PORQUE NÃO VIMOS NENHUMA BANDEIRA DE MIANMAR?
Mianmar compõe os países que motivam a seguinte pergunta: “Um momento, esse país existe?” Existe e tem 53 milhões de pessoas.)
Se não há impacto na notícia, não há comoção. Mark Zuckerberg não sugerirá a bandeira de Mianmar (ainda chamado de Birmânia em Portugal e outros países) em nossos perfis no Facebook. E por que essas outras vítimas da mineração não são notícia, ao menos não aquelas notícias que promovem catarse?
Ocidente minimiza catástrofe no Sudeste Asiático motivada por ganância de mineradoras; qualquer semelhança com Minas Gerais não será mera coincidência
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Tome-se a editoria de Internacional do Estadão nesta segunda-feira. Ela que já foi a mais completa do jornalismo brasileiro. Procure-se a última notícia. Lá está: “Deslizamento de mina deixa pelo menos 100 mortos em Mianmar”. Mas há outros 100 trabalhadores desaparecidos. Ou seja, soterrados. Observem a matemática do crime: são duzentos assassinados por falta sistemática de segurança nas minerações de jade – a pedra preciosa. Certamente pendurada em alguns pescoços elegantes pelo planeta.
Mas não haverá luto mundial. Se não há impacto na notícia, não há comoção. Mark Zuckerberg não sugerirá a bandeira de Mianmar (ainda chamado de Birmânia em Portugal e outros países) em nossos perfis no Facebook. E por que essas outras vítimas da mineração não são notícia, ao menos não aquelas notícias que promovem catarse? Porque são trabalhadores pobres do Sudeste Asiático, num país que perdeu 100 mil pessoas – 100 mil pessoas – em 2008, após a passagem de um ciclone. E nem por isso entra pela porta da frente no noticiário sobre catástrofes.
(A vida imita os memes. No MapaMundi Trágico, Mianmar compõe os países que motivam a seguinte pergunta: “Um momento, esse país existe?” Existe e tem 53 milhões de pessoas.)
A própria edição de ontem do Estadão é bem ilustrativa dos critérios utilizados pelos editores. A manchete do jornal é a eleição na Argentina. E qual o segundo destaque internacional? A Bélgica. A Bélgica que “mantém alerta máximo para atentados”. Na página interna lemos que o país europeu mantém esse alerta “e busca suspeito”. O tema abre um caderno. Mais abaixo, França, Obama, Cameron. Na página seguinte, França, Rússia. Irã e Estado Islâmico aparecem em situações de confronto com o Ocidente.
E, lá no fim, onde a gente acha que cabe, o deslizamento de mina em Mianmar. Com os 200 mortos duplamente soterrados, pela terra e pelas notícias que nossos editores consideram mais importantes. Lemos ali que as grandes mineradoras no país pertencem a ex-generais e a barões do tráfico, e que eles faturam centenas de milhões de dólares. A página acaba e partimos para a página seguinte, ler sobre a catástrofe de Mariana (MG), o impacto ambiental no campo e nos mares num caderno chamado Metrópole.
NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMAS PESSOAS
Pode soar cansativo repetir. Mas essas centenas de milhões de dólares estão perfeitamente integradas no sistema financeiro mundial. O capitalismo não se move à margem dessas pedras preciosas e dessa riqueza. E sim a partir delas, sem distinção. Assim como não se move à parte da riqueza – esta movida, em tese, conforme as leis vigentes no Brasil – gerada em Minas Gerais ou no Pará, por empresas como a Vale e a BHP Billinton. Nossos 20 mortos e os 200 mortos de Mianmar estão soterrados pela mesma lógica, as mesmas veias abertas.
O luto mundial é francês. A próxima preocupação do Ocidente, a Bélgica. “Militares patrulham ruas de Bruxelas após alerta”, informa a legenda do Estadão. Ao lado do soldado, incrivelmente encouraçado, um tanque. Atrás, vemos dois belgas esguios, como que parentes distantes de Tintin, o repórter da série de quadrinhos criada por Hergé (importantíssima na história das HQs), aquele que saía pelo mundo combatendo inimigos exóticos. Vários destes vilões eram larápios em busca de tesouros. (Tesouros!)
Era uma visão colonizadora. Mas Tintin era um repórter com espírito investigativo, misturado a um ímpeto policial (como o Mickey em sua fase de detetive), mas ainda assim um espírito investigativo. Esperem: repórteres internacionais investigativos? Como não temos mais nem correspondentes internacionais no jornalismo brasileiro, nada poderia ser mais distante. Ficamos sem saber com profundidade o que acontece pelo mundo. Quando sabemos, perde-se a intensidade, o drama, a cor. Ou a perspectiva crítica.
E fica assim: 200 mortos em Mianmar motivam somente um pé de página. E corta. Pula para a outra notícia.
Caso morram 10.000 birmaneses talvez eles ganhem metade do espaço dado para os mortos na França. Sem continuação no dia seguinte.
Em tempo: esta é a bandeira de Mianmar. Durante alguns segundos, você terá visto a bandeira de Mianmar.
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