O campo progressista na AL está às voltas com o desafio de reordenar o câmbio, o que implica definir o poder de compra real dos salários no novo ciclo econômico
por: Saul Leblon
Um dos maiores gargalos do país é a ausência de espaço para a discussão madura das opções, dos custos e requisitos à ordenação de um novo ciclo de crescimento brasileiro.
Sem esse escrutínio, a coisa não anda. Patina-se no vale-tudo onde a serenidade e o disparate se ombreiam na mesma irrelevância.
A paralisia só é boa para quem aposta no desgaste como via de rendição da sociedade a purga saneadora prescrita pela ortodoxia.
Uma hora cansa e a gororoba é empurrada pela goela.
Ou não terá sido assim que aconteceu na Espanha? Com as ruas tomadas pelos ‘indignados’, o país elegeu o PP (o demos de lá)e deu plenos poderes ao premiê Mariano Rajoyna Câmara.
Para fazer o que?
O arrocho espanhol elevou a taxa de desemprego no país a fantásticos 26%. Em média. No caso da juventude vai a 50%.
‘A esperança da ortodoxia, para amenizar o cenário, é que a migração retire do mercado espanhol uns 300 mil a 500 mil jovens por ano’, informa o correspondente de Carta Maior em Londres, Marcelo Justo.
O país está à beira da deflação, a exemplo do espectro que ronda todo o ambiente europeu.
Cortes suicidas de preços se multiplicam diante de um consumidor empobrecido que adia sua compra no aguardo de novas baixas.
Foi assim na Depressão norte-americana, em 1929, que esfarelou a indústria e despejou metade da mão de obra na rua.
Mas os bancos saúdam a ‘recuperação conduzida por Rajoy’ e os replicantes tropicais da via espanhola não se intimidam.
Manipulação de prioridades e indução de expectativas, eis o combustível conservador desse jogo perigoso.
As sirenes do colapso iminente – ‘se não for hoje, de amanhã o Brasil não passa’--completam um repertório que alimenta o descrédito na ação pública e em todo o sistema político.
A cereja do bolo é a corrupção, que como sabemos é sistêmica nos governos do PT. Será sempre pontual no caso da coalizão conservadora.
Toneladas desse ácido corrosivo banham o espírito da sociedade diuturnamente.
A ardilosa montanha-russa eleva as expectativas para em seguida frustrá-las com a porretada do desencanto.
A reportagem da Folha deste domingo sobre a conversão do sistema elétrico aérea em subterrâneo condensa em ponto pequeno o mecanismo.
Primeiro, atiça-se o apetite da classe média com o miraculoso recurso do photoshop.
Vejam quão bela ficaria a emergente Vila Olímpia sem a maçaroca aérea de cabos que nos equiparam a um Haiti. Agora, comparem a magnífica Paris isenta dessa teia asfixiante; e como ficaria degradada se tivesse fiação equivalente a de São Paulo.
Ótimo. Aos custos: uns R$ 120 bilhões para o enterramento da fiação em toda a capital. Três vezes o orçamento da prefeitura.
Essa é um dos destaques do jornal que diariamente açula a revolta dos munícipes contra o reajuste indispensável do IPTU para mitigar urgências da metrópole colapsada.
Em frente.
No edição dominical do Estadão, o tucano FHC vai mais fundo.
Ele atribui o ‘caos urbano’ aos governos petistas ‘que puseram em marcha’, diz,‘uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos a prazo mais longo’.
Para não esquecer: quem pontifica é aquele em cuja gestão o Brasil quebrou três vezes e na qual um apagão engessou o curto prazo da economia, enquanto um juro real de 10%condenaria o longo prazo à gaveta.
“O futuro chegou’, esponja-se agora um FHC professoral:“ (chegou) na esteira da falta de investimento em infraestrutura (...) e do gasto das famílias via crédito fácil, empurrado pela Caixa Econômica Federal. Os reflexos aparecem nas grandes cidades pelo país afora: congestionamentos, transporte público deficiente, aumento do nível de poluição atmosférica etc.”
Afinal, o que o sociólogo de estilo sonolento está propondo?
Um capitalismo sem crédito? Uma bicicleta sem pedal?
Bem que ele tentou: no ciclo FHC a relação crédito/PIB ficou estagnada em 26%, contra 54% agora.
Administrar a demanda agregada, tudo bem, mas um capitalismo sem crédito destina-se exatamente a quem?
O capitalismo sem demanda é funcional à supremacia dos mercados financeiros.
A baixa atividade mantém a senzala recolhida aos bantustões.
O trânsito fica menos carregado, os aeroportos mais livres; o desemprego de 12,5%no ciclo do PSDB (hoje é inferior a 6%) evidenciava a anemia geral contabilizada na queda da receita fiscal.
Nenhum problema: o endividamento público, lubrificado por um juro real de 10% ao ano (hoje é de 3%), abastecia os cofres do Estado e alegrava o rentismo.
Essa é a coerência para a qual a o ziguezigue conservador quer nos empurrar novamente.
Parece redondo.
Exceto por um senão: o juro alto atrai capitais especulativos, que valorizariam ainda mais um Real já adverso à competitividade da indústria atrofiada pela importação barata.
O desafio do câmbio é uma agenda presente hoje em boa parte da América Latina.
Não é uma questão técnica.
Câmbio e inflação são almas gêmeas.
A taxa de câmbio define qual será o poder real de compra dos salários.
O câmbio qualifica o trânsito para um novo ciclo econômico; em certa medida antecipa seus vencedores e perdedores; ele determina a inserção da economia no quadro mundial, o papel da exportação e da indústria (onde ela existe) e o tipo de emprego e de mercado interno que se deseja incentivar.
É por conta dessas implicações delicadas que mesmo governos progressistas usufruíram passivamente do confortável ciclo de alta liquidez internacional que valorizou o câmbio e o poder de compra local.
O ensaio de recuperação norte-americana prenuncia a inversão dos fluxos de capitais, que viajam de volta aos papéis de longo prazo do Tesouro, em detrimento dos países em desenvolvimento.
A travessia cambial explica a tensão do debate econômico no interior do bolivarianismo venezuelano; constitui um divisor dentro do peronismo argentino e está subjacente à discussão do passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.
O choque de juros preconizado por tucanos e assemelhados tem o predicado de precipitara direção do ajuste definindo o lombo onde recairá a chibatada cambial mais dolorida.
Talvez precise da polícia para colocar ordem na fila do pelourinho.
Mas para quem, como a Folha deste domingo, discute seriamente Ruanda (45% de pobreza)como o país ‘top reformer’, um paradigma das mudanças amigáveis ao ambiente dos negócios, tudo bem.
O ponto a reter é que há decisões estruturais batendo na porta da economia brasileira.
A urgência procura um espaço maduro para um debate complexo.
O oposto do oferecido pela sofreguidão indigente que exala da leitura dominical da mídia conservadora
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