NAÇÃO NAS RUAS
As manifestações que tomam as ruas de nosso país, como antes inundaram as de diversos outros e, ainda agora, em outros ou nos mesmos ainda se encontram, são caracterizadas como um “movimento”, o movimento de uma “multidão”. Por que chamamos de “movimento” um fenômeno político de tamanha significação? E, de outro lado, pelo fato de se tratar de uma multidão, como se pode ouvir nos dias que correm de argutos analistas políticos, estaríamos diante de um fenômeno pré- ou, mesmo, a-político? A tentativa aqui empreendida, ou meramente esboçada, vai no sentido de contribuir para que aumente a consciência das multidões envolvidas nesses movimentos, tomando consciência desse emprego, já claramente político, de tais palavras.
Movimento, sabidamente, é noção oriunda da física, desde os pré-socráticos, divididos entre o panmobilismo heracliteano — retomado só em Hegel, como também em Marx, Nietzsche, Bergson, Heidegger, estes já sob a influência da física de seu tempo — e o imobilismo dos eleatas, Parmênides a frente, assumido em Atenas pela vertente socrático-platônica que em Aristóteles culmina em tentativa de conciliar as posições antagônicas, pois o Estagirita tudo pretendia explicar, até os sonhos, pelo movimento, a kinesis, atualizadora ou, literalmente, “energizadora” da potência (dynamis). O movimento teria sido gerado, ou melhor, causado pelo primeiro motor ou “movedor”, oTheos, Deus, Ele próprio imóvel, bem diverso daquEle tido no judaísmo como ativo, criador, ausente, mas devidamente representado por seu espírito e um filho primogênito (atenção: não unigênito), gerados, criados, simultânea e reciprocamente, filho este que veio a nascer, ingressar biologicamente na história humana segundo o cristianismo, nosso pano de fundo cultural e, para muitos, também, cultual. Em torno de Jesus, no termo grego empregado pelos evangelistas, reuniam-se as pessoas em uma ochlos, uma multidão, na tradução de São Jerônimo. Não se tratava, portanto, de um povo, organizado, a que se referiria melhor com a palavra laos, nem da população de determinada circunscrição territorial, como era o demos. E é a essa multidão que Jesus dirige suas palavras de evocação do amor, o qual não seria mais a philia que os uniria em agrupamentos políticos, como amigos e “filiados” à mesma comunidade, por definição contraposta à de outros, seus inimigos ou circunstancialmente aliados, mas sim o ágape, capaz de reuni-los como membros de uma fraternidade universal, enquanto filhos todos do mesmo Deus-Pai.
Multidão é termo que adquire uma centralidade espectral no léxico político da modernidade, enquanto sombra daquele que é assumido como o eixo em torno do qual a política se desenvolveria nesta época, ou seja, a soberania, assumida como propriedade transferida da ordem teológica e da Igreja, dirigida pelo “vigário de Cristo”, ou seja, o seu vice, o Papa, sendo este entendido como o representante do verdadeiro Pai, que reina sem governar, governo transferido, pelo filho, para a sua igreja, e que veio a se tornar secular no processo de modernização, sendo os artistas os primeiros que exerceram tal soberania, entendida como autoria, criação, no que é exemplar a consagração na Itália de Dante Alighieri. Mas foi um outro italiano, Maquiavel, quem nos seus Discorsi (cf., v.g., caps. XIX, XLIV, LIV) dá ao termo multidão sentido propriamente político, e negativo, enquanto passível de se tornar, como hoje dizemos, “massa de manobra” por parte de lideranças habilidosas, além de seu caráter intrinsecamente anômico, anárquico, imprevisível, potencialmente antagônico e destrutivo da ordem representada pelo Príncipe, o soberano. De forma similar, embora com maior riqueza de detalhes e sofisticação, segue o outro fundador do pensamento político moderno, Thomas Hobbes, opondo o Behemoth da multidão ao Leviathan formado pelo contrato social que reúne o povo em um corpo político unificado, ordenado e obediente ao báculo da religião e à espada da lei que ele carrega em suas mãos. Tais temores encontram-se incutidos em muitos dos que hoje tendem a rejeitar as manifestações, pondo-as, no mínimo, sob suspeita e, no limite, evitando sair de casa, aferrando-se à falsa sensação de segurança que lhes transmite o imobilismo.
Uma visão mais positiva da multidão irá parecer em Spinoza, já no seu Tractatus Theologico-Politico, quando afirma que o temor da potentia da multidão estabelece um limite ao poder soberano (potestas). Mais claramente, em sua obra póstuma, última a que se dedicou o grande pensador judeu-holandês, de origem portuguesa (por parte de mãe), o Tratado Político, a indignação da multidão é tida como o que pode melhor se antepor ao domínio do soberano para assim estabelecer uma base mais sólida para o exercício do poder político de maneira compartilhada com seus súditos que, assim, diríamos em linguagem atualizada, se tornariam cidadãos. As idéias de Spinoza são retomadas pelo teórico contemporâneo Toni Negri, inicialmente em A Anomalia Selvagem, e, mais recentemente, em obras já célebres em co-autoria com seu aluno Michael Hardt.
Bem, um fenômeno correlato ao das multidões vem caracterizado desde pelo menos a década de 1830, durante a Revolução de julho na França, como sendo um “movimento”, posto que naquele momento ao “partido da ordem” se contrapunha um “partido do movimento”, assim como entre nós, na última ditadura militar, o partido de oposição consentida se denominou Movimento Democrático Brasileiro, depois convertido no atual Partido do Movimento Democrático Brasileiro — e no momento se discute a fusão entre o PPS e o PMN sob a denominação de “Movimento Democrático” —, sendo muitos os exemplos de movimentos políticos, comunistas ou nacional-socialistas, que entre os séculos XIX e XX se tornaram partidos. Em obra seminal deste período, a História do Movimento Social na França, de 1850, Lorenz von Stein contrapõe o “movimento”, neste sentido sócio-político, à noção político-jurídica de Estado, assim como, um século depois, Hannah Arendt, em sua obra sobre o totalitarismo, o oporá aos partidos, e então ele seria como um elo entre os dois fenômenos, situando-se na zona cinzenta em que se unem, assim como também se distinguem a política e sua forma jurídica, ou o direito e seu conteúdo político. Paradigmáticas a respeito podem ser tidas as colocações de Carl Schmitt, em texto retomado em meados da década passada por Giorgio Agamben, debatendo diretamente com o antes referido Toni Negri, valendo-se de estratégia que teve muitos adeptos, a saber, a de pensar a partir de categorias propostas pelo autor da Teologia Política e tantas outras obras célebres, “desnazificando-as”. E seu texto, como aparece no próprio título, um dos que demonstra de maneira mais explícita seu apoio à política nazista, Schmitt procura distinguir, visando articulá-los em uma unidade política (é o que indica o subtítulo do artigo) o Estado, o movimento e o povo, retomando lições de von Stein, mas também de autor clássico que constava dentre os seus prediletos, Thomas Hobbes. De maneira exemplar, a concepção hobbesiana servia como uma espécie de antídoto ao romantismo político liberal e sua forma de agir de maneira improdutiva, ao manter-se no que Schmitt (des)qualificava como o regime da “discussão infinita”, esvaziando o conteúdo da política, desvitalizando-a, seja em favor de uma dimensão ético-jurídica, como no liberalismo, seja em favor daquela econômica, no socialismo — embora, no texto em apreço, Schmitt argutamente reconheça similitude entre o que ocorria na Alemanha e na União Soviética, naquele momento. Daí que por força do referido romantismo, assim na política, como na arte — e, de certa forma, na filosofia política, em Agamben e outros admiradores do personagem Bartleby de Melville e seu “I´d rather not” — termina se disseminando sub-repticiamente, no “estado civil”, uma forma de vida conduzida por lemas tais como “ubi nihil valis, ibi nihil volis” (“onde nada se vale, nada se há de querer”), ao qual se contrapõe aquele próprio do “estado de natureza”, tal como entendido por Hobbes: “ubi nihil valis, ibi nihil timeam” (“onde nada se vale, nada se há de temer”). O movimento político, então, para Schmitt, será entendido como o único elemento verdadeiramente político na tríade que se articula para garantir a unidade político-constitucional, e o movimento é entendido agora antes como um fenômeno biológico, orgânico, do que físico, mecânico, sendo a partir dessa concepção que em Hobbes e na mais recente modernidade é concebido o Estado, com sua maquinaria e aparato de repartições tendendo à inércia, de acordo com o entendimento moderno a respeito do movimento na física, enquanto o povo resultará de uma multidão movimentando-se como corpo vivo, dinâmico, que tem em si mesmo a causa de sua locomoção, já no entendimento clássico aristotélico, mas que necessita de quem o dirija, o dirigente, Führer, em alemão. Estaria certo, então, Hobbes quando associava a democracia — e, por isso, dela desconfiava — a uma forma de governo ainda muito próxima do estado de natureza, a se desenvolver no sentido de uma maior unificação e crescimento (Schmitt se vale do termo Wachstum, aplicado ao crescimento de plantas e animais) do corpo político que se transforma em Leviathan, deixando de ser Behemoth. Pois é neste Leviathan que não suportam mais viver os que saem às ruas em multidões dispostos a enfrentar o seu braço armado e do que menos precisam é de lideranças, dirigentes, pois querem inicialmente experimentar a força recuperada dos que lhe usurparam para uso deturpado, em grande parte com seu consentimento bem-intencionado, por demasiado tempo, o poder. Muito significativo, portanto, é que o movimento tenha se iniciado entre nós como protesto contra o aumento de passagens em transportes públicos, que, assim, dificultariam ainda mais a já difícil e sofrida movimentação em nossas cada vez maiores e congestionadas cidades.
E quem estava nas nossas ruas e nelas permaneciam a maior parte de suas vidas, fora de automóveis evidentemente, antes de tantos acorrerem a elas, politizando-as? Aqueles que não tinham nada a perder na vida a não ser essa mesma vida, apolítica, zoé, ao invés de bios, na contraposição celebrizada por Agamben (de resto, contestada por Derrida, no primeiro volume de uma coletânea de seminários seus,O Soberano e a Fera). Eles, os sem-teto, sem que soubessem ou soubéssemos, eram e são como aqueles refugiados “despatriados”, forçados ao deslocamento, ao movimento, eventualmente cercados em campos de concentração, de duração indeterminada, que em artigo de 1943, intitulado “We refugees”, tal como ela então, Hannah Arendt conceituou como a vanguarda de seu povo, da “comunidade que vem” a que se refere Agamben, retomando-a, aquela que será uma nação, agora não mais porque nascida em determinado território ou sob a égide de um certo, apesar de sempre incerto, Estado, de soberania cada vez mais fragilizada, enquanto soberania nacional, afirmada como supremacia sobre os nascituros, nascidos e mantidos vivos por obra e graça do “mortal God”, o Deus mortal e mortífero que é o Estado, na célebre definição de Hobbes. A nação que estamos vendo nascer com o movimento das multidões nas ruas de nosso país, ao final do primeiro quarto de século de vigência da Constituição da República de 1988, a Constituição que antepôs os direitos ao Estado, é a nação dos que sabemos não estarmos tendo tais direitos assegurados, a nação dos que sabem terem direitos a direitos e garantias pelo simples fato de terem nascido, de existirem, mas que não basta que isso seja dito ou escrito, pois é preciso que seja feito, feito por nós, e não por eles para nós, pois assim fazem mais para eles, e menos por nós. A nação nova não deve gerar, como no passado, um nacionalismo, mas sim um humanismo que não é teocêntrico, antropocêntrico ou biocêntrico, mas sim policêntrico, agápico. Que surja daí, também, uma nova soberania, que não é aquela usurpadora, dos que se dizem representantes da nação, mas a da nação mesma, nas ruas, rejeitando e, assim, derrubando, desde decretos de aumentos tarifários a Propostas de Emedas Constitucionais.
Cabe ainda uma nota sobre a violência produzida no âmbito do movimento da multidão, resultado normal da sua transformação no que tecnicamente se denomina uma massa, tema de que Elias Canetti, talvez mais e, também, melhor que ninguém se ocupou no século XX, avançando em relação a posições que exaltavam as massas (Marx e marxistas) e também que as desqualificavam (Le Bon, Freud, Ortega y Gasset), como uma manifestação regredida do ser humano, tal como ainda hoje vemos presentes entre nós, nas análises predominantes nos meios de comunicação. Em conexão com esse tema podemos vislumbrar igualmente o papel das novas mídias, dentre as quais se incluem as redes sociais, responsáveis diretas pela capacidade de arregimentação das multidões, sem a intermediação de qualquer estrutura organizacional de dimensões equiparáveis. Lembremos que essas mídias são novas comparadas com aquelas tradicionais, de “comunicação de massa”, em que o destinatário é um mero paciente da comunicação, propício a se tornar aquele assujeitado ao poder disciplinar, teorizado por Foucault e, na esteira dele, também Deleuze, alguém que só é reconhecido para ser mais eficientemente sujeitado e, podemos completar, com exigências cada vez maiores de performances eficientes. As novas mídias resgatam a dignidade desses destinatários, agora tornados também emissários e sujeitos agentes da comunicação generalizada. Assim, aqueles que se individualizam e diferenciam por meio das novas mídias, enclausurados voluntariamente em frente às suas telas de pc´s e outras, vivendo como nunca antes a virtualidade e o caráter imaginário da realidade humana, devem se tornar mais propícios a formarem, em seu isolamento, o que Canetti conceituou como “cristais de massa”, que uma vez em contato com a multidão, desencadeia a violência contra o que não reconhece mais como seu igual, ameaçando-lhes o estado em que se encontram, de igualdade e indiferenciação com tantos outros, e então reagem, encorajados pela sensação de maior poder assim adquirida. Note-se que a violência teve como alvos símbolos e representantes dos poderes estabelecidos, havendo também os que a ela se contrapuseram, corajosamente.
Para concluir, vale ainda lembrar que neste junho de 2013 ocorre no Brasil algo que parece só encontrar paralelo, antes das atuais manifestações similares em outros países, naquele maio de 45 anos atrás, em Paris, quando também tudo parecia ir bem, econômica e socialmente, mais uma vez comprovando-se que não somos seres de meras necessidades, mas sim, desejantes. Para sermos realistas, desejamos, o impossível de ser satisfeito, mas necessário de ser buscado. Que consigamos finalmente retomar o projeto democrático inicial, corrigindo o seu nacionalismo e caráter excludente, reunidos em uma ágora eletrônica que também toma corpo e se movimenta, em massa, como multidão, pelas ruas e estradas, vias reais em que desejamos livremente transitar.
Willis Santiago Guerra Filho é professor titular do Centro de Ciências jurídicas e Políticas da universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, professor permanente dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da PUC-SP, doutor em Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha, doutor pós-doutor em filosofia pelo IFC-UFRJ.
Revista Consultor Jurídico
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