Projeto realizado no Rio Grande do Sul mostra que trabalhar de fato com a ressocialização dos presos não é uma aposta perdida
Texto e fotos por Nina Fideles
Câmeras na mão, depoimentos, máquinas fotográficas, poses e muitas ideias para jogar na internet. Esse cenário se repete uma vez por semana na Galeria E1, tida como modelo no Presídio Central de Porto Alegre (RS), e tem muito mais importância do que pode parecer. Na contramão do que grande parte da população acredita que deva ser o tratamento dado aos presidiários, Carmela Grune, advogada, jornalista e coordenadora do projeto Direito no Cárcere, pensa e faz diferente. Com cerca de 60 detentos da galeria, para onde são encaminhadas as pessoas com problemas de drogadicção, o projeto pretende, por meio do trabalho com as memórias e com o direito de expressão, que eles cumpram pena com dignidade e possam voltar para o convívio social com trabalho e inclusão.
De acordo com Carmela, “muitas pessoas querem apagar crimes que ocorreram na história da humanidade, mas como podemos aprender para não cometê-los novamente? O fato de abrirmos o diálogo, de dentro para fora da prisão, permite discutir o sentido da pena”, defende. Ela ressalta ainda que o fato de o Brasil ter uma das maiores populações carcerárias do mundo é reflexo de uma cultura que prefere excluir, e não incluir, com um pensamento de que violência se combate com violência.
Desde 2011, com apoio da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe-RS), Ministério Público e Brigada Militar, o projeto utiliza diversas ferramentas, divulga artigos, poesias e músicas, além de realizar mutirões de pintura, oficinas de música, debates e intervenções. Tudo isso configura o que acontece lá dentro como algo inédito e o que poderíamos chamar de primeira plataforma de expressão de detentos em regime fechado no Brasil. Obviamente, não é fácil manter isso. Ainda existem preconceitos e desafios a serem superados.
Para dar início ao projeto, Carmela visitou por mais de seis meses o vice-diretor do presídio, para sensibilizar a direção sobre o trabalho apresentado e ganhar a confiança de todos os envolvidos. A jornalista conta que teve de mostrar que os detentos “são pessoas capazes, que podem repensar o caminho das próprias vidas, as escolhas profissionais e resgatar sonhos”. “Enquanto a grande maioria da população acha que tem de excluir, penalizar, congelar o tempo, porque todo detento é uma pessoa perigosa, eu queria mostrar que é possível fazer com que eles desenvolvam atividades que gerem outra cultura do cárcere, por meio da expressão. Fazer com que essas experiências sejam compartilhadas; caso contrário, a gente vai continuar andando em círculos”, acredita.
A democrática rede
Em menos de um ano, mais de 30 mil exibições foram feitas do conteúdo disponibilizado na internet. E, por meio dela, foram feitas doações de sapatos, camisetas, livros, instrumentos musicais, tinta e outros materiais para as atividades realizadas na galeria. Mas não só isso. Lá, há acesso aos depoimentos dos detentos, trechos do cotidiano, campanhas. É uma forma de saber o que acontece ali e a real situação das pessoas que se encontram detidas. Seus dramas, histórias, desafios.
Para Leandro*, um dos presos que participa do projeto, “a tecnologia está muito avançada. Há alguns anos, o pobre não tinha acesso a câmeras, computadores etc. Hoje, a gente tem a possibilidade de conhecer melhor os equipamentos. É um momento para se expressar e poder mostrar para a sociedade, através das câmeras, que não somos monstros, como eles acham que nós somos. Somos seres humanos, temos sentimentos”.
Podemos dizer que são pouquíssimos os projetos no Brasil que fazem a reflexão sobre a utilização dessas ferramentas para o avanço do processo de ressocialização proposto pelo sistema penitenciário. Além das dificuldades burocráticas de entrada de equipamentos, o primeiro empecilho é a aprovação do projeto, a permissão de entrada nas unidades prisionais e apoio financeiro. Até hoje, depois de quase dois anos, Carmela não recebeu nenhum retorno do Sistema Nacional de Justiça (SNJ), colocando-se à disposição para o andamento das atividades. Ela conta que a burocracia faz com que um bom projeto ande a passos lentos ou demore muito para acontecer, ficando na gaveta e caindo no esquecimento.
Para Sidinei Jose Brzuska, juiz da Fiscalização dos Presídios da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre e da Região Metropolitana, a maior dificuldade para que o Estado aplique outros projetos como esse é a forma como a Administração Pública enxerga a questão e a falta de envolvimento de setores da sociedade civil com o sistema prisional. “Trata-se de um divórcio de difícil reconciliação. A sociedade civil organizada, de um modo geral, quer distância das prisões, por acreditar que deva ficar afastada da marginalidade, com o pensamento de que a prisão deva caracterizar-se por sofrimento, pura e simplesmente. E o Estado também costuma impor barreiras burocráticas quando alguém quer ajudar. Sente-se cobrado, mais fiscalizado. Os agentes precisam trabalhar mais”, conclui.
Tanto a experiência do projeto quanto a presença atuante de Carmela dentro da Galeria transcenderam as paredes do presídio. É o caso de Caroline Duarte, que, tendo seu marido preso, se inspirou no blogue da jornalista, chamado Direito no Cárcere (http://direitonocarcere.blogspot.com.br/) e criou também seu espaço virtual, intitulado Amor no Cárcere. Com esta iniciativa, recebeu muito apoio e encarou o desafio de lutar pela liberdade do companheiro, que hoje se encontra em regime semiaberto, após um ano e oito meses na Galeria E1. Ela passou a escrever os documentos necessários, inclusive habeas corpus, para apresentar à Justiça. Usou também a rede social com o pseudônimo de Maria Esperança, se servindo do exemplo da assistente social Maria Tavares, gaúcha que ficou conhecida por criar o Serviço Social Penitenciário, em 1952, e a Instituição Patronato Lima Drummond, que abriga pessoas que cumprem pena em regime aberto e semiaberto.
Para Caroline, o projeto mudou bastante a vida do marido. “Eu ficava muito tranquila sabendo que ele estava participando, bem amparado, com acompanhamento médico e psicológico, cumprindo as regras exigidas e em um lugar de melhor convivência entre eles. Nas outras galerias do presídio, é um nojo”, destaca.
Homeostase sociocultural
Todo esse processo, baseado no desenvolvimento das expressões individuais, não é empírico, ou parte da boa vontade das pessoas envolvidas. O conceito de “homeostase sociocultural”, do neurocientista Antônio Damásio, explica um pouco do projeto. Homeostase é, primeiramente, um termo da Biologia, que representa o equilíbrio de um sistema fechado para manter a sua condição orgânica estável. Mas a terminologia é utilizada em outras esferas do conhecimento, para explicitar o equilíbrio e a interdependência de elementos em um mesmo organismo para um fim comum: a saúde, psíquica ou emocional, e a manutenção de um ambiente. Para Damásio, possuímos dois modelos de homeostase. A básica, considerada inconsciente, e a sociocultural, consciente e reflexiva. Ambas agem pela sobrevivência, mas a última age deliberadamente em busca do bem-estar, por meio do processo de desenvolvimento que a própria consciência gerou ao longo da história da humanidade, da linguagem, raciocínio, criatividade, ou seja, expressões culturais arraigadas ou não.
Baseando-se nisso, o projeto envolve as diversas formas de expressão cultural para a busca do bem-estar e da recuperação, misturando a relação necessária do Direito, das neurociências e da arte, indo além da tecnologia, mas a utilizando constantemente. “Uma das primeiras coisas que eu pedi para a Brigada foi um espelho de meio corpo, para que a pessoa consiga se ver. Enxergar o outro é muito importante, mas devemos nos enxergar primeiro. E isso os estimulou, hoje é tão espontânea a participação com o vídeo que eles pegam a máquina, registram, falam, se autogerenciam”, acredita Carmela.
E na vida de Vanderlei*, um dos participantes do projeto há pouco mais de um ano, as mudanças foram muitas. “Te largam aqui dentro pra cumprir a pena e esquecem que tu é um ser humano e que pode sair daqui com a cabeça diferente, com um outro sentido pra vida. Eu redescobri meus sentimentos, me redescobri, aprendi a conviver melhor com a minha família, consegui ver o mundo de uma forma diferente. Aprendi a viver de novo, a gostar das pessoas, a sonhar, a amar…”, salienta.
Projetos como esse, segundo o juiz Brzuska, com a participação de pessoas da sociedade interagindo com o sistema, são importantes para diminuir a distância entre as pessoas privadas da liberdade e a sociedade em geral, para onde um dia os presos irão retornar. “Embora a Lei das Execuções Penais estabeleça a obrigatoriedade de representantes das associações comerciais e industriais visitarem, mensalmente, os estabelecimentos prisionais, isso raramente ocorre. Como consequência, aumenta-se o fosso existente”, sustenta. F
*Os nomes dos detentos foram preservados.
A passos lentos
A população carcerária do Brasil, segundo dados de junho de 2012 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), é de quase 550 mil pessoas. No Rio Grande do Sul, estão aproximadamente 5,5% destas. Com capacidade para 1.984 presos, o Presídio Central de Porto Alegre, o maior do estado, abriga hoje mais de 4,5 mil detentos em seis pavilhões. Construído em 1959, tem uma história marcada por violações de direitos humanos, com superlotação e péssimo estado de conservação, e foi considerado um dos piores do Brasil pela CPI do sistema carcerário, em 2008.
No início deste ano, entidades que integram o Fórum da Questão Penitenciária no estado denunciaram à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (Cidh) da Organização dos Estados Americanos (OEA) a situação do presídio. São mais de cem páginas, que relatam a falta de saneamento, superlotação, defasagem estrutural e vinte medidas cautelares, entre elas a proibição de ingresso de novos detentos, realocação do excedente populacional e melhoria nas instalações.
Segundo o juiz Brzuska, a realidade do sistema penal gaúcho é estruturalmente precária, com péssimas condições dos prédios e de conservação, número de servidores aquém do necessário e superlotação. Porém, na área da informatização, há muitos avanços, pois os principais dados dos presos estão na internet e podem ser facilmente acessados. “As decisões judiciais ficam disponíveis instantaneamente. As comunicações são feitas virtualmente. Em outras palavras, não temos problemas jurídicos significativos. O impacto do último mutirão feito pelo CNJ no estado foi de apenas 0,43% na população carcerária. Essa administração mais positiva tem evitado um descontentamento maior por parte da massa carcerária”, acredita.
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