"O PROBLEMA QUE É QUE AS MÁS EXCEÇÕES SÃO SEMPRE TRATADAS COMO CASOS ISOLADOS, E ESTE DISCURSO OFICIAL VAZIO, ESTÁ TRANSFORMANDO AS EXCESSÕES MÁS EM REGRAS." JOSÉ LUIZ BARBOSA, SGT PM - RR, especialista em segurança pública, e ativista de direitos e garantias fundamentais.
A cena se espalhou pela internet com mais de meio milhão de visualizações, 70 mil curtidas e milhares de compartilhamentos: um sargento da Polícia Militar agachado amarrando o cadarço do sapato de um idoso. Seria apenas mais um dos retratos instantâneos do cotidiano esse registrado por Oslaim Brito em junho de 2014 na Estação Itaquera do Metrô, mas o inusitado da gentileza de um policial armado aos pés de uma pessoa mexe com quase todos que veem a foto.
Agachar aos pés de alguém oferece uma ambiguidade interessante: pode sugerir um ato de humilhação ou um ato carregado de humanidade, de respeito ao outro que compartilha conosco a ceia da vida.
Lamentavelmente –e até por conta de maus companheiros que se excedem em condutas violentas –a Polícia Militar vem sendo apresentada como organização de profissionais truculentos e insensíveis que se dedicam a agredir minorias das periferias, como pregam figuras e entidades envenenadas por altas doses de preconceito aos policiais.
Certa adaptação da sensibilidade é um processo natural tanto do sistema físico –o olfato se habitua rapidamente com qualquer odor –como da base psicológica que permite ajustamentos adaptativos aos que lidam com cenas de intenso sofrimento, asco ou perigo como ocorrem com cirurgiões, médicos legistas e policiais. Mas essa adaptação não pode insensibilizar e embrutecer o profissional que lida com a dor alheia. A empatia, essa capacidade da pessoa sintonizar com o sentimento alheio, é qualidade essencial de todo policial e ela não pode ser comprometida com a aspereza do dia a dia.
Poucas profissões, como os policiais, lidam tanto com dimensões tão assustadoras do ser humano, em suas mais grotescas expressões de ódio, horror e seus piores sofrimentos.
Ao lado dos riscos, tanto físicos como de comprometimento funcional nas dezenas de complexas decisões instantâneas de seu dia a dia, o policial precisa sufocar seus sentimentos pessoais de medo, raiva e nojo para cuidar da paz na sociedade, protegendo vidas e propriedades. O ser humano que existe no policial está sempre sujeito ao estresse e ao desencantamento com a sociedade, vivendo num mundo de violência e desrespeito a todas as normas que regulam a vida social e com ralo reconhecimento de seus governos.
O fato é que mesmo policiais tarimbados em enfrentar criminosos cruéis, dramas humanos intensos como crianças desprotegidas e agredidas, não conseguem deixar de se sensibilizar com o sofrimento dos mais vulneráveis.
A população precisa do policial firme com o infrator da lei, mas também precisa dessa capacidade afetiva em muitos dos conflitos em que só a polícia pode atender nas 24 horas de todo dia e também em qualquer lugar.
Não faltam aflições nas 150 mil vezes que a Polícia Militar é acionada todo dia no Estado de São Paulo através do telefone 190. De um milhão de pessoas atendidas todo mês, 200 mil delas foram socorridas em atendimento exclusivamente social. Essa seria a polícia que algumas pesquisas acusam de intimidar a população e não merecer sua confiança?
George L. Kirkham, professor de criminologia, ingressou na polícia de uma cidade da Flórida, nos Estados Unidos, para viver como um policial comum que ele tanto criticava.
Após deixar a polícia, ele escreveu artigo publicado na revista Seleções em 1975, registrando um testemunho importante: “”Frequentemente, fiquei espantado com os sentimentos de humanidade e compaixão que pareciam caracterizar muitos dos meus colegas da polícia. Conceitos que eu considerava estereotipados eram, muitas vezes, desmentidos por atos de bondade: um jovem policial fazendo respiração boca a boca num imundo mendigo, um veterano grisalho levando sacos de doces para as crianças dos guetos, um agente oferecendo a uma família abandonada dinheiro que provavelmente não voltaria a reaver”.
O sargento paulista reviveu, na prática de servir a sociedade, a humildade mais nobre da tocante cena do lava-pés.
Só os verdadeiramente poderosos se abaixam para os mais humildes.
José Vicente da Silva Filho
É coronel da reserva da PM, mestre em psicologia social pela USP, ex-secretário nacional de Segurança Pública, professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM
josevicente.filho@ovale.com.br
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