“A primeira questão é que violência doméstica não é patrimônio exclusivo das mulheres ou fato exclusivo das mulheres. Estão na mesma situação as crianças, os adolescentes, os jovens e os idosos”, destaca o sociólogo.
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As mulheres seguem sendo um dos principais grupos que são vítimas de violência no Brasil. Dados do Mapa da Violência, divulgado na última semana, apontam que 55% dos homicídios praticados contra mulheres ocorrem dentro de casa, sendo que familiares diretos, como pai, marido, irmão, filho, namorado etc -, são responsáveis pela metade dos assassinatos. Tão grave quanto este dado é o perfil das vítimas, que não fica restrito ao público feminino. “A primeira questão é que violência doméstica não é patrimônio exclusivo das mulheres ou fato exclusivo das mulheres. Estão na mesma situação as crianças, os adolescentes, os jovens e os idosos”, avalia o pesquisador Julio Jacobo Waiselfizs, em entrevista por telefone à IHU On-Line.
“Nos últimos anos, em cada uma dessas áreas houve incremento da violência letal dos homicídios, em cada uma dessas áreas há um vínculo semelhante e as figuras sempre são as mesmas: pobres, negros, os que moram nas periferias urbanas, com baixo nível educacional, com baixo acesso ao mercado de bens e ao mercado de trabalho”, pontua o entrevistado. Enquanto o Congresso retrocede a passos largos rumo à barbárie (Lei Antiterrorismo,Maioridade Penal, PEC 215), condicionado aos interesses de bancadas compostas por militares e conservadores, as questões de fundo relacionadas à segurança nacional ficam marginalizadas. “Há uma enorme quantidade de delegados e ex-delegados das polícias que são deputados, cada um defende sua corporação: a Polícia Militar defende sua corporação; a Polícia Civil defende sua corporação; a Polícia Federal defende sua corporação. Portanto, temosentidades corporativas em que cada um trabalha por seu lado, com o mínimo de interface. As organizações criminosas são muito melhor organizadas que nossas polícias”, destaca.
Julio Jacobo Waiselfisz formou-se em Sociologia pela Universidade de Buenos Aires e é mestre em Planejamento Educacional pela Universidade Federal de Rio Grande do Sul - UFRGS. Coordenador da Área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – FLACSO. É autor do estudo Mapa da Violência 2015 - Homicídio de Mulheres no Brasil.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line – O que os dados atuais sobre a violência revelam sobre a realidade brasileira?
Julio Jacobo Waiselfizs – Pouco revelam da realidade, apesar dos esforços, medidas, leis e dos balanços relativos à judicialização de vários tipos de violência e segregações. A violência persiste do mesmo modo que vinha ocorrendo anos antes do atual aparato legal, inclusive, em alguns casos, acentuando-se. A grande conclusão que se pode tirar do estudo não é nada otimista. Inclusive, no lançamento do Mapa da Violência 2015, na segunda-feira (09-11-2015), pela Ministra doMinistério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e pela Secretaria de Políticas para as Mulheres, elas reconheceram que o panorama não é nada favorável. Os dados surpreenderam bastante, esperava-se uma queda nos índices, porém nada está apontando para reduções.
IHU On-Line – O que o Mapa da Violência 2015 apresenta de novidade com relação à violência?
Julio Jacobo Waiselfizs – A novidade não é do Mapa da Violência, a novidade é da situação legal e instrumental do Brasil que aprovou, no início deste ano, a lei do Feminicídio, incluindo todas aquelas questões que têm a ver com violência letal devido a gênero, aqueles crimes no âmbito familiar por motivo de ódio e subordinação. Então, conseguimos fazer, apesar de não ter dados mais sofisticados, algumas estimativas a partir de denúncias de mulherespara saber quem são as agredidas. Fizemos todo um trabalho categorizando por idade simples, qual é a proporção que tem a ver com a violência de família, qual tem a ver com parceiros etc. Chegou-se a uma conclusão bastante lamentável: praticamente 55% dos homicídios de mulheres acontecem no seio do lar; desses 55%, metade sãofamiliares diretos, ou seja, pai, mãe, irmão, filho, marido, ex-marido, namorado, ex-namorado; desse total, aproximadamente 30% é o parceiro ou ex-parceiro. Isto é, crimes no âmbito doméstico que foram considerados feminicídio pela lei atual. Provavelmente teremos dados mais objetivos quando iniciar todo o processo de instalação de inquéritos por esses crimes etc.
A segunda novidade é uma pesquisa nacional, que foi produto de uma parceria entre o IBGE e o Ministério da Saúde, que trabalhou com uma mostra de aproximadamente 60 mil pessoas, com mais de 18 anos. A questão a ser respondida era se no último ano antes do dia da pesquisa a pessoa havia sofrido algum tipo de agressão por parte de pessoas conhecidas e por parte de pessoas desconhecidas. Projetando a amostra, para o conjunto da população brasileira maior de idade, tem-se, aproximadamente, 2,44 milhões de mulheres que foram agredidas por pessoas conhecidas e 2,05 milhões de mulheres agredidas por pessoas desconhecidas. Portanto, cerca de 4,5 milhões de mulheres sofreram, em algum momento do último ano, uma ou mais agressões na rua e no seio do lar por pessoas conhecidas e desconhecidas. Isto é, praticamente, 6% da população de mais de 18 anos de idade. É uma quantidade enorme de gente e isso deve preocupar, e como, as autoridades.
IHU On-Line – O que o aumento da violência doméstica revela?
Julio Jacobo Waiselfizs – Revela várias questões. A primeira questão é que violência doméstica não é patrimônio exclusivo das mulheres ou fato exclusivo das mulheres. Estão na mesma situação as crianças, os adolescentes, os jovens e os idosos. Nos últimos anos, em cada uma dessas áreas houve incremento da violência letal dos homicídios, em cada uma dessas áreas há um vínculo semelhante e as figuras sempre são as mesmas: pobres, negros, os que moram nas periferias urbanas, com baixo nível educacional, com baixo acesso ao mercado de bens e ao mercado de trabalho. A questão é mais complexa, embora no caso das mulheres haja a junção de outros fatores, como o sexismo, ou seja, ódio e subordinação de gênero e, também, a seletividade por raça. Não é por causalidade que nesse ponto se juntam dois estereótipos da nossa sociedade que são muito pesados: machismo e racismo.
IHU On-Line – O que explica o fato, segundo a pesquisa, de que as mulheres negras sejam as mais suscetíveis à violência?
Julio Jacobo Waiselfizs – Isso é resultado de dois complexos históricos marcantes do Brasil, apesar de criar toda uma biografia, inclusive da sociologia, que fala que no país há uma democracia racial ou, historicamente, que a escravatura foi branda, que houve uma transição pacífica da senzala etc. Não há comprovação que foi assim e o movimento negro denuncia a sociedade brasileira.
Brasileiro Cordial
Outro estereótipo que existe é que o brasileiro é cordial. Há toda uma bibliografia baseada em alguns autores, filósofos e sociólogos, que falam que os brasileiros são cordiais, inclusive que não há tanta cordialidade quanto se pode apregoar. O primeiro passo da cura é a consciência da enfermidade, se a pessoa ou a sociedade não são conscientes dos problemas, é difícil se curar. Entretanto, a consciência da enfermidade não garante a cura, além disso, tem que haver outras medidas para superar o problema. E, neste momento, o que está acentuando e por que estão sendo elevados os níveis de violência, que já eram altos e continuam a se elevar? Primeiro e fundamental, não só neste marco da violência, em várias outras áreas, estamos vivendo uma situação de reação conservadora.
Reação conservadora
Está acontecendo, por exemplo, muito evidentemente uma reação conservadora com relação ao Estatuto do Desarmamento. Há um grupo de 60 deputados diretamente financiados pela indústria das armas de fogo e pela indústria da munição. Inclusive o presidente da Comissão que discute o Estatuto do Desarmamento teve suacampanha financiada por essas indústrias (isso fica evidenciável na declaração de onde surgiram os recursos para a campanha, com base nas declarações dos próprios deputados ao Superior Tribunal Eleitoral). Ora, o presidente dessa Comissão diz que esse financiamento não irá interferir em sua decisão; eu duvido muito.
Estatuto da Criança e do Adolescente
Há ainda o retrocesso diante do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, onde se está pretendendo reduzir a maioridade penal dos 18 para 16 anos, ou seja, colocar meninos no cárcere. Além disso, estão discutindo o Estatuto da Família, problemas do aborto etc. Em todas essas ações temos uma reação conservadora e nesta ordem, também, as estruturas tradicionais estão reagindo no sentido de voltar ao esquema anterior, por quê? Porque nesse momento a mulher da família, as poucas mulheres que estão bem informadas, que podem denunciar a violência do marido, anunciam isso para o “marido tradicional” e ele reage com muito mais violência do que reagiria se a mulher fosse subordinada. Ou seja, a própria ação da mulher, ao se defender legitimamente, está gerando uma reação conservadora por parte dos setores mais tradicionais. Isso explica, para mim, a violência atual e o aumento dos índices.
IHU On-Line – Um fator desse aumento não poderia estar relacionado, em vez de um crescimento da violência, a um maior empoderamento das populações vulneráveis que antes ficavam caladas?
Julio Jacobo Waiselfizs – Sim. A história demonstra que toda a ação gera uma reação social. Não há mudança socialque deixa todo mundo contente. Quanto mais poderosas as ideologias ou os setores que se veem afetados, mais intensa é a reação. Essa ideologia da estrutura paternalista e patrimonialista que existe no Brasil é muito profunda e vem da época ainda da escravatura.
IHU On-Line – Existem dados que demonstrem os percentuais de violência praticados pelo Estado e aqueles que ocorrem devido à negligência do Estado?
Julio Jacobo Waiselfizs – Não. Eu não trabalho com os dados sobre isso e eu não trabalhei diretamente com a violência de Estado, fazendo estatísticas, sobretudo porque são estatísticas difíceis de conseguir e pouco confiáveis, uma vez que são de origem da própria polícias. Não existe nenhum panorama integral, mas se sabe que o nível de letalidade das nossas polícias é muito alto se comparado, por exemplo, com as outras polícias do mundo, inclusive comparando com a polícia mais dura, que é a dos Estados Unidos.
Genocídio negro
O Brasil mata muito mais negros do que a polícia dos Estados Unidos, que é acusada de racismo. Por exemplo, São Paulo, apesar de ter uma das melhores polícias do país, também tem uma das polícias que mais mata. O Estado está devendo à sociedade uma reforma do sistema de segurança nacional, que se discute há muitos anos, com a questão da polícia de ciclo integral, a desmilitarização, a polícia unificada a nível nacional, que junte diversos níveis, sem as disputas entre polícia militar e polícia civil. Nesse caso, o Executivo e o Legislativo estão devendo uma reforma que vem sendo discutida há mais de dez anos.
IHU On-Line – Qual a questão de fundo que está por trás do debate sobre a segurança pública no Brasil?
Julio Jacobo Waiselfizs – A questão de fundo, novamente, são os interesses criados. Há uma enorme quantidade de delegados e ex-delegados das polícias que são deputados, cada um defende sua corporação: a Polícia Militardefende sua corporação; a Polícia Civil defende sua corporação; a Polícia Federal defende sua corporação. Portanto, temos entidades corporativas em que cada um trabalha por seu lado, com o mínimo de interface. As organizações criminosas são muito mais bem organizadas que nossas polícias.
IHU On-Line – Um discurso que volta e meia é retomado quando índices sobre a violência são atualizados, é o de uma maior liberalização na compra de armas. Em que medida armar a população fragiliza ainda mais os mais vulneráveis?
Julio Jacobo Waiselfizs – Há muitos estudos realizados e financiados pela grande corporação das armas de fogo, mas não tem nenhum estudo sério feito por pesquisadores conceituados. Nenhuma das pesquisas independentes aponta correlação positiva entre circulação de armas de fogo e violência letal. Muito pelo contrário, todas as pesquisas feitas pela chamada “Gran Corporation” e por outras organizações dos Estados Unidos e da Europa comprovam exatamente o contrário. Quanto mais armas, mais mortes ou porque o bandido, também armado, reagirá e reage muito mais rápido que o “homem de bem” ou porque não existem condições para esse “homem de bem” reagir. Então, nós não supomos, temos evidências - estou falando de pessoas que têm muito tempo de trabalho feito nessa área - que a liberação das armas de fogo, que está se discutindo agora, vai gerar uma carnificina em nível nacional.
Violência
Os índices de violência explodirão rapidamente porque qualquer cidadão que pegar algum “pivete” que roubou alguma coisa começará a fazer justiça com as próprias mãos e isso é retroceder à era das cavernas e à barbárie. Concebe-se que existe civilização quando a solução do conflito é negociada pacificamente ou normatizada pela justiça. Ora, voltar à época onde cada qual mata a quem pode e a quem quer, em caso de conflito, é voltar à época das cavernas.
IHU On-Line – Por que a questão racial ainda é um fator relevante?
Julio Jacobo Waiselfizs – Há estruturas que lucram ou se beneficiam socialmente com essa subordinação. Eu não conheço nenhuma estrutura que liberou a questão racial de forma muito pacífica. Veja África do Sul e Estados Unidos, onde ainda hoje existem enormes conflitos raciais, apesar de os dois serem democracias mais antigas, inclusive, que o Brasil.
Esse tipo de visão não é fácil de erradicar, só pode ser erradicada com estudo, com educação etc. No entanto, a nossa educação, dirigida preferentemente aos jovens, está “mal das pernas”. Nossa cobertura escolar do ensino médio, segundo dados da avaliação nacional que faz o Ministério da Educação, no Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEP, trabalhando com amostras dos alunos do ensino médio, há mais de dez anos não sofre nenhuma alteração. Não melhora nem piora, mas não piora porque já era ruim então é impossível piorar. A sociedade poderia se desenvolver e melhorar a inclusão social, melhorar os mecanismos de inclusão social com a educação, mas não obstante os desafios, nossos investimentos nessas áreas são muito pobres.
Por Ricardo Machado
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