RETROSPECTIVA 2014
2014 foi um péssimo ano para o Direito de Defesa. Ouso dizer que foi um dos piores anos da última década.
Acredito que a derrocada tenha começado mais precisamente em 2012, com a mudança radical —e para pior — na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação ao cabimento do Habeas Corpus. Sob a alegação da banalização do uso do remédio heroico, os tribunais superiores passaram a exigir a interposição de recurso ordinário em vez do comumente chamado HC de HC. Curioso notar que mesmo após a publicação de uma importantíssima pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas/RJ1mostrando de forma bastante contundente que o problema não está na suposta banalização do writ e sim na intransigência – para dizer o mínimo – dos tribunais de Justiça, as ordens continuam a ter seu seguimento negado.
Sim, os números da pesquisa em questão são reveladores: quase 44% dos Habeas Corpus em trâmite perante o Superior Tribunal de Justiça têm como autoridade coatora o Tribunal de Justiça de São Paulo e os temas predominantes estão longe de mostrar grande complexidade. A imensa maioria das impetrações versa sobre questões praticamente pacificadas nos tribunais superiores. Ou seja, temos (temos?) muitos HCs no STJ porque os tribunais estaduais aplicam jurisprudência diametralmente oposta à desse superior tribunal.
A solução para conter o avanço numérico dos recursos foi a pior possível: restringir uso de tão cara peça de liberdade e de defesa. Afinal, aumentar o número de ministros, investir nos tribunais de Justiça e modernizar como um todo o Judiciário dá muito trabalho, não é mesmo?
Do outro lado do tabuleiro temos as centenas de milhares de presos (e vocês sabem que “nossos presos são quase todos pretos ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres”). E todos eles – brancos, pretos ou amarelos – mofam na ociosidade do nosso sistema carcerário.
Se alguém fosse preso hoje, com o recesso forense e supondo que tal prisão ocorrerá na comarca de São Paulo, tal pessoa veria um juiz de Direito pela frente, numa perspectiva otimista, lá pelo mês de abril. Ah, mas diriam os menos crentes: “Basta contratar um advogado de peso que o prazo não seria esse”. Balela, folclore. Dinheiro pode sim trazer acesso mais integral e rápido à Justiça mas em quinze anos de advocacia criminal nunca vi notoriedade e importância antecipar pauta de audiência.
O que temos hoje, na mais pura realidade, é um sistema de Justiça criminal absolutamente ultrapassado e falido.
Começando por uma política de segurança pública exclusivamente repressiva. A palavra de ordem é prender. Furto? Prende! Pequeno traficante? Prende! Centenas de réus primários envolvidos em crimes cometidos sem violência? Prende!
A prisão tornou-se a resposta para tudo. Para o problema social, para o problema de saúde pública, para a pressão da sociedade pseudo ordeira, para os órfãos do papo do saudoso sofá da Hebe Camargo...
O legislador, a academia e as outras raras vozes dissonantes, algumas vezes conseguem emplacar uma ou outra boa ideia. Vejamos o caso da Lei 12.403/11, a famosa Lei das Cautelares Penais. O texto foi motivo de (justos) aplausos. Hoje, o que se vê na prática é que o resultado da lei foi justamente na contramão daquilo que pretendíamos. Presos que normalmente teriam sua prisão revogada, seja em flagrante, seja preventiva, sem qualquer óbice, agora veem sua liberdade atrelada a uma condição que, por muitas vezes – pasmem –, é inexequível. A fiança é o melhor exemplo. Não são raros os casos em que o preso simplesmente não é colocado em liberdade porque não tem condições de arcar com o valor da fiança imposta. Pune-se, portanto, duas vezes: com uma prisão evidentemente desnecessária e depois por ser o acusado pobre.
Há em trâmite um projeto de lei que reputo como essencial para começarmos (eu disse começarmos) a tratar do problema. O PLS 554/2011.
O Brasil é um dos poucos países da América que não tem em seu ordenamento jurídico a chamada audiência de custódia. O projeto de lei, com atraso de algumas décadas, prevê justamente isso: todo preso deverá ser levado a um juiz em um prazo máximo de 24 horas após sua prisão.
Tal apresentação serve para uma série de verificações. Se ocorreu tortura ou maus tratos durante a efetivação da prisão; se a presa, por exemplo, está grávida e precisa de cuidados especiais; e, principalmente, se aquela prisão é legal e necessária.
Em miúdos, funcionaria assim: o sujeito é preso; em vez de aguardar horas em pseudo carceragens de distritos policias até que o transporte oficial o leve para um dos centros de detenção provisória espalhados pela cidade, esse mesmo sujeito seria levado ao fórum. Ali, aguardaria a distribuição de seu caso para um juiz que de pronto analisaria sua prisão à luz do texto legal. A prisão é ilegal, desnecessária ou pode ser substituída por alguma medida cautelar? Ótimo. O sujeito, do fórum, já vai para casa.
O impacto disso seria evidente. E evidentemente positivo.
Mas como sempre, e como já diz o ditado, precisamos combinar com os russos...
Os primeiros russos que fazem oposição ao projeto de lei são os que vivem isolados em iglus na Sibéria. Vejam só. A Polícia Federal se mostrou veementemente contrária ao projeto, sob a alegação de que o prazo de 24 horas não poderia ser cumprido, já que muitas prisões ocorrem nas fronteiras e nos rincões do nosso país, a PF propõe a rejeição da inovação legislativa. Ora, ora, caro leitor, muito cá entre nós, quantas prisões em flagrante faz a Polícia Federal no ano?
Os segundos russos são mais conhecidos. Infelizmente em recente nota técnica assinada pelo Procurador-Geral, o Ministério Público de São Paulo se posicionou contra ao PLS. Os argumentos são vários, desde questões relativas ao custo da implementação do projeto (?!) até que a audiência em questão espantosamente trará maiores ônus à sensação de impunidade e de insegurança.
Fato incontroverso, vide experiência nos quatro cantos do mundo, a audiência de custódia quando implementada trará resultados positivos. Prisões desnecessárias, mesmo que apenas uma, serão revistas em razoável espaço de tempo e a odiosa prática de maus tratos e torturas que infelizmente ainda ocorrem devem ser mais efetivamente inibidas.
Por fim, para coroar o ano de 2014 com o prêmio de Ano do Vilipêndio ao Direito de Defesa, temos a inovação legislativa sumária de modificação do artigo 312 do Código de Processo Penal.
Sim, sem passar pelo Congresso Nacional nosso CPP foi alterado. Agora temos como mais uma justificativa para a decretação da prisão preventiva: o silêncio.
Prende-se para que o acusado preso fale! E quem não fala (seja para uma confissão ou seja para a “menina dos olhos dourados”, a delação premiada) fica preso.
Ao menos os inimigos dos Direitos e das garantias fundamentais têm rosto e nome, já que tal afronta aos mais básicos preceitos Constitucionais estão ali para quem quiser ler, seja em despachos, pareceres ministeriais e até acórdãos.
Finalizo esse quase desabafo dizendo que é evidente que o índice de criminalidade em nosso país atingiu níveis insustentáveis. É certo também que o combate à corrupção endêmica que corrói as instituições deve ser prioridade de qualquer governo, em todos os níveis. O que não podemos, sob pena de negar os avanços democráticos alcançados nas últimas décadas, é passar por cima da lei para resolver as questões. Não podemos também, seja por razões eleitoreiras, seja para agraciar a opinião pública, editar novas leis de caráter meramente repressivo e cerceadoras de direitos para supostamente conter o avanço do crime. Isso não funciona e nós sabemos disso.
Bom, acredito que tenha falado mal de tudo e todos que merecem.
Espero um 2015 mais fraterno, menos violento, mais respeitoso e mais igual. Para todos.
1http://www.fgv.br/supremoemnumeros/visualizacoes/cfilter-ipea/index.html
Augusto de Arruda Botelho é advogado e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Revista Consultor Jurídico
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