Escrito por: Allisson Vasconselos Oliveira, Isabelle Fernandes Vieira de Matos Rocha
Resumo: A pós-modernidade tem sido estudada por diversos autores sob variadas perspectivas, destacando diferentes temáticas referentes a esse momento histórico. Um dos temas da condição social atual que tem sido bastante discutido diz respeito ao excesso de individualismo. Em face disso, este artigo tem como objetivo a realização de um estudo sobre a supervalorização do eu junto a representação social. Quanto à metodologia, realizar-se-á uma pesquisa bibliográfica de obras de autores que tratam de questões relacionadas à supervalorização do indivíduo na atualidade, para que possamos ampliar nosso conhecimento sobre o assunto e contribuir para tal tema. A partir disso, foram encontrados nos conhecimentos trazidos por Jung e Freud aportes teóricos para vislumbrar, discutir e analisar a temática em questão.
Palavras-chave: Identidade. Persona. Representação social. Psicanálise.
Palavras-chave: Identidade. Persona. Representação social. Psicanálise.
Ocorre na sociedade contemporânea uma constante exaltação do ego que se traduz na valorização da estética a partir de um hedonismo exacerbado, da juventude, da cultura pop, do romantismo e do presente. Jovens desejam sempre permanecer jovens, e idosos ambicionam o “rejuvenescimento”.
Pode-se dizer que a sociedade adentra-se cada vez mais no estágio estético – apontado por Kierkegaard (1979) em sua obra Ou Isso, Ou Aquilo: Um Fragmento de Vida (1843) –, o qual se caracteriza pelo romantismo e o prazer propiciado pelo agora, ambos marcados pelo desejo, contrapostos à dor e ao tédio.
Apesar dessa busca por prazeres momentâneos, os indivíduos tendem sempre a se apoiar a algo concreto, a alguma característica de si próprios que valorizam de forma constante e intensa. A essa procura por um sustentáculo pessoal, é possível chamar supervalorização da persona em relação ao ego e, até mesmo, de narcisismo, características da sociedade pós-moderna. Essa base pessoal encontra-se na estrutura psíquica dos indivíduos, a qual “se altera de acordo com a máscara social” (MELLO et al., 2002).
Quando os prazeres se tornam escassos e sua persona sofre ameaça, o indivíduo passa a demonstrar-se, com maior frequência, insatisfeito. Como salienta Hegenberg (2007, p. 68), essa insatisfação pode ser resultante de um querer mais e mais, pois o indivíduo sente “um vazio irreparável, um nada, uma frustração contínua fruto de suas comparações com objetos idealizados”. Essa insatisfação limita as visões de mundo do indivíduo e traz problemas a sua autoimagem.
Para exemplificar, mesmo de caráter fictício, é possível citar a personagem Rachel Berry, da série musical Glee, que possui como base de sua vida e de sua personalidade a voz. Tal como aponta Balser e Gardner (2011, p. 220), a voz de Rachel pode ser entendida como uma metáfora para a sua identidade. A personagem mostra-se capaz de tudo para alcançar o sucesso como cantora, e quando se vê ameaçada a perder a voz por causa de uma amidalite, entra em pânico e em profunda tristeza (senão uma depressão). Desse modo, a voz de Rachel também pode ser entendida como uma máscara que esconde seus maiores medos e anseios. Caso ela a perca, perderá também aquilo que esconde o que ela reprime.
Através de concepções diversas, será realizada uma tentativa de explanação dos valores e sentidos que os indivíduos atribuem a suas características físicas.
1. Persona: a Identidade Ideal?
As coisas nem sempre são o que parecem ser – já diz o adágio popular. Assim como a voz não é apenas uma voz, como foi exemplificado, um corpo não é apenas um corpo. É a forma com a qual as pessoas representam-se e criam sua “identidade”.
Identidade, para Stuart Hall (1998), citado por Borges (2004), “é algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato”. Devido a esse processo, que se inicia na concepção e termina na morte do indivíduo, o termo correto a se utilizar seria identificação, que diz mais a respeito ao momento que o indivíduo vive.
Dado como forma de identificação, o corpo é construído através da linguagem. Como afirma Goellner (2010, p. 29), é ela que “tem o poder de nomeá-lo, classifica-lo, definir-lhe normalidades e anormalidades, instituir, por exemplo, o que é considerado um corpo belo, jovem e saudável”.
Dado que a linguagem é a “produtora” do corpo, e como filmes, músicas, revistas, livros, imagens e propagandas são métodos de transpor essa linguagem, pode-se dizer que são eles também responsáveis pela criação de uma imagem ideal, um exemplo ou padrão a ser seguido (GOELLNER, 2010, p. 29). A questão é: o que ocorre com quem não possui formas – sejam elas físicas, financeiras, culturais – para seguir os modelos impostos?
Um grifo interessante pode ser tomado a partir de pressupostos a respeito do Transtorno de Personalidade Boderline (TPB). O indivíduo que não consegue “se adequar” a esses modelos criaria seu ideal do ego, que dele exigiria o máximo. Ele utilizaria todo o seu potencial para alcançar a perfeição, o que seria desgastante e, provavelmente, em vão, logo que seu desejo de se tornar o centro do universo é, de certa forma, impossível de ser realizado (HEGENBERG, 2007, p. 69). Essa busca pelo “centro das atenções” refletiria na criação de uma base, pelo sujeito, para se sustentar: a persona.
Persona, segundo Jung citado por Humbert (1983), seria a forma que o sujeito assume uma personalidade para se adaptar ao ambiente e para com ele se relacionar. Constituir-se-ia, como aponta Mello e outros (2002), de “papeis sociais, tipo de roupa e estilo de expressão pessoal”. Esse termo é derivado das máscaras que atores gregos utilizavam no teatro.
No exemplo citado anteriormente, Rachel Berry produz seu ideal do ego utilizando-se de sua voz: é ela a sua persona, e é com ela que se adapta (ou tenta se adaptar) aos “companheiros não tão talentosos” do coral da escola. Antes de cantar um solo no mesmo episódio, ela afirma que a música escolhida trata de enfrentar desafios, que em seu caso, seriam os colegas que não conseguem prosseguir sozinhos sem tê-la ao lado. Rachel, que sempre teve problemas com sua aparência, com sua personalidade forte (ela mesmo se considera irritante e convencida) e, principalmente, com seu nariz (o que ela deixa claro em um dos episódios seguintes a este, no qual ela adentra-se no dilema de fazer uma cirurgia plástica ou não), tem sua voz como máscara de sua identidade – a representação que ela faz é que a voz é produtora de todo o seu talento. Se ela é como é, como ela mesma explica, é por causa da voz. “Quando Rachel está abalada por ter perdido a voz, ela explica muito claramente o simbolismo por trás dessa perda: quem é Rachel Berry sem sua voz?” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 220). Sua máscara cairia com essa perda, e ela não teria como explicar os motivos de seus atos e anseios.
Existem dois tipos de persona: uma para quando estamos sozinhos e uma para o convívio social. Esta última pode apresentar características positivas ou negativas, variando de indivíduo para indivíduo. Ela pode tanto proteger o ego, reprimindo sentimentos que podem ocasionar tragédias pessoais e desavenças no âmbito social, quanto criar uma identidade mascarada, artificial, contrária aos traços do sujeito (MELLO et al., 2002).
Essa identidade mascarada é aquela produzida através de representações sociais que o indivíduo cria sobre seu próprio corpo. São significados que ele atribui ao seu sustentáculo pessoal, a sua base. Quando essa base encontra-se em perigo, correndo riscos de desconstituição, o sujeito sofre a angústia, a qual se demonstra como constantes pânico e tristeza.
Freud comprova esse pressuposto. Em seu artigo Inibição, Sintoma e Angústia, trata da angústia como um sinal de alarme mediante a um perigo que o indivíduo vivencia, isto é, um afeto do sujeito em detrimento de um risco que o mesmo corre (DANTAS, 2007).
A angústia, afeto indeterminado por excelência, comporta algo de uma memória que, em suspensão, aguarda ser recordada e historicizada. Assim, desde o início, o termo angústia (angst, em alemão), na obra freudiana, designa uma modalidade de medo cujo objeto parece revelar-se obscuro, impossibilitando uma organização e simbolização subjetiva. (DANTAS, 2007)
É perceptível, a partir desse pressuposto de Dantas (2007) com bases em Freud, que a angústia pode ocasionar na destruição da persona, o que seria prejudicial ao sujeito, logo que o mesmo estaria desconstituindo a forma com a qual significou simbolicamente algo.
Após essa síntese da perspectiva da persona e da angústia que, quando ferida, pode refletir-se no sujeito, vamos adentrar no campo das representações do corpo do sujeito, que vai muito além das aparências.
2. Easter Eggs: as Representações Subjetivas do Corpo
Em informática, um termo vem sendo utilizado com grande frequência para descrever surpresas ou características ocultas em determinados jogos virtuais, aplicativos, DVDs e softwares em geral: easter egg (em livre tradução, “ovo de páscoa”). Neste artigo, será utilizado o termo para descrever as características ocultas que o sujeito despende a seu corpo ou a atributos dele (características as quais necessitam de minuciosa análise para serem descobertas).
Pode-se dizer que o corpo é constituído por aspectos objetivos e subjetivos. O primeiro diz respeito ao que se pode ver, à aparência do sujeito, aos adereços que ele apresenta – como brincos, colares e tatuagens, por exemplo –, às marcas etc. O segundo, por sua vez, referencia aos sentidos e significados que o sujeito estrutura profundamente (TEVES, 2007, p. 49).
É facílimo identificar um corpo por seu tamanho, sua largura, sua cor, seu sexo etc., mas exige uma análise constante e intensa se a busca for pelas significações que nele estão ocultas. Os easter eggs são protegidos pela persona, que apenas deixa aparecer um eu idealizado socialmente.
O corpo representa, como afirma Daolio (1995, p. 25) o contexto em que o indivíduo está inserido. Ele é a forma viva da cultura, das capacidades, dos ideais, dos sonhos e objetivos do sujeito. Nossos atos, desde a forma como nos sentamos à maneira como reagimos em meio a uma discussão, são reflexos dos ambientes transpostos em nossos corpos.
Existem, porém, outras significações do corpo. A forma como o sujeito se veste, a valorização que ele dá a sua voz ou ao seu paladar, a maneira como ele trata seu cabelo ou sua pele, são aspectos subjetivos ocultos. São esses aspectos que constituem o eu da psicanálise.
Para Freud e a psicanálise, o eu estaria completamente ligado ao corpo. Muito mais do que isso, seria “uma extensão da superfície corpórea”. “Os processos fisiológicos e os processos psíquicos são interdependentes, fazendo com que o biológico e o simbólico dialoguem desde o início da construção da subjetividade” (FERREIRA, 2008, p. 473).
Todas as representações que o sujeito faz do corpo são, como afirma Ferreira (2008, p. 477), as experiências de vida sintetizadas: são as emoções, os sentimentos, as características do que foi vivenciado, resumidos através de “sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais, sendo também memória inconsciente de todo o vivido relacional”.
A forma a qual o indivíduo atribui sentido ao seu corpo ou a uma característica em especial do mesmo, como afirma Ferreira (2008, p. 480), é constituída através de uma percepção, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Na perspectiva da construção individual, o indivíduo produz uma imagem de si com a qual é capaz de apresentar-se ao meio social, enquanto que, na perspectiva coletiva, ele é moldado através do capitalismo que “exige” que busque aparatos para se adequar a sociedade contemporânea.
O indivíduo, porém, não deve ser apenas passivo quanto aos padrões socioculturais. O capitalismo exige muito mais: quer que o sujeito lance tendências que sejam seguidas para em seguida investir, tornando-as também padrões (FERREIRA, 2008, p. 481). Poder-se-ia dizer que essa seria uma relação de mutualismo, mas como apenas uma das partes mostra-se realmente beneficiada, o termo correto a se utilizar é parasitismo, logo que o capitalismo retira do indivíduo o máximo, e não o devolve de forma justa.
Pode-se dizer então, que a própria subjetividade que o sujeito não deixa transparecer é controlada, e que os sentidos atribuídos por ele (e não estão visíveis) não são livres de mediação social. Os easter eggs do corpo, apesar de ocultos, são de certa forma, fáceis de serem manipulados e modificados. Toda representação do corpo, pode-se dizer, é controlada por “forças sociais”, que atuam sobre ele e, em seguida, se mascaram, não se deixando mostrar. Nada o que fazemos ou vivenciamos está realmente livre.
Conclusão
Este trabalho teve como intuito contribuir para o debate acerca dos sentidos dados ao corpo no conjunto da sociedade, e ressaltar que o corpo se encontra nessa encruzilhada entre o ego e a sociedade, entre a natureza e a cultura, entre o biológico e o simbólico.
Diferentes formas de construção da imagem do corpo são dadas através da propagação da estética, da busca por um padrão perfeito, o que reflete em grandes conflitos subjetivos. O eu ideal se constrói por meio de diferentes pedagogias, as quais podem ser encontradas nos mais diversos meios de comunicação e mídia.
O que o indivíduo deve perceber é que ele não é apenas o corpo. Algumas vezes, um choque de realidade é o bastante para a modificação da visão do indivíduo. Rachel Berry, a personagem citada no artigo, por exemplo, descobriu que é muito mais que sua voz, quando se viu em meio a uma pessoa que achava que sua vida era a capacidade de correr, jogar futebol, enfim, que perdeu completamente o movimento do corpo e ainda conseguia ser feliz. Em contrapartida, na maioria das vezes, o choque não é o bastante para mudança de concepção, e o sujeito requer análise e terapia, podendo exigir muito tempo.
A política da sociedade busca encaixar as pessoas em categorias convenientes a ela, sendo bonito, feio, gordo, magro, nerd, popular, louco, inteligente e gay são alguns deles. Por mais fácil que seja viver sobre um rótulo, como são apenas máscaras que escondem o verdadeiro eu, serão quebrados. A compreensão sobre si mesmo e a busca de agradar a si e não a sociedade se mostra como o melhor método de superar esse desafio social.
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