Por Glauco Faria
“O senhor sabe o que vai acontecer com esse bandido, esse assassino, esse monstro? Nada. (…) Ele deveria ser linchado (…) Queria ver esse cara torrando na cadeira elétrica.” Esses trechos foram extraídos do livro Justiça (Nova Fronteira), do sociólogo Luiz Eduardo Soares, no qual ele relata o encontro com um taxista, no Recife. A fala é do condutor, que contava um episódio ocorrido com um amigo seu, motorista de ônibus, morto por um adolescente, menor de 18 anos, em um assalto.
Ao contrário do que pode parecer, o jovem, em geral, é mais vítima do que algoz no País (Foto: Marcos Santos/USP Imagens)
“Naquele momento não era o homem que falava; era seu coração, a sua dor”, refletiu o sociólogo, lembrando que não era um momento para argumentar porque isso poderia soar agressivo ou desrespeitoso. E o taxista seguiu seu relato, pensando sobre como seria o destino da viúva e dos cinco filhos, já que seu amigo era arrimo de família. Soares ponderou a respeito das dificuldades que a mãe teria para criar os garotos sozinha, explicitando os riscos a que seriam expostos. “Esses meninos correm o risco de ir para a rua, envolver-se com drogas, crimes, armas”, no que seu interlocutor concordou. “Um dia, um deles, desesperado atrás de dinheiro – talvez para comprar crack – entra num ônibus, rende passageiros e, sem pensar, atira no motorista e foge”, prosseguiu, concluindo: “o senhor acha que, nesse caso, se isso viesse a acontecer, o órfão de seu amigo mereceria ser chamado de monstro? O senhor participaria do linchamento dele? O senhor, se fosse juiz e se nosso país tivesse pena de morte, o condenaria à morte?”
Durante o resto da viagem o taxista permaneceu calado e, ao chegar ao destino, finalmente respondeu. “Não”, completando: “nunca tinha pensado por esse lado”. Como o próprio Luiz Eduardo Soares ressalta, analisar uma história como essa em todas as suas implicações não é “passar a mão na cabeça de bandidos”, mas buscar ver a realidade por diversos ângulos e tentar elaborar alternativas ao problema da violência que acabem não gerando mais violência. E, ao que tudo indica, a redução da maioridade não é uma solução ideal, e pode aumentar uma espiral que vitima jovens e adultos todos os dias no Brasil.
O tema eventualmente volta ao debate público, geralmente após a repercussão de crimes cometidos por adolescentes. Agora, a discussão retorna por conta do assassinato de Victor Hugo Deppman, de 19 anos, morto na porta do prédio onde morava, no bairro do Belém, em São Paulo, em 9 de abril. O jovem que cometeu o latrocínio estava a três dias de completar 18 anos.
O episódio gerou reações e inúmeras manifestações favoráveis à redução da idade penal para 16 anos. De acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha em 15 de abril, 93% dos paulistanos são favoráveis à medida, cuja possibilidade de ser efetivada causa controvérsias no meio jurídico. Muitos, como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, entendem que não pode haver alteração. “A Constituição prevê inimputabilidade penal até os 18 anos de idade. É um direito consagrado e uma cláusula pétrea da Constituição do Brasil. Nem mesmo uma emenda pode mudar isso. Qualquer tentativa de redução é inconstitucional. Essa é uma discussão descabida do ponto de vista jurídico”, disse Cardozo, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, em 29 de abril.
Já outros entendem que só os direitos inscritos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 seriam imutáveis. De qualquer forma, discutir essa questão pode ser a oportunidade de se traçar um panorama mais amplo das causas da criminalidade e sobre medidas que podem realmente combater o seu crescimento.
“A sociedade passou a desesperadamente querer uma proteção e a clamar por policiamento nas ruas, armamentos mais aprimorados, leis e penas mais rigorosas, isso tudo em uma visão do fenômeno criminal após a sua ocorrência. Depois que ocorreu, punição; antes, pouca ou nenhuma discussão sobre as causas do crime”, reflete o advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que destaca também a responsabilidade da cobertura da mídia. “Temos um discurso, que se transformou em uma cultura social, voltado para a repressão, e não para a prevenção. A mídia tem muita culpa nisso, pois não encara o crime como uma tragédia, e im como um espetáculo. Um espetáculo digno de todos os mecanismos que pode oferecer, televisionamento das operações – se possível do corpo da vítima –, dos julgamentos, e isso passou a ser um verdadeiro show, um instrumento de faturamento e de Ibope. Tivesse a mídia encarado o crime de uma forma correta, poderia ter até extraído lições, discuti-lo.”
O tratamento midiático, por meio da exploração às vezes cruel de episódios violentos, não leva em consideração algumas estatísticas. De acordo com números da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa), instituição responsável pela aplicação de medidas socioeducativas no estado de São Paulo, 9.016 adolescentes cumpriam alguma das medidas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – atendimento inicial, internação provisória, internação, internação sanção e semiliberdade. Destes, 41,8% estavam ali por tráfico de drogas, 39% por roubo qualificado, 5,1% por roubo simples e 1,9% por furto. Os jovens que cometeram latrocínio (roubo seguido de morte), como no caso de Victor Hugo, correspondiam a apenas 0,9% do total, ou 82 adolescentes, sendo que 33 deles possuíam mais de 18 anos e 49 estavam abaixo dessa idade.
Ao contrário do que pode parecer, o jovem, em geral, é mais vítima do que algoz no País. Conforme o Mapa da Violência 2012: Crianças e Adolescentes do Brasil (Julio Jacobo Waiselfisz, Flacso Brasil/Cebela, 2012), com sua taxa de 13 homicídios para cada 100 mil crianças e adolescentes, os brasileiros ostentam um trágico 4º lugar entre 99 países do mundo em assassinatos de pessoas entre 1 e 19 anos, ficando atrás somente de El Salvador, Venezuela e Trinidad e Tobago. As taxas de homicídio nessa faixa etária cresceram 346% entre 1980 e 2010, com 176.044 vítimas no período. Em 2010, foram 8.686 crianças e jovens assassinados, uma média de 24 por dia. De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, responsável pela notificação de casos de violência doméstica e sexual, em 2011 foram registrados 39.281 atendimentos de pessoas na faixa etária entre 1 e 19 anos, representando 40% do total de atendimentos computados pelo sistema.
Mas não é qualquer jovem a principal vítima da violência no País. Levantamento realizado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – Flacso Brasil, intitulado Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil, publicado em dezembro de 2012, mostra que, entre 2002 e 2010, o número de homicídios na população jovem (considerada a faixa etária entre 12 e 21 anos) caiu 33% entre brancos e, entre os negros, cresceu 23,4%. No período, morreram 159.543 jovens negros vítimas de homicídios, e 70.725 jovens brancos.
Obviamente a vitimização de crianças e adolescentes não chama tanta atenção da mídia, tampouco do poder público. A situação remete a uma reflexão feita pelo deputado estadual pelo Rio de Janeiro Marcelo Freixo, entrevistado na edição 121 de Fórum. “A polícia entra na favela e cinco pessoas morrem, isso cria uma grande comoção? Não. Porque, na nossa cabeça, essas pessoas já foram julgadas, julgadas pelo nosso medo. ‘Polícia entra na USP e mata cinco’. Toda a imprensa vai para lá”, ponderou na ocasião. “A dignidade tem endereço, a decência humana tem endereço, é de classe.”
Responsabilidade penal e maioridade
Em meio ao turbilhão de informações que passou a circular nas redes sociais sobre redução da maioridade, muitas são equivocadas. Em geral, para justificar uma mudança na legislação brasileira, alguns buscam inspiração nas normas de outros países, mesmo sem considerar certas peculiaridades. Uma delas é confundir idades de “responsabilidade penal” de determinados lugares, que é quando o adolescente passa a ser responsabilizado por um ato previsto como crime, com a maioridade penal.
“Todos os países têm em suas legislações uma idade em que criança ou adolescente começa a ser responsabilizado pelos seus atos infracionais. No Brasil, essa idade é de 12 anos, sendo que na maioria dos países é de 14”, explica o professor de Direito Penal da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Túlio Vianna. Com base no documento Cross-national Comparison of Youth Justice, elaborado por Neal Hazel, da Universidade de Salford, é possível desfazer alguns desses equívocos e verificar como alguns países elaboravam seus sistemas de Justiça penal em relação a menores de idade até o ano do levantamento, 2008.
A Organização das Nações Unidas (ONU) sugere que a idade mínima da responsabilidade penal não seja muito baixa, embora não faça uma recomendação específica, mas ressalta que é preciso levar em conta os fatores de maturidade intelectual e emocional. As ponderações e o trabalho do Comitê sobre Direitos da Criança do órgão fez com que muitos países elevassem esse limite. Em 1977, Israel mudou a idade de responsabilização de 9 para 13 anos; em 1979, Cuba aumentou de 12 para 16; em 1983, a Argentina alterou de 14 para 16; em 1987, a Noruega mudou de14 para 15 e, em 2001, a Espanha elevou de 12 para 14 anos. Todos com uma idade mínima acima dos 12 anos estabelecidos pela lei brasileira.
Em relação à maioridade, de acordo com o estudo, a idade padrão de maioridade penal em todo o mundo é de 18 anos. Por sinal, é o que se recomenda na Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989. Contudo, o conceito de maioridade também tem nuances distintas conforme o país, podendo o adolescente perder a prerrogativa de responder por seus atos diante do sistema especial juvenil ou, por outro lado, continuar inserido nele mesmo após ter atingido a idade para ser processado penalmente como adulto. Na Alemanha, jovens de 18 a 21 anos podem ter a possibilidade de serem julgados em cortes juvenis; na Suíça, pessoas até os 25 anos têm penas menos severas do que os que estão acima dessa idade; e mesmo nos Estados Unidos, que conta com legislações mais repressivas, estados como Colorado, Havaí e Nova Jersey permitem que jovens cumpram sua pena integralmente em estabelecimentos para menores infratores, inclusive depois de terem atingido a idade adulta.
Ou seja, a opinião de que o sistema brasileiro é “leve” não parece encontrar sustentação quando é feita uma comparação com outros países. Aliás, em muitos casos a privação de liberdade para um adolescente no Brasil pode até ser mais severa do que para um adulto, como lembra o advogado André Luís Callegari, em entrevista ao IHU On-Line. “Não nos damos conta, e ninguém faz essa análise, mas muitas vezes o menor de idade cumpre uma medida socioeducativa mais dura do que uma pessoa penalmente responsável. Explico: o menor de 18 anos, quando pratica um delito, recebe a pena máxima de três anos de internação. No caso de um maior praticar um homicídio simples, a pena varia de seis a 20 anos. Se ele for condenado a seis anos e cumprir um sexto da pena, ficará preso por um ano e poderá trocar de regime, ficando no regime aberto. Quer dizer, ele sai mais cedo da prisão”, argumenta. “Então, reduzir a maioridade penal é uma alternativa falaciosa, porque queremos dar uma resposta à sociedade por meio do Direito Penal. Esse não é o melhor caminho.”
“O ECA não é uma invenção brasileira, é uma lei que representa um compromisso assumido pelo Brasil na comunidade internacional, a versão brasileira da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, de novembro de 1989, ratificada por todos os países com assento na ONU, exceção feita aos Estados Unidos”, lembra o juiz aposentado João Batista Costa Saraiva, coordenador da Área de Direito da Criança e do Adolescente da Escola Superior da Magistratura RS. Ele ainda ressalta que, mesmo entre os estadunidenses, há uma tendência à adequação aos preceitos previstos na Convenção. “Alguns estados federais mantinham a pena de morte para menores de 18 anos, mas a Suprema Corte norte-americana, em 2005, declarou a inconstitucionalidade da pena de morte para eles, um tratamento diferenciado em relação aos adultos”, pontua. Em 2010, a Corte retirou da legislação crimes que, fora homicídios, resultavam em prisão perpétua para jovens, sem direito à liberdade condicional.
Para Saraiva, é um erro fazer analogias como as de que, se o jovem pode votar aos 16 anos, também deveria ser responsabilizado penalmente como adulto. “É bom lembrar que o voto aos 16 anos é facultativo, e a maioria não o exerce antes dos 18 anos. Além disso, são inelegíveis”, destaca. “Mas desde que o Brasil ratificou a Convenção, trabalhamos com a perspectiva de que os adolescentes não são incapazes, têm responsabilidade relativa ao seu status, como sujeito em desenvolvimento. Ele é responsável, sim, e pode ir preso a partir dos 12 anos. Para a Fundação Casa em São Paulo, por exemplo, ele vai algemado. O que distingue essa situação do sistema prisional adulto é que existe um escopo pedagógico no sentido de estabelecer um conjunto de possibilidades que lhe permita reconstruir sua vida.”
Histórias comuns
Garoto observa material contrário à redução da maioridade penal durante reunião da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), no Senado (Foto: José Cruz / ABR)
“Tive uma infância muito pobre, mano, passava fome demais, cara. Quando tinha 12 anos, perdi minha mãe, meu bem mais precioso, aí fui criado pelo meu pai. Com o passar do tempo, a situação foi apertando mais, a gente estava sem dinheiro em casa e entrei para o crime.” Paulo (nome fictício) contou parte da sua história ao repórter Igor Carvalho, durante a visita do rapper Dexter à unidade Encosta Norte da Fundação Casa. O jovem, que tem hoje 18 anos, vivia no Itaim Paulista, distrito extremo da zona leste de São Paulo, e foi preso por assalto à mão armada.
Hoje, ele pensa como vai ser sua vida ao retornar às ruas. “Tenho um filho para criar no mundo lá fora, não quero mais voltar para cá, cara. Vejo a vida com outros olhos, quero terminar meus estudos e dar oportunidades diferentes para meu filho. Quero que ele nunca pise aqui na Fundação.”
Quando perguntado sobre o que acha da redução da maioridade penal, medida que não o afetaria mais, já que é hoje maior de idade, ele é taxativo. “Vai mudar, mas é para pior.” E justifica: “Porque aqui é um aprendizado, se eu fosse para uma cadeia ia virar bandido mesmo. Frequentar uma cadeia não tem volta, morre ou fica pior, mano, é outro mundo. Você vai pra lá e tem menos possibilidades de voltar para a sociedade.”
Célio (nome fictício) também perdeu sua mãe e seu irmão cedo, tendo sido criado pela avó. “Nessa época, não tinha condição de ter um tênis ou uma roupa diferente e me envolvi com o tráfico, aí isso me possibilitava muita coisa que eu não tinha e via na rua: roupas, tênis, celular, e outras coisas.” Conta que começou a se envolver com a venda de drogas aos 12 anos. “Eu vendia desde moleque, já trafiquei bastante, até chegar num ponto que eu comecei a achar que aquilo era errado e tentar achar um emprego, mas não consegui, aí eu voltei.”
Tinha 15 anos quando acabou detido por tráfico de drogas, de acordo com ele, injustamente na ocasião. “Na época, eu tinha saído [do tráfico] e arrumado um emprego de garçom. Estava trabalhando, mas era conhecido dos policiais, por ter passagem, aí uma vez teve um B.O. [boletim de ocorrência, gíria para crime], e eles foram me buscar e colocaram no meu nome. Aí, como você vai ter moral pra falar com o juiz se teve passagem? É a sua palavra contra a do policial.” Agora, pretende se qualificar. “Parei de estudar muito cedo, aqui dentro mesmo tenho lido mais e quero continuar os cursos que fiz aqui, para ter uma profissão”, relata.
Os dois depoimentos ilustram uma realidade do sistema penal juvenil bastante similar à que ocorre no sistema prisional adulto no que diz respeito a quem está privado de liberdade. O recorte socioeconômico é evidente, com uma maioria de jovens pertencentes a segmentos mais baixos da população. A socióloga Bruna Gisi Martins de Almeida, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná, cita em artigo estudo de Silvana Cercal, que analisou cem processos de adolescentes que estavam em internação provisória no Centro de Socioeducação de Curitiba (Cense), entre maio e junho de 2006, constatando que, das 125 ocupações desempenhadas pelos responsáveis dos jovens, 57,6% representavam uma renda mensal menor que dois salários mínimos ou não havia qualquer renda fixa.
A falta de estrutura familiar de boa parte dos internos também salta aos olhos. Levantamento da Fundação Casa realizado em 2006 apontava que 51% dos internos moravam só com a mãe; 16%, com o padrasto; 7%, só com o pai e 19%, sem o pai e nem a mãe. Na matéria de Nina Fideles “De Febem a Fundação Casa”, publicada na edição 109 de Fórum, o pedagogo Carlos (nome fictício), que trabalha na Fundação, ressalta que não há programa específico da entidade que preste assistência ao jovem em seu retorno às ruas, e é o suporte familiar que pode fazer a diferença entre reincidir ou não. “Se o jovem tem uma família, que lhe preste todo o apoio inicial, ele até consegue se recuperar. Mas, caso não tenha nada lá fora, provavelmente volta”, analisa.
“Essa opção legislativa pela redução da maioridade tem aspectos muito ruins como colocar, em um mesmo estabelecimento, um jovem de 16 anos com um maior de 25, 30 anos. É uma temeridade. O adolescente precisa do contato com a família e depois com a comunidade. Justamente quando ele tem 14, 15, 16 anos e inicia esse contato com a comunidade, qual o retorno que a sociedade vai dar para ele? A prisão?”, questiona o pesquisador Luis Carlos Valois, da Universidade de São Paulo (USP).
Soluções repressivas como aumento de penas ou redução da maioridade podem soar bem em momentos de comoção, mas a própria experiência brasileira aponta que o endurecimento da legislação penal não assegura a diminuição da violência. A promulgação da Lei de Crimes Hediondos, em 25 de julho de 1990, por exemplo, não evitou que os índices de criminalidade crescessem, como aponta um estudo do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud), elaborado em 2006. Com a lei, crimes como estupro, homicídio, sequestro, latrocínio e tráfico foram considerados hediondos, passando a ser punidos com maior rigor. O estudo chegou à conclusão de que “é possível afirmar que o endurecimento penal, novamente, não interferiu na criminalidade registrada, mas concorreu para o agravamento de um problema bastante sério – a superpopulação prisional.”
Esse cenário de superlotação é evidenciado por números do Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, referentes a dezembro de 2012. Hoje, a população carcerária do Brasil é de 548 mil pessoas, mas há somente 310,6 mil vagas no sistema prisional brasileiro, representando um déficit de 237,4 mil lugares. Entre 1994 e 2009, o número de presídios no país mais que triplicou, passando de 511 para 1.806, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional, mas não foi o suficiente para abrigar todos os condenados, já que, nos últimos 23 anos, a população carcerária do país cresceu 511%, o que para muitos evidencia uma verdadeira política de encarceramento que atinge principalmente as classes mais baixas, sem conseguir frear o aumento da violência. Tal quadro seria agravado ainda mais com a entrada de jovens no sistema penitenciário comum.
Essa é outra preocupação daqueles que se posicionam contra a redução da maioridade. A Constituição, em seu artigo 5º, inciso 48, determina que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”, mas não é isso que ocorre na prática em função do déficit de vagas em presídios no Brasil.
“Um cidadão que cometeu um delito como tráfico de drogas não pode estar na mesma prisão de um latrocida, cujo crime envolve violência. O problema de se colocar jovens de 16 anos no sistema prisional adulto são as consequências que isso vai acarretar, tanto para o menor quanto para a sociedade”, acredita Valois, que também questiona a finalidade de “ressocialização” que o sistema penitenciário não cumpre. “O termo ‘ressocialização’ nasceu após a Segunda Guerra Mundial, quando a ONU começou a promover encontros internacionais e a olhar para os países ocidentais, vendo que tínhamos também nossos campos de concentração, as prisões. Quando percebeu isso, tentaram justificar esses campos de concentração em vez de acabar com eles, argumentando que eles tinham fins de ressocializar”, explica, lembrando de um fato que exemplifica as condições do cárcere no Brasil e do tratamento que é dado a quem é preso. “Tiveram quatro presos que estavam sob responsabilidade da Vara de Execuções Criminais onde eu trabalhava, quatro detentos que morreram queimados em um incêndio porque estavam algemados às camas. Eram dependentes químicos e estavam em crise de abstinência.”
“Reduzir a idade penal para lançar adolescentes nos presídios se faz um equívoco irreparável, porque, no País, se há algo pior do que o chamado ‘sistema Febem’ é o sistema penitenciário”, argumenta Saraiva. De acordo com a assessoria de imprensa da Fundação Casa, a reincidência caiu de 29%, em 2006, para 13,5%, em 2013. Ainda que alguns ex-internos possam fazer parte das estatísticas do sistema penitenciário adulto mais tarde, o índice é bem menor que o verificado entre os presos adultos. Ariel de Castro Alves, advogado e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), destaca que os índices de reincidência no sistema prisional adulto chegam a ultrapassar 60% .
Alternativas à redução
Hoje, no Congresso Nacional, tramitam 25 projetos que têm como objetivo reduzir a maioridade penal, e sete deles teriam condições ir à votação no plenário, mas ainda não entraram na pauta dos parlamentares. Também há propostas como a do senador Paulo Bauer (PSDB-SC), que prevê sanções civis para jovens infratores sem redução da idade penal, como a postergação do início da maioridade civil de 18 para os 21 anos, elevação para os mesmos 21 da idade mínima para habilitação de condução de veículos e a suspensão de direitos políticos pelo período em que durar a medida socioeducativa de internação.
Duas das propostas de emenda constitucional (PEC) que tramitam no Senado pretendem criar um modelo “híbrido” de maioridade. Uma, a PEC 74/2011, pretende reduzir de 18 para 15 anos a maioridade penal nos casos de homicídio doloso e latrocínio. Já a PEC 33/2012 prevê que, a partir dos 16 anos, jovens poderão ser punidos como adultos se cometerem crimes inafiançáveis ou reincidirem em crimes de lesão corporal grave ou roubo qualificado. Para Túlio Vianna, trata-se de uma maioridade penal seletiva, que teria como alvo o adolescente de classe econômica mais baixa.
“Resta saber se essa mesma sociedade que clama hoje pela redução da maioridade penal vai aceitar amanhã que seus filhos também sejam presos pelas brigas nas quais se envolverem na saída dos colégios; ou pelos insultos aos professores e colegas nas redes sociais; ou pelas violações de direitos autorais na internet; ou pelo uso de drogas; ou por dirigirem sem habilitação. Ou será que a proposta seria punir apenas os adolescentes pobres?”, questiona, em artigo de O Estado de S.Paulo.
“Em quase 90% dos casos, a resposta que o Estado dá é tão ou mais gravosa que a dada pelo sistema penal aos maiores de 18 anos. O problema estaria nos delitos graves, para os quais o Estatuto fixa em três anos o limite da internação sem direito a atividades externas”, pondera Saraiva. Para ele, é necessário discutir aprimoramentos da legislação, mas tendo como parâmetro o próprio ECA e as experiências acumuladas durante os 22 anos de sua vigência.
“É possível estabelecer faixas de responsabilização distintas em face da gravidade do delito, proporcionando mecanismos de defesa social mais eficientes do que aqueles concebidos em 1990.” Ele cita como exemplo o limite máximo de privação de liberdade, fixado em três anos, mas que em países vizinhos como Colômbia e Chile podem chegar a oito e dez anos, respectivamente, de forma similar ao que ocorre na Alemanha, onde esse período pode alcançar dez anos.
Para Luis Valois, o debate sobre a redução da maioridade penal também se relaciona com outras questões. “Boa parte da sociedade, desde a escola primária, não tem nenhuma formação política, e nossa capacidade de engajamento tem diminuído dia após dia. Descrente da atividade política, entrega-se a seus instintos e deixa de raciocinar em termos comunitários, raciocinando somente em termos individuais.
E o que sobra? O egoísmo e a vingança, um instinto não racional”, pondera. Segundo ele, é preciso destacar também o papel desempenhado pelo Judiciário no contexto do discurso repressivo. “Infelizmente, hoje o juiz se vê mais como um justiceiro, e proporcionar um debate nesse meio [o Judiciário] é muito difícil, os movimento sociais poderiam propor possibilidades de solução, mas também estão entorpecidos por essa lógica. Muitas vezes, também clamam por prisão para determinados crimes, e reforçam, assim, um sistema que é contra eles mesmos.”
Vingança não é justiça
No jornal Folha de S. Paulo de 28 de abril, um depoimento vai de encontro a muito do que se fala a respeito da defesa da redução da maioridade penal. Luiza Pastor, jornalista de 56 anos, contou um episódio que viveu quando tinha 19 anos. Estudante da Universidade de São Paulo (USP) à época, ela foi violentada por um menor de idade e, apesar da terrível experiência, se posiciona de forma contrária à redução da maioridade penal.
“A única coisa que eu conseguia pensar era que não devia reagir. Aguentei a humilhação e a violência do estupro, chorando de raiva e vergonha, mas finalmente tudo acabou e ainda estava viva”, lembrou. Na delegacia, soube do passado do agressor. “Egresso de várias detenções, tinha o estupro por atividade predileta, mas sempre se safara. Filho de mãe prostituta e pai desconhecido, havia sido criado pela avó, uma senhora evangélica que tentara salvar-lhe a alma à custa de muitas surras. Era óbvio que algo havia dado muito errado no processo.”
Ao escutar uma “proposta” feita por um policial, que se dispôs a “mandar logo um tiro” no menor, ela rejeitou a ação. “Ainda me chamaram de covarde, por discordar de um justiçamento. E insinuaram que, se eu tinha pena dele, era porque, vai ver, tinha até gostado. Não preciso dizer do alívio que senti ao embarcar, dois dias depois, para fora deste País.”
Em seu depoimento, ela conta como separou o desejo de vingança daquilo que idealizava como justiça. “Eu tinha claro que a vítima, ali, era eu. Que, se tivesse tido ferramenta, oportunidade e sangue frio, eu teria gostado de poder matar o safado que me violentara – e dormiria tranquila o resto da vida. Mas tinha mais claro ainda que a vingança que meu sangue pedia não cabia à Justiça, muito menos àquele que pretendia descontar no criminoso sua própria impotência.”
“Se os políticos quiserem fazer algo realmente eficaz para combater o crime na escalada absurda em que vivemos, terão de enfrentar os pedidos de vingança dos ofendidos da vez e criar um sistema penitenciário que efetivamente recupere quem pode e deve ser recuperado. Sem isso, qualquer mudança nas leis será pura e simples vingança. E vingança não é Justiça”, concluiu Luiza.
A tragédia e o diversionismo
No dia 11 de abril, após o assassinato do jovem Victor Hugo Deppman, o governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB) anunciava que iria encaminhar ao Congresso Nacional uma proposta para aumentar o tempo de internação de adolescentes que cometeram crimes graves. Em 27 de abril, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira, defendeu uma revisão da legislação penal por conta da alegada participação de um adolescente (entre quatro suspeitos, três adultos) no assassinato da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza.
Não é a primeira vez que Alckmin propõe um endurecimento da lei referente a infrações de menores de 18 anos. Em 2003, após o assassinato de um casal de jovens em Embu-Guaçu, região metropolitana de São Paulo, com a participação do adolescente conhecido como Champinha (preso até hoje em uma unidade de internação psiquiátrica), ele fez proposta semelhante. As ocasiões das duas propostas não soam apenas como oportunismo, mas sim uma reação do governador àquele que pode ser o seu calcanhar de Aquiles nas eleições de 2014.
Antes favorito absoluto à reeleição, o tucano viu sua popularidade cair após a onda de violência que recrudesceu no segundo semestre de 2012. “De acordo com o Datafolha, em setembro, 40% dos eleitores consideravam seu governo ótimo ou bom e, em novembro, esse índice foi para 29%. Entre aqueles que apontavam seu governo como ruim ou péssimo, o percentual foi de 17% para 25%.
Em 2013, a capital paulista teve 305 homicídios registrados de janeiro a março, diante de 258 no mesmo período de 2012, um aumento de 18,2%. Também cresceram na cidade os casos de estupro: 867, em 2013, e 688 no primeiro trimestre do ano passado, e o número de roubos e latrocínios, 28.123 casos de janeiro a março deste ano e 27.570 nos três primeiros meses de 2012. Pregar contra a legislação penal para menores parece ser a tática diversionista de Alckmin.
O juiz de Direito Marcelo Semer, em artigo publicado em seu blogue, dá a chave do que pode ser uma explicação para o comportamento do governador. “Talvez seja um pouco mais difícil explicar porque quando os índices de criminalidade baixam, a vitória deve ser creditada à Administração, mas quando sobem, o problema é da lei.”
Fonte: Esta matéria faz parte da edição 122 da Fórum.
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