aos direitos de indulto e comutação de pena.
A elaboração do cálculo discriminado em casos semelhantes é, enfim, o procedimento mais consentâneo com o respeito aos direitos das pessoas presas e aos princípios basilares da execução penal.
Rodrigo Duque Estrada Roig é professor do Curso de Pós-graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública da UERJ. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro e ex-membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Daniel Scharth é advogado especialista em execução penal.
Revista Consultor Jurídico
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