A questão da militarização da polícia se tornou uma preocupação nos EUA. Recebem armamento militar e tentam legitimar a obediência absoluta.
STEVE MARTINOT
A Estrutura de Obediência
Considere o seguinte cenário. Um policial diz a uma pessoa para ficar parada, ou para se sentar, ou para deitar-se no chão com o rosto para baixo. A pessoa começa a se afastar, e é presa. Embora isso possa ser uma breve descrição jornalística, tem enormes ramificações políticas.
Vamos analisar um exemplo específico, visto nacionalmente na própria câmera de vídeo de um oficial. Primeiro, a versão jornalística: uma mulher negra, grávida, que acabara de trazer a filha para a escola, é abordada por um policial. Ele pede seus documentos. Ela se recusa, dá um único passo para se afastar, e então é agarrada e presa. Agora, a versão real: um policial se aproxima de uma mulher negra, depois de ter sido informado sobre uma briga entre ela e uma mulher branca, mas ele ignora a mulher branca. Esta mulher negra, que acabara de trazer a filha pra escola, está grávida. Ele pede pelos documentos. Ela responde (corretamente) que não acha que tem que mostrar nada e questiona o fato de ter sido abordada para começo de conversa. Ela diz que vai chamar um amigo para afirmar seus direitos. Dez segundos depois, durante o telefonema, ela dá um passo para longe dele, e ele a agarra pela manga. Ela diz "não me toque", e se afasta. Ele então a derruba no chão, com o joelho em suas costas, ignorando o fato de que ela está grávida, até algemá-la pelas costas. Ela foi presa. Um passo foi o suficiente.
A versão jornalística enfoca a mulher, que é abordada por algum motivo. Na versão realista, o policial atua sobre uma pessoa negra, e não sobre uma pessoa branca, embora esta pessoa negra apenas esteja ali. O fato de ser negra é destacado com importância, e o fato de estar grávida é ignorado. Ela é um objeto, e não um ser humano e uma mulher. Ela não tem o direito de se opor a ele. O policial criou toda uma situação que precede sua reação de jogá-la no chão e de algemá-la.
Mesmo se uma pessoa estiver sentada em seu carro, esse mesmo cenário pode se desdobrar. O policial pode mandar que a pessoa saia de seu carro, para que possa então jogá-la no chão e algemá-la. (Isto aconteceu com Sandra Bland, no Texas, que acabou morta quando sob custódia). O ato de jogar uma pessoa no chão tornou-se uma resposta rotineira para o ato de questionar a abordagem de um oficial. Dizer, hipoteticamente, que "você não tem nenhuma razão para me abordar", significa se arriscar a ser jogado no chão e algemado. Este paradigma é tão frequente, em todo o país, que não pode ser considerado qualquer coisa, mas uma resposta treinada, de rotina.
O próximo nível, nessa rotina, parece ser o de atirar na pessoa quando ela tenta se afastar. Centenas de pessoas, em sua maioria negras e pardas, foram alvejadas nas costas, justamente por se afastar de uma abordagem policial arbitrária (por exemplo Yuvette Henderson, em janeiro de 2015, Emeryville).
Existe uma expressão retórica que a polícia usa para se justificar quando joga uma pessoa no chão e a algema. "O sujeito não cooperou". Já quando uma pessoa tenta se afastar do policial e acaba levando um tiro, a expressão é: "Eu me senti ameaçado". Assim, há um pressuposto importante do policial em ambos os casos. De que ele pode desempenhar o papel de um comandante, como se estivesse em uma instituição militar, e de que os civis na rua devem responder com a obediência de um membro do pelotão. Somente no serviço militar a exigência por "cooperação" é absoluta.
Na linguagem da sociedade civil, jogar uma pessoa no chão é uma violência. Ajoelhar-se nas costas de alguém é tortura. Algemar uma pessoa, a fim de restringir sua autonomia e auto-estima, é uma violação da ética democrática, bem como do devido processo constitucional. Atirar em alguém por trás é assassinato. No entanto, essas ações criminosas se tornaram resposta de rotina a uma falha de obediência. Questionar ou discordar de um policial remonta a desobediência, e pode resultar em punição imediata.
Um policial de McKinney, TX, explicou este paradigma (novamente em vídeo). Ele tinha interrompido uma festa adolescente, e furiosamente perseguiu todos os negros que conseguiu alcançar. Ele jogou uma jovem no chão, duas vezes, para então algemá-la, e apontou sua arma em direção aos outros. Quando, de repente, voltando ao comportamento racional, ele falou a dois adolescentes negros, aos quais havia ordenado que se sentassem no chão, como se ele fosse sua mãe: "Eu, pessoalmente, lhes disse para ficar no chão e permanecer ali. O que vocês fizeram quando eu fui embora? Vocês fizeram exatamente o mesmo que todo mundo, que era ilegal [indicando os outros que tinham fugido]. Vocês fizeram isso e foram pegos". E ele os prendeu. Observa-se que ele não apenas assume o papel de um comandante sobre seus "subordinados", mas também conscientemente respeita suas próprias palavras como lei.
A sociedade civil não é uma organização militar. Nós não fomos alistados ou introduzidos em uma delas, para então respeitar sua total hostilidade a qualquer ética democrática. No entanto, em Nebraska, há uma lei que garante a cada cidadão apenas cinco segundos para obedecer a um comando da polícia, antes de estar sujeito a prisão. Em outras palavras, as legislaturas e os tribunais ratificam esta arregimentação sobre os civis, tornando-nos membros de um pelotão, sob pena de prisão. A casa de detenção pode ostentar "sociedade livre" em suas portas, mas continua sendo uma casa de detenção.
A militarização da polícia
A questão da militarização da polícia se tornou uma preocupação geral em todo o país. Os departamentos de polícia recebem armamento militar e tecnologia de vigilância do governo federal, como se preparassem uma guerra. Mas este armamento é semelhante as expressões retóricas que a polícia utiliza para explicar seu comportamento. É uma exposição concebida para sustentar (e normalizar) a legitimidade da demanda por obediência absoluta. O armamento não serve como defesa contra os criminosos. Mas para criar uma atmosfera militar que facilite a aceitação geral dessa subordinação. A arregimentação da população é o verdadeiro conteúdo da militarização da polícia. Yuvette Henderson foi baleada e morta pela polícia de Emeryville que utilizava fuzis militares. Ela levou um tiro nas costas enquanto se afastava. (A existência de rifles de grande porte em mãos de civis é uma questão diferente, e implica cumplicidade do governo, que lhes permite, embora sem licença).
A motivação policial é mais claramente expressa, no entanto, nos seus pedidos por tasers. Tasers não são armas de defesa ou de guerra. Eles são instrumentos de tortura. A polícia os rotula como substitutos "menos letais" para armas de fogo. Mas os tasers não são utilizados contra as armas de verdade, o que supostamente deveria ser o papel do armamento policial. Os tasers, de fato, substituem cassetetes ou spray de pimenta, que são as formas mais fracas de tortura, com menor alcance. Eles são, portanto, formas "mais letais" de exigir obediência. (Quando se afirma que os tasers são substitutos "menos letais" para armas, na verdade a polícia admite que o principal papel das armas é também a obediência, e não apenas a defesa). O uso de tasers resultou em mais de 900 mortes nos últimos anos. O que o taser realmente facilita, melhor do que outras tecnologias, é a expressão de sadismo pelos policiais que os manuseiam - são muitos os casos de pessoas já algemadas que foram repetidamente eletrocutadas (muitas vezes resultando em morte). Em suma, eles mais propriamente pertencem à categoria de instrumentos de contenção.
Algumas pessoas acham que a polícia simplesmente precisa ser melhor treinada no uso do taser. Ou seja, eles entendem o taser enquanto instrumento de controle legítimo, e seu uso sádico como um erro. Mas a "má utilização" do taser já está implícita na demanda militarista por obediência absoluta.
O precedente para uso de tortura na exigência por obediência remonta profundamente a história dos EUA. No sistema escravista, por exemplo, uma pessoa é obrigada a obedecer qualquer ordem de uma pessoa branca sob pena de tortura (castigo físico) ou morte (dependendo do grau de resistência). O sistema como um todo dependia da tortura sobre os africanos sequestrados para garantir obediência absoluta no início de sua escravização. A tortura era tecnologia de controle. Qualquer auto-defesa pelo trabalhador era punível através de lesão corporal ou morte. E assim como a pessoa escravizada não poderia se defender contra o capricho agressivo de qualquer branco (seja físico, sexual ou moral), hoje um civil (especialmente um civil negro) não pode se defender contra as ordens de um policial. Essa retenção de direitos se estende a diversas demandas sexuais sobre as mulheres por parte de policiais, dentro do mesmo paradigma de obediência.
O aparato de guerra (não) civil
Nestas situações, em que o policial emprega uma abordagem sem motivação óbvia ou legal pré-existente (incluindo paradas arbitrários no tráfego), a ação se baseia puramente na suspeita ou no desejo (de assediar). Sua impunidade ao fazê-lo não apenas recrudesce nossa suspeita sobre o poder da lei, mas também seu desejo de comandar (um nexo entre a arregimentação e a autocracia).
O mecanismo jurídico subjacente a este poder são as leis de crime sem vítimas. O crime sem vítimas dispensa a necessidade de uma queixa. Eles fornecem ao policial prerrogativa autônoma para decidir quem deve ser abordado e quais são as "causas prováveis". Em outras palavras, a causa provável se torna arbitrária, uma questão de pretexto unilateral. O oficial que impede alguém na rua ou no trânsito só precisa dizer que empreendia uma "investigação".
Mas agora, uma vez que a desobediência é ilegal, a "investigação" se torna um eufemismo para o processo de criminalização. Tendo parado um indivíduo, o policial só precisa encontrar um comando demasiado humilhante, para que a pessoa se oponha e seja castigada em sua desobediência.
Do ponto de vista civil, a prerrogativa policial para criminalizar à vontade é um empreendimento criminoso em si. Pior do que uma armadilha, é um abandono completo de qualquer princípio de justiça. O próprio policial coordena uma situação em que a violação da lei pode se desdobrar e em que a pessoa pode ser presa. O processo todo não tem nada a ver com a aplicação da lei. É mais semelhante a uma extorsão.
Os representantes de relações públicas da polícia perguntam: "como é que vamos fazer o nosso trabalho, se a pessoa simplesmente pode ir embora?" Mas o referente já distorceu a categoria "trabalho", deslocando-a da aplicação da lei pro controle e pra contenção. A suspeita, cuja forma mais comum é a discriminação racial, é o oposto de aplicação da lei. Na aplicação da lei, quando um crime é cometido, a polícia procura por um suspeito. Quando se enquadra um perfil, a polícia executa um ato de desconfiança, e procura um crime no qual se encaixe o suspeito. E o termo "trabalho" torna-se eufemismo para impunidade.
Dentro de um ethos democrático, "investigação" implicaria uma hipótese diferente. Quando se faz uma pergunta, isso significa que deve existir respeito pela resposta, seja ela qual for. A resposta pode ser o silêncio, ou o afastamento, e ambos deveriam ser respeitados. Quando não existe esse respeito, a pergunta implica uma demanda ou uma ordem. Exigir certas respostas não significa "investigar", mas exercer uma inquisição, em que a personalidade humana torna-se irrelevante. A "investigação" e as suas perguntas tornam-se instrumento de controle e de arregimentação, uma obliteração do respeito enquanto pressuposto básico. No entanto, uma vez que o controle e a obediência são metas primárias, qualquer propósito legítimo (como uma ˜investigação˜) se torna mero pretexto.
A insegurança da Segurança
Isto sugere a existência de uma insegurança institucional que se recobre através de controle social, para a qual as interações individuais com a polícia são apenas um meio. Na verdade, com a sua posição de comando sobre as pessoas, a polícia desvia dessa insegurança criminalizando indivíduos com antecedência. Nenhum princípio legal precisa estar envolvido. Há apenas o pressuposto militarista. Quando a mulher grávida se afasta do policial, ela não está violando nenhuma lei. Jogá-la no chão e algemá-la está longe de qualquer princípio do devido processo legal na Constituição. A Constituição prevê a aplicação da lei, mas não a impunidade policial. Quando a polícia atira sobre um indivíduo em fuga e afirma agir em autodefesa (ou estar sendo ameaçada), não é a sua pessoa, mas o princípio de comando e controle que estão sendo ameaçado. Defender esse controle através de violência e assassinato sobre uma pessoa desobediente implica que própria identidade do policial está totalmente imersa em seu paradigma. Não há nada de psicológico sobre isso. Não se trata de auto-estima ou de insegurança. Existe apenas uma ética militar de poder, imposta à sociedade civil através de um pressuposto de impunidade. É o ethos da democracia, do respeito humano, que figura como real ameaça.
Já sugerimos ser a escravidão e seu nexo de tortura e obediência um precedente para esse modelo de comportamento da polícia. O sistema penitenciário é outro, é claro. A prisão institucionaliza a obediência em sua totalidade. Mas é o uso do paradigma da arregimentação na sociedade civil que é responsável pelo sistema prisional dos EUA ter se tornado o maior do mundo. Com 5% da população do mundo, seus 2,5 milhões de prisioneiros constituem 25% do total do mundo. Na medida em que 70% de todos os presos estão ali por crimes sem vítimas, esta população prisional atesta que a polícia generalizou seu projeto de criar situações em que criminaliza as pessoas. Na medida em que 75% dos prisioneiros norte-americanos são as pessoas negras, a principal forma de criminalização é a discriminação racial.
E tudo isso aponta para a insegurança institucional dos EUA, a fraqueza e fragilidade da supremacia branca - que foi fortemente denunciada pelo movimento dos direitos civis. Quando as instituições sociais exigem controle e obediência, não é só para proteger a hegemonia cultural, mas sim uma admissão expressa de que as fundações dessa hegemonia não devem ser questionadas, porque são ilegítimas, porque são uma violação institucional da ética social e da constitucionalidade.
A principal violação é, portanto, a inversão estrutural pelo qual a prisão se torna fonte de legalidade (legalismo), manifesta na sociedade pela arregimentação policial da população.
Conclusão
Que direitos ainda podemos dizer que temos, se nós nos encontramos presos em uma estrutura militar? Uma pessoa tem o direito de permanecer em silêncio se presa, mas não se tem o direito de permanecer em silêncio se abordado pela polícia na rua. Isso constitui "não ser cooperativo". Também não se tem o direito de proteger sua propriedade da polícia. Casas podem ser invadidas devido a "suspeita" e a propriedade enquadrada no confisco de bens. E a polícia que executa essas ações é blindada, hermética, apenas responsável por si sob os regimentos da coorporação. Eles são imunes a supervisão.
Este insularidade, comparável aos militares, explicita o que "fazer o seu trabalho" realmente significa. Sua concatenação da arregimentação e da impunidade, do militarismo e da supremacia social atesta a supremacia branca no conteúdo e a insegurança na forma. Em suma, a paternidade da supremacia branca na escravidão nunca foi abjurada. Permanece na Constituição, na alteração 13, que proíbe a escravidão em todos os lugares, exceto nas prisões. Na medida em que a prisão agora se torna a fonte de ordem social e do direito na sociedade civil, para além das suas paredes, ela incorpora as tecnologia da supremacia, estendida através de arregimentação policial por toda sociedade.
Se a Constituição não protege as pessoas frente essa confluência de tortura e de arregimentação, então a Constituição se tornou letra morta.
Tradução por Allan Brum
Créditos da foto: CounterPunch
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