“Existe hoje no Brasil, pela primeira vez desde os anos 1970, um duro questionamento sobre as regras do jogo. Por isso, diz-se que vivemos em um ‘momento constituinte’”, afirma o jurista.
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O atual momento social e político do Brasil, onde se evidencia “melhora dos indicadores de vida” e “o esgotamento das instituições políticas”, reflete o fato de que a “maior parte das esquerdas deixou de propor uma alternativa ao sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele”, avalia Hugo Albuquerque, em entrevista concedida àIHU On-Line, por e-mail.
O jurista compara as manifestações que estão ocorrendo no país desde junho com o movimento europeu de maio de 68. “Cá como lá, a tensão entre as esquerdas que pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que desumaniza e objetifica qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. Ambas as experiências mostram que a tentativa de humanizar o sistema levou à desumanização de quem pretendeu isso”, pondera.
Hugo Albuquerque interpreta as manifestações recentes como uma manifestação da “multidão”. Tal conceito, explica, representa “uma expressão de coletividade humana que emerge não pela homogeneidade, como o ‘povo’ ou a ‘sociedade’, mas sim por diferenças intensas que se desdobram continuamente. O Quilombo dos Palmares e uma série de outros eventos resistentes da nossa história são multitudinários”. A diferença, entretanto, das manifestações de anos atrás com as de hoje está amparada na “revolução das tecnologias de informação e comunicação”, que criou, “em escala global, uma disposição multitudinária da vida e do trabalho. Essa é a novidade, a maneira como a multidão emerge historicamente”. E acrescenta: “O Black Bloc e o avanço do anarquismo e do autonomismo entre os jovens, em detrimento do partido e das bandeiras socialistas clássicas, são uma marca deste novo mundo”.
Albuquerque refuta as críticas de violência feitas aos Black Blocs e afirma que, ao avaliar o movimento, “o que importa não é a violência física, nós não vivemos em um sistema no qual a violência física realmente importa, não estamos na Idade Média: a modernidade se assenta sobre violências psicológicas, sujeições voluntárias e que tais. No caso, imagino que algo como o Black Bloc incomode por ser uma organização horizontal, anônima e de multidão: eles não podem ser efetivamente passíveis de uma ordem, não têm nome. Por outro lado, os movimentos reivindicatórios precisam sair da estética e chegar à política”.
Hugo Albuquerque é jurista e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Faz parte da rede Uninomade e é editor do blog www.descurvo.blogspot.com.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Que semelhanças percebe entre o Brasil de hoje e a Europa dos anos 1960, à época de maio de 68, considerando as manifestações que aconteceram em ambos os lugares?
Hugo Albuquerque - As semelhanças são enormes. O Brasil dos anos 2010, a exemplo da Europa do final dos anos 1960 e 1970, vive um cenário paradoxal: de um lado, registramos uma grande melhora dos indicadores de vida, enquanto, de outro, o esgotamento das instituições políticas, sobretudo porque a maior parte das esquerdas deixou de propor uma alternativa ao sistema para, vejamos só, tornar-se parte dele e, quem sabe, dar-lhe uma face mais humana. Só que cá como lá, a tensão entre as esquerdas que pretendem humanizar o Estado, e o capitalismo, e todo esse sistema que desumaniza e objetifica qualquer um, terminou por piorar as esquerdas. Ambas as experiências mostram que a tentativa de humanizar o sistema levou a desumanização de quem pretendeu isso. Aliás, até antes disso, a Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial experimentou algo parecido, tanto queWalter Benjamin já fazia a crítica das políticas social-democratas, isto é, o profundo equívoco daquelas em venerar o progresso técnico e construir a emancipação humana pelo aumento do Estado — como se fosse possível racionalizá-lo e transformá-lo em um agente transformador.
As esquerdas brasileiras atuais, surgidas do ciclo de lutas dos anos 1970 contra a Ditadura Militar, intuíam já no nascedouro uma certa crítica à social-democracia — e à União Soviética —, mas ao mesmo tempo possuíam uma ilusão com o progresso técnico e o estado de bem-estar social. Dilma fez uma opção pelo gerencialismo em vez da política, pondo fim a essa ambiguidade, que foi uma das grandes marcas do governo Lula, embora para melhor. É claro, as lutas brasileiras dos anos 1960 e 1970 foram culturalmente muito influenciadas pelo Maio de 68, mas aqui tinham outra natureza política e histórica, do mesmo modo que a globalização, a revolução comunicacional e o giro produtivo geram ao mesmo tempo uma onda de levantes multitudinários pelo mundo, mas eles têm diferenças temáticas importantes de canto a canto — no caso, o Brasil parece muito a Europa de antes.
IHU On-Line - Quais são os reflexos das manifestações de junho hoje, cinco meses depois?
Hugo Albuquerque - Existe hoje no Brasil, pela primeira vez desde os anos 1970...
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