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quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Governo Federal inicial mais uma reforma previdenciária por MP

SEM DIÁLOGO



 


Como já amplamente noticiado pela imprensa, o Governo Federal, por meio da Medida Provisória 664, de 30 de dezembro de 2014, altera aspectos relevantes do plano de Benefícios do Regime Geral de Previdência Social. Basicamente, o texto reúne sugestões de adequação legislativa a certas lacunas do sistema, além de aprimoramentos, em geral, necessários.
A maior parte das mudanças já era desejada pelo corpo técnico no Ministério da Previdência Social e, também, foram por mim sugeridas em conjunto com o professor Aaron Grech, da London School of Economics(LSE), em projeto financiado pela União Europeia, no qual tivemos a oportunidade de cotejar diversos modelos europeus frente ao sistema nacional e, por fim, concluir pela necessidade de importantes mudanças no regime nacional. Algumas constam da MP 664.
Procedimento Inadequado
Como já havia criticado anteriormente, a vulgarização das medidas provisórias em nada ajuda no diálogo necessário sobre as reformas previdenciárias. Na atualidade, a MP é usada como um projeto de lei impróprio capaz de já produzir efeitos, impondo coação severa ao Poder Legislativo, o qual se vê na situação de apreciar com celeridade o feito, sob pena de desordenar o arcabouço previdenciário vigente.

É evidente que tal conduta do Governo Federal, de saída, gera ampla insatisfação do Congresso Nacional e em nada ajuda a criar um ambiente propício ao diálogo. O tema protetivo, especialmente em contextos de retração, é complexo e envolve interesses variados. Sem uma atuação conciliatória, respeitosa e verdadeiramente voltada ao problema, dificilmente haverá sucesso em todas as mudanças que se fazem necessárias.
No entanto, desde 1995, a praxe das reformas previdenciárias, tanto em âmbito legal como constitucional, têm sido a mesma. A apresentação de projetos, propostas ou mesmo medidas provisórias, muito frequentemente em início de governos, em “pacotes” prontos que, em geral, não são debatidos e não possuem qualquer consenso mínimo. Ainda que necessários e mesmo aprovados, geram desconfiança da sociedade sobre o sistema e efeito perverso para o futuro, tendo em vista a constante dúvida e insatisfação dos demais atores sociais.
É certo que nosso Legislativo está distante de um ideal republicano, mas, inegavelmente, é o que temos e devemos contar com ele. A recusa governamental em apresentar tais questões previamente ao Legislativo — e mesmo à sociedade — em nada ajuda a construção de um modelo protetivo equilibrado, justo e viável a gerações futuras.
De toda forma, mesmo que iniciada com o “pé esquerdo”, a reforma legislativa apresentada possui aspectos relevantes e necessários. Passo a análise dos principais itens de mudança no âmbito previdenciário. Não tenho a intenção, aqui, de esgotar o tema e apresentar todos os detalhes da reforma.
Pensão por Morte  Carência, Dependentes e Renda Mensal
O modelo previdenciário brasileiro, em larga medida, segue as premissas dos sistemas de seguro social, os quais, basicamente, adotam elevada correlação entre o custeio individual e respectivo benefício, além de contar com um grau menor de solidariedade se comparados aos sistemas universais de proteção.

Em tais sistemas de seguro social, é comum que se exija um quantitativo mínimo de contribuições para o gozo de determinados benefícios. Por exemplo, sabe-se que um homem, para aposentar-se por idade, terá de alcançar, além da idade de 65 anos, um quantitativo mínimo de 180 contribuições mensais. Essa é a ideia da carência do Regime Geral de Previdência Social (RGPS).
Em geral, a carência somente é exigida, em maior medida, nos benefícios programados, ou seja, aqueles em que o evento protegido é perfeitamente previsível, como a idade avançada. Para os benefícios de risco, cujo evento protegido é imprevisível, a carência tende a ser reduzida ou mesmo inexistente.
A pensão por morte, nos últimos anos, possuía o tratamento típico dos benefícios de risco — como de fato é — não possuindo qualquer carência. Ou seja, para um dependente obter o benefício, bastaria ao falecido possuir a qualidade de segurado, o que poderia ocorrer em qualquer momento anterior ao óbito.
Com isso, as fraudes se avolumaram. Desde sempre temos notícias de pessoas inscritas na previdência social meses, semanas ou mesmo dias antes do óbito, com a finalidade única e exclusiva de propiciar o benefício. Para piorar, não raramente uniões eram forjadas com a finalidade única e exclusiva de obter a prestação previdenciária. Mesmo com a evidente fraude, era difícil para a autarquia previdenciária elidir tais situações, pois a lei não exigia qualquer carência mínima para o benefício.
Tendo em vista tal realidade, a MP 664 traz várias mudanças. De saída, retoma a carência para a pensão por morte, em 24 contribuições mensais, salvo quando o segurado falecido já estava em gozo de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez. O tempo é razoável, até pela possibilidade, prevista na mesma MP, de excluir a carência na hipótese de acidente de trabalho.
Aqui, no entanto, identifico um vício. A previsão de carência é necessária e correta, e a exclusão da mesma na hipótese de acidentes é também necessária, pois, à exceção do suicida, não é algo previsível e passível de fraudes, como a patologia que gradualmente denigre a vida humana. Todavia, a restrição a acidentes de trabalho é equivocada. Todo e qualquer acidente deve excluir a carência. A restrição a acidentes de trabalho não faz sentido, especialmente pela equiparação dos benefícios comuns aos acidentários que toma lugar desde 1995.
Aqui, novamente, nota-se a ausência de maior reflexão e diálogo, pois se todo e qualquer acidente dispensa a carência para os benefícios por incapacidade, não faz qualquer sentido restringir, para a pensão por morte, a excludente a óbitos relacionados ao trabalho. Tal ponto merece correção, mesmo que pelo Judiciário.
Estranhamente, a nova redação do artigo 26 da Lei 8.213/91 não mais prevê o auxílio-reclusão como benefício dispensado de carência. Ao mesmo tempo, não há previsão expressa de contribuições mensais para este benefício. Caso a lacuna não seja superada pelo Legislativo, a conclusão necessária será pela validade das mesmas 24 contribuições mensais da pensão por morte, tendo em vista a analogia necessária entre os dois benefícios (artigo 80, Lei 8.213/91).
Quanto aos beneficiários, a nova regra pretende pôr fim a antiga querela deste benefício, relacionada ao dependente homicida, ou seja, aquele que, inserido formalmente no rol de dependentes da Lei 8.213/91, mata o segurado e, na sequência, postula o benefício. A questão possui nuances relevantes e a complexidade da questão extrapola as finalidades deste breve artigo, mas, agora, há fundamento normativo impedindo tal prestação. Naturalmente, o impedimento somente é válido para o dependente condenado por sentença transitada em julgado. Sendo assim, enquanto correr a ação penal, nada impede que a pensão seja concedida, ainda que provisoriamente.
Também interessante novidade é a necessidade de tempo mínimo de dois anos de casamento ou união estável para fins de concessão do benefício. A regra, comum em sistemas estrangeiros, vem em boa hora, como forma de impedir fraudes. Ponderadamente, a regra é excepcionada em caso de óbito decorrente de acidente ou incapacidade do dependente após o casamento ou união estável.
Seguindo também a praxe mundial, a renda mensal da pensão por morte é reduzida. Adotando sistemática que já fora a regra do RGPS, a quantificação passa a ser de 50% do salário-de-benefício, acrescido de 10% a cada dependente. Em suma, o benefício nunca será inferior a 60%, pois haverá, no mínimo, um dependente e, no máximo, 100%, na hipótese de cinco ou mais dependentes.
Também, como forma de atender casos particulares, a MP permite a adição de cota extra de 10% na hipótese de filho órfão. Ou seja, caso o segurado venha a falecer, restando o filho dependente sem pai e mãe, terá acréscimo de 10% no percentual. Naturalmente, tal hipótese somente se aplica quando não exista pensão por morte do primeiro falecimento (pai ou mãe). Em tal caso, a possibilidade cumulação de pensões por morte (decorrente de óbito de pai e mãe) continua possível, sem o acréscimo criado.
O benefício também deixa de ser, em regra, vitalício. A depender da idade do segurado falecido e respectiva expectativa de sobrevida no momento do óbito (fornecida pelo IBGE), o benefício poderá durar somente três anos (sobrevida superior a 55 anos) ou mesmo vitalício (sobrevida inferior a 35 anos). Obviamente, não se trata da sobrevida específica do segurado – que faleceu – mas a expectativa média do brasileiro para aquela respectiva idade.
Renda Mensal do Auxílio-Doença
De acordo com artigo 29, parágrafo 10 da Lei 8.213/91, inserido pela MP 664, “O auxílio-doença não poderá exceder a média aritmética simples dos últimos doze salários-de-contribuição, inclusive no caso de remuneração variável, ou, se não alcançado o número de doze, a média aritmética simples dos salários-de-contribuição existentes”.

Desta vez, ao invés de tentar mudar o cálculo do auxílio-doença, a nova regra segue dinâmica mais interessante, fixando um limite máximo do benefício, a partir das últimas remunerações do segurado. Basicamente, o que se busca é o mesmo de reformas pretéritas frustradas — a limitação do benefício a valor correspondente aos últimos salários do segurado.
Na regra até então vigente, era comum que segurados conseguissem benefícios previdenciários por incapacidade temporária muito acima da última remuneração, o que, além de contrariar a natureza substitutiva do benefício previdenciário, propiciava evidente desestímulo à recuperação laboral, gerando maior dificuldade na já complexa atividade de mensuração da aptidão laborativa.
Afastamento Prévio ao Auxílio-Doença e Aposentadoria por Invalidez
Basicamente, o que faz a nova regra é ampliar o tempo mínimo de afastamento por conta do empregador ou segurado. Em geral, é correto afirmar que o benefício por incapacidade deva adotar um tempo mínimo necessário de afastamento prévio, como forma de atender as incapacidades que realmente sejam configuradas como um risco social e, também, viabilizar o funcionamento adequado do sistema, excluindo incapacidades de curta duração, as quais vitimam todos nós e são de difícil avaliação pericial.

A ampliação é compreensível, até pelas elevadas taxas de afastamento laboral em algumas atividades econômicas, mas poderia ter sido construída de melhor maneira. Primeiramente, prejudica fortemente os demais segurados, não empregados, como contribuintes individuais, que somente terão direito a benefício após q incapacidade ultrapassar um mês. Segundo, mesmo para segurados empregados, o tratamento pode ser considerado desigual.
Acredito que, à exemplo do seguro de acidentes de trabalho (SAT/RAT), poderia a legislação fixar tempos de afastamento de acordo com o CNAE de cada empresa, tendo, com isso, a possibilidade de fixar períodos até superiores a 30 dias para atividades econômicas que gerem afastamentos de longa duração. A medida não seria necessariamente complexa para as empresas, tendo em vista todas conhecerem o respectivo CNAE e pelo fato de o sistema de afastamentos previdenciários, nos próximos anos, migrar para um modelo plenamente informatizado, o e-Social.
Adicionalmente, perdeu a MP a oportunidade de prever, expressamente, a não incidência de contribuições sobre tais valores, tendo em vista a posição pacífica do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Seria uma forma de reduzir lides judiciais e, ao mesmo tempo, aplacar a insatisfação dos empregadores, em razão do duplo encargo criado.
Perícias Médicas por Convênio
Desde longa data, um importante gargalo na concessão de benefícios por incapacidade é a perícia médica do INSS. Naturalmente, não se trata de ausência de dedicação dos profissionais envolvidos ou mesmo da autarquia, mas, basicamente, por uma demanda elevada destas prestações.

Algumas alternativas foram adotadas no passado recente, como a alta programada. Outras, em governos passados, se mostraram desastrosas, como a terceirização da perícia. A previsão de convênios com empresas ou entidades privadas, como estabelecido pela MP 664, pode ser uma solução adequada, mas carece de rigorosa regulamentação e controle.
Os conluios e fraudes, infelizmente, sempre existirão, mas tais parcerias, se construídas de forma precisa e com efetivo controle por peritos médicos auditores do INSS, podem, de fato, configurar importante evolução, especialmente em regiões do país com crônicas deficiências no atendimento pericial.
Sem diálogo
As modificações apresentadas, como se nota, são importantes e refletem certo consenso sobre as adequações necessárias no sistema previdenciário brasileiro. No entanto, cumpre notar que maiores questões ainda carecem de atenção, como a fixação de limites etários mínimos de aposentadoria, a distinção de gênero na obtenção do benefício e o tratamento diferenciado nas aposentadorias especiais.

São temas de elevada complexidade e, para piorar, demandam reforma constitucional. Caso o Governo Federal não mude sua postura, o ambiente necessário para a aprovação de tais reformas nunca virá, possivelmente comprometendo a rede de proteção social das gerações futuras. Nos resta aguardar, como prometido pela presidente da República, que o diálogo será a regra do seu novo mandato. Começamos mal.
 é advogado no escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados, professor da FGV Direito Rio e coordenador de Direito Previdenciário da EMERJ.

Revista Consultor Jurídico

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