Por Márcio Sotelo Felippe
// Na Coluna ContraCorrentes
24 de abril é a data em que se lembra o genocídio armênio. Nesse dia de 1915 começou o massacre, com a prisão e assassinato de lideranças e intelectuais armênios, uma das diversas etnias que formavam o Império Otomano. Há farta documentação primária sobre o curso bárbaro dos acontecimentos a partir daí, não podendo haver dúvida razoável de que o extermínio foi uma decisão do Estado otomano. Fatos como 5 mil armênios, inclusive crianças, queimados. Crianças embarcadas para morrerem afogadas. Inoculação do vírus do tifo e as “marchas da morte”, deportação em massa de centenas de milhares de armênios após serem privados de seus bens. Documentos e testemunhos sobre as “marchas da morte” provam estupros, assassinatos, torturas, aniquilação por fome, resultando, ao final de tudo, em cerca de 1,5 milhão de armênios exterminados.
EUA e Japão opuseram-se na época à responsabilização dos dirigentes turcos por razões políticas. A Turquia estava próxima geograficamente da Rússia bolchevique e importava tê-la como aliada. O Tratado de Sévres continha uma cláusula de responsabilização dos dirigentes turcos que desapareceu do tratado subsequente, o de Lausanne. Este, além de retirar a cláusula, incorporou um anexo secreto garantindo imunidade aos turcos. Como afirma Bassouini, “considerações políticas prevaleceram sobre as legais e morais” (Crimes against humanity)
Assim, foi possível a Adolf Hitler fazer esta declaração em agosto de 1939:
“Nossa força consiste na nossa velocidade e na nossa brutalidade. Genghis Khan levou milhões de mulheres e crianças para o abate com premeditação e um coração feliz. Hoje a História vê nele apenas o fundador de um Estado (…) Quem afinal fala hoje do extermínio dos armênios?” (Documento identificado no Tribunal de Nuremberg como L-3 ou “exhibit USA-28”)
O ignóbil cabo errou. Como em tudo que fez em sua miserável vida. Em 2015 falamos, sim, do extermínio dos armênios. E o tanto (não muito) que temos de princípio civilizatório nos conduz ainda à responsabilização de todos que, conduzidos por ele, praticaram outro genocídio com o estímulo adicional de que genocídios, afinal de contas, acabam sendo esquecidos ou podem ser até glorificados pela História.
Foto publicada esta semana mostra um homem de 86 anos, depauperado, entrando em um tribunal apoiado em um andador. Trata-se de Max Eisen, o “contador de Auschwitz”. Sua tarefa era recolher o dinheiro das malas dos detentos que chegavam ao campo e entregá-lo à SS. Também retirava as bagagens, quando chegavam os trens, daqueles que ali já eram destinados à câmara de gás. Segundo a acusação, com isto apagava os vestígios da matança de judeus. É acusado de cumplicidade em pelo menos 300 mil casos.
Será julgado por fatos ocorridos há mais de 70 anos, o que nos ordenamentos jurídicos comuns não seria mais possível. Mas neste caso nunca prescreverão e somente a morte o livrará do peso que, talvez, haja em sua consciência. A matéria diz que ele reconhece sua culpa moral, mas se abstém de falar sobre a responsabilidade jurídica. A interpretação mais razoável para essa frase é que reconhece sua culpa moral, mas não quer ser punido. A matéria diz que suas vítimas não o perdoam. Aqui não se trata de perdão, uma questão subjetiva e pessoal. O Direito apaga, manda não punir por considerações racionais. Não “perdoa”. Há uma racionalidade na prescrição ou na anistia na maioria dos casos. Quando a humanidade é ameaçada, quando milhões de pessoas são ou podem ser exterminadas, a racionalidade aponta em outra direção.
Por que podemos punir, mais de 70 anos depois, esse funcionário subalterno de Auschwitz? Porque o princípio civilizatório não pode admitir a possibilidade de que, daqui a uns 150 anos, alguém possa dizer, tal como Hitler, “quem fala hoje do extermínio dos judeus” ou algo como “nada aconteceu aos nazistas genocidas”.
Isto tudo tem que permanecer de forma indelével na memória da humanidade por todos os séculos, enquanto seres humanos pisarem o solo do planeta, e jamais deixar de ter consequências jurídicas.
O genocídio dos armênios não é reconhecido pela maioria dos Estados contemporâneos, que relutam porque não querem atritos políticos com a Turquia. A Turquia, ao contrário dos alemães, ainda pensa que não se pode distinguir assassinos da própria sociedade em que vivem ou viveram esses assassinos. Continua a vigir, de algum modo, o anexo secreto do Tratado de Lausanne que deu imunidade aos turcos.
Considerações políticas, razões de ordem prática, tolas “sabedorias de vida” do tipo “vamos viver o presente e deixar o passado para trás” são tijolos que edificarão outros genocídios. São perigosas para nós e para as gerações que virão porque estamos diante do mais poderoso, letal, ofensivo ente que a História jamais conheceu: o Estado moderno. E esse ente historicamente inédito, esse aparato excepcional, exige também respostas excepcionais. O século XX construiu e consolidou, de pleno direito, os crimes contra a humanidade. Eles são a única defesa jurídica que a humanidade tem contra a mais poderosa arma que a História conheceu, o Estado moderno.
Filósofos e todos nós costumamos nos atrapalhar com palavras. Às vezes usamos uma mesma palavra para dizer coisas diferentes e podemos nos matar por esses sentidos. Quando falamos hoje em Estado, falamos, no entanto, em algo que é ontologicamente distinto do Estado da Atenas antiga, ou do Estado feudal ou do absolutista. Não podemos pensar no Estado moderno como pensamos na polis ateniense ou na França feudal.
O Estado moderno reúne quatro características que o tornam historicamente singular: ele detém o monopólio da violência, da tributação e da norma jurídica. Com isto pode concentrar e dominar todos os recursos que a ciência e a tecnologia colocam ao dispor de quem tem recursos e poder. O século XX demonstrou à saciedade como isso pode e é utilizado para exterminar em massa seres humanos.
Aquele 1,5 milhão de armênios, as milhões de vítimas do Estado nazista, os milhares de mortos dos Balcãs, os 800 mil de Ruanda, os 2 milhões de cambojanos vítimas do Khmer Vermelho só foram possíveis porque existe o Estado moderno, a mais letal de todas as armas.
Os crimes contra a humanidade são, por isso, pela sua fabulosa ofensividade, por colocar em ameaça coletividades e parte da humanidade, imprescritíveis e não suscetíveis de anistia. São crimes de Direito Internacional (não importa o que o Direito interno diz) e sua característica essencial é de serem ofensas graves praticadas em decorrência de uma política de Estado, sistemática ou generalizadamente. Chefes e colaboradores de organizações criminosas não estatais (como a máfia) não são sujeitos ativos de crimes contra a humanidade. Estão sujeitos à legislação interna apenas. Mas quando se trata de dirigentes políticos, são crimes e criminosos de Direito Internacional. Nenhum funcionário desse Estado, por mais subalterno que seja, tendo participado efetivamente da cadeia direta de fatos que conduziram aos crimes, está imune, desde que se possa reconhecer uma escolha moral de não participar. Por isso, aos quase 90 anos e mais de 70 anos depois, “o contador de Auschwitz” não pode fugir de sua responsabilidade jurídica. Por isso, é inaceitável que os armênios ainda clamem e não sejam ouvidos pela comunidade internacional em memória de seus 1,5 milhão de mortos, perpetuando de algum modo a barbárie porque consente quem cala.
O Estado brasileiro tem problemas graves com a questão dos crimes contra humanidade. Anistiou os responsáveis pelos 400 mortos e 20 mil torturados pela ditadura militar. Não cumpre a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos que julgou inválida essa anistia. Nunca tratou do genocídio indígena, que ainda persiste. Também se omite na questão do reconhecimento do genocídio armênio.
Questões políticas e a lógica própria de funcionamento dos Estados fazem com que, ao fim e ao cabo, seres humanos resultem supérfluos ou algo menos do que humanos. Por isso podem ser exterminados e por isso, se exterminados, podem ser ignorados. Mas os sinos dobram por todos nós.
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” (John Donne, poeta inglês, 1572-1631)
Em cada armênio, judeu, negro, indígena, cigano exterminado morremos juntos. Os sinos dobram por todos nós. Por ti, leitor.
(Dedicado a Marcelo Augusto Boujikian Felippe, Mariana Boujikian Felippe e Isabel Boujikian Felippe, meus filhos armênios)
Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.
Junto a Rubens Casara, Marcelo Semer, Patrick Mariano e Giane Ambrósio Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o Justificando.
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