Priscilla Placha Sá
Um vivente e se dizente “meu amigo”, professor em Curitiba, enviou-me – numa de suas aulas – um convite público, que chegou documentado, para uma cerveja. Após afirmar que era eu uma das discípulas de outro Professor (registro que é o caso de grafar este Professor com “P” maiúsculo, eis aí um significante) que inaugurou determinada corrente de pensamento hoje ultrapassada, dissera: “A Priscilla Placha é até minha amiga (?! – os pontos de interrogação e exclamação são meus), mas com ela só dá para tomar uma cerveja porque não dá para conversar sobre direito penal”. Em que pese enfático o convite, terei de dizer que nem para isso – para uma cerveja – é possível aceitá-lo. Um tanto pela deselegância narcísica e pelo modo de nomear as coisas. Outro tanto pelo que segue.
O lente disse à sua platéia – que se riu da afirmação, e, sabemos nós que o “riso” tem muitos significados (v. Seminários VII e XXIII, J. Lacan)[1] – só ser possível convidar-me para uma cerveja, porque pregaria eu em minhas aulas ser preciso “dar amor ao estuprador”. Propôs ele que, em casos tais (de estupro), o direito penal dê uma resposta “racional e antecipada” por meio da pena criminal para limitar a vingança inata da vítima. Teria frisado o colega, rindo-se (olha o riso!), afinal é preciso fazer algo com a vítima. Parece que o que venho falando em sala estava (e talvez esteja) fazendo questão a ele (a psicanálise pode contribuir nessa terapia). Lamento, porém, que não fez o que se deve fazer quando não se compreende o dito e o escrito.
Vamos, então, ao tema que lhe fez (ou faz) questão e que o convoca.
A estruturação do poder punitivo no Império Romano, com características muito similares e bastante destacadas de hierarquia e de autoridade, ainda hoje se faz presente[2]. A fundação desse modelo de punição também contou com o argumento de que era necessário sacar a vítima do processo, seqüestrando-a para fora, pois sua irracionalidade – como afirmou o colega – teria de ser substituída pela “resposta racional do Estado”. O fato é que isso permitiu – e ainda permite – que a vítima historicamente tenha sido calada, porque afinal, como parece entender o colega, que a vítima sempre vai querer matar o estuprador. Racional, assim – conforme o colega – é que o poder punitivo eleja o que entende serem problemas universais (os crimes) e assegure soluções universais (as penas) e dê até mesmo uma solução “antecipada”.
O delito de estupro, não apenas para o colega, é o exemplo do senso comum para exaltar a necessidade de pena e bradar pela função eminentemente retributiva do direito penal, dado que poderia se reunir em torno do estuprador todo o desagrado da comunidade e do sistema de justiça criminal. Aí o ponto fulcral: o gozo do ódio por meio da imposição da pena contra o estuprador. Entretanto, punir um estuprador talvez signifique a um só tempo absolver todos os outros, negar a existência da “cultura do estupro” e da tratativa extremamente complexa desse fato (seja para as vítimas, seja para os autores).
Não fosse isso, sabemos nós – mesmo os não iniciados em direito penal – que não é só uma pena restritiva de liberdade que a ele se destina. E talvez aí esteja o desejo. Não é só uma “resposta racional” do Estado que se dá ao estuprador. Não raro, à pena para os condenados por “duque 13” (em alusão ao art. 213, CP) soma-se o castigo mais comum que é o de tratar o condenado como “uma mulherzinha”. Perceba-se, o endereçamento de um sofrimento (não escrito, daí não comprovado) tratando-o como ela teria tratado sua vítima.
Num universo de mais de 50.000 estupros registrados em 2013 (estima-se que tenham ocorrido quase 150 mil casos)[3] – o sistema de justiça criminal seleciona apenas alguns que entende merecer a “resposta racional e antecipada” considerando critérios de seletividade de autores e de vítimas. Os condenados por estupro (ou seja, os que são percebidos como sendo os únicos delinqüentes), não raro, têm o mesmo perfil sócio-econômico neolombrosiano daqueles percebidos como os autores dos três delitos (tráfico de drogas, furto e roubo) que encarceram quase 70% das pessoas que cumprem pena privativa de liberdade. Segundo tal professor, o recorte de classe evidenciado por um Professor, criminólogo dos mais importantes do país, do qual seria eu seguidora, encontra-se ultrapassado, pois situado na década de 40, embora suas teorias seguem sendo empiricamente confirmadas pelos dados, como os que refiro e que são de 2012 (disponíveis no sistema do depen e infopen).
Mas o sistema seleciona também as vítimas típicas: mulheres de hábitos tidos como imorais, com roupas inadequadas, de batom vermelho, andando à noite na rua, com comportamento sexual tido como “livre” ou “promíscuo” estão fora da proteção do sistema e são tratadas como coisa[4]. Tem mais: se ela demonstrar, como disse o colega, rancor ou ódio, isso é prova de sua irracionalidade. A vítima, portanto, tem que ter um discurso sereno e tranqüilo, mesmo depois de ter sido estuprada. Seria uma (ir)racionalidade do feminino? Ou uma (ir)racionalidade do sistema?
A vítima é sequestrada para fora do processo para em seu nome falar “racionalmente” o sistema de justiça criminal, vingando-se “racional e antecipadamente” em seu lugar por meio da pena criminal e das penas acessórias! Eis o gozo do ódio! O que o sistema de justiça criminal e as penas têm feito, de fato, pelas vítimas senão criar expectativas vazias de que a pena longa e cruel trará a elas alguma espécie de abatimento pela dor e pela violência sofridos?[5]. Teria o colega já indagado para as vítimas dos processos criminais em que atuou se o sistema pode fazer algo por elas além de exigir que tenha um comportamento “dentro do esperado” em uma audiência criminal?[6]
O que o sistema de justiça criminal efetivamente faz, além de supor que a vítima é em essência vingança, é determinar que ela engula sua dor, sua raiva, seu sofrimento e que transfira toda a sua expectativa para o dia da sentença criminal, cuja condenação nunca será suficiente e a absolvição será frustrante, porque as apostas para mediar a sua dor são voláteis e frias, pois são as penas que nada lhe dizem.
Seria mais honesto, colega, (i) compreender que ela não é necessariamente vingativa e (ii) ouvir e com audição atenta e merecida a vítima e dizer-lhe que nenhuma pena, por mais longa e cruel – porque é umgozo do ódio – conseguirá aplacar a dor do fato que pode lhe acometer. A mediação de sua dor, reconhecendo os limites e as fraquezas do sistema de justiça criminal, é tanto mais ética do que mandar que fique quieta e que o sistema gozará livremente do seu sofrimento e do sofrimento do acusado.
Aí é que entra o incompreendido pelo colega sobre os termos “amódio” e “haine” e sua junção em “hainamoration”, no Seminário, livro 20: mais, ainda de Jacques Lacan[7]. O ódio é constitutivo do sujeito, tal e qual o amor. Mas eticamente não se pode gozar do ódio, fazendo do Outro um sujeito-objeto de sua satisfação.
[…] a satisfação que se pode tirar do fato de autorizá-lo, de deixá-lo em livre curso, e, portanto, gozar de odiar aquele ou aquela que está encarregado ou encarregada de transmitir-me esse traço da minha condição, mais do que de assumir que o meu ódio se endereça ao vazio. É o não discernimento entre esses dois lugares de endereçamento que gera, igualmente, o assassinato e a violência. Não é, portanto, o ódio como tal que deve ser proibido, dado que, de qualquer maneira, é impossível erradica-lo, mas o que é necessário renunciar é o gozar de seu ódio. É manter-se no gozo do ódio que é proibido.”[8]
Não se pode nem pela vítima, nem pelo réu, portanto, gozar a qualquer preço[9].
Como explicaria o colega, o fato de o sistema de justiça criminal ainda hoje pinçar apenas autores típicos e vítimas preferenciais (re)distribuindo justiça baseado nos mesmos modelos do pregado no IV Concílio de Latrão e que em face da “heresia cátara” arrastou milhares de pessoas para a máquina de moer carne que é o sistema penal forjando desde aí os modelos de(da) inquisição (que para muita gente não passa de mera ficção, como ficção devem ser também os milhões de mortos produzidos – ontem e hoje – como mera obra do acaso). Sistema que, na verdade, trata as vítimas de estupro como netas das bruxas queimadas na fogueira e, sob o argumento de sua (ir)racionalidade, pune (ir)racional e retributivamente os acusados de estupro. E o gozo segue livre e infinito, como não parece ser possível ser.
Para falar de ódio e de amor, é preciso saber do que se fala, dos seus significados e seus significantes. Chamar alguém de amigo indica, no mínimo, que é preciso (re)conhecer as implicações polissêmicas da palavra amizade. Não posso por isso aceitar o convite para a cerveja. Recomendo, por ora, que vá a uma biblioteca ou livraria.
Notas e Referências:
[1] Também: SOUZA, Aurélio. Nem sempre o riso faz bem. Cogito [online]. 2009, vol.10 [citado 2015-04-05], pp. 8-14 . Disponível em: . ISSN 1519-9479.
[2] Como lembra E. R. Zaffaroni, parece ser necessário – especialmente para quem fala na Academia – desconstruir o poder punitivo mesmo que ele tenha se tornado um clássico como “bife com batatas fritas”: ZAFFARONI, Eugenio Raúl; REP, Miguel. La Cuestión Criminal. 3. ed. Buenos Aires: Planeta, 2012.
[3] Pesquisa divulgada pelo Senado Federal estima que há uma vitimização anual de 0,26% da população brasileira (em termos de tentativa de violação sexual), somente 10% dos casos chegam à polícia; 50,7% das vítimas têm menos de 13 anos de idade, 88,5% são mulheres, 44% são pardas 15% dos casos são de estupro coletivo. Cumpre registrar que a polêmica da pesquisa do IPEA foi em relação ao fato de a população concordar ou discordar em sua maioria sobre o fato de que as mulheres que usam determinadas roupas ‘colaborariam’ com o fato: cf. file:///C:/Users/Win8/Downloads/DOC_ORADOR_C_13194_K-Comissao-Permanente-CDH-20140415CNJ008_parte3238_RESULTADO_1397577899379%20(1).pdf.
[4] ANDRADE, Vera R. P. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan (Instituto Carioca de Criminologia), 2012.
[5] KARAM, Maria Lúcia. Recuperar o desejo de liberdade e Conter o Poder Punitivo. Escritos sobre a Liberdade. V. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
[6] Sobre outra possibilidade de audiência criminal: CHRISTIE, Nils. Dilema do movimento de vítima. Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, Revan, a. 17, n. 19/20, p. 367-377, 2012.
[7] Para Lacan, “não conhecer de modo algum o ódio é não conhecer de modo algum o amor também.” (LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; versão brasileira de M. D. Magno. 2a . ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1985, p. 120 – Letra de Uma Carta de Almor). Isso revelaria, segundo Lacan, que se Deus não conhece o ódio seria então mais ignorante que os mortais e por isso propõe a mediação a partir do termo “hainamoration, uma enamoração feita de ódio (haine) e de amor, um amódio, é o relevo que a psicanálise soube introduzir para nele inscrever a zona de sua experiência. Era, de sua parte, um testemunho de boa vontade.” (LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20: mais, ainda. 1985, p. 122 – O Saber e a Verdade).
[8] LEBRUN, Jean-Pierre. O futuro do ódio. Mario Fleig (Org.). Trad. de João Fernando Chapadeiro Corrêa. Porto Alegre: CMC. 2008, p. 29. Ainda: DIAS, Mauro Mendes. Os ódios: clínica e política do psicanalista, seminário. São Paulo: Iluminuras. 2012.
[9] MELMAN, Charles. O Homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Entrevistas por Jean-Pierre Lebrun. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
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