DEBATE ABERTO
Em um país que viveu duas grandes ditaduras em sua história, o fato de as instituições autorizarem a criação de um estado de exceção permanente no trato de adolescentes infratores gera um grave precedente que fere a ideia de vivermos em um país democrático.
Edson Teles
Recentemente, uma revista semanal de circulação nacional publicou, em sua versão paulista, uma matéria de capa sobre “o duro caminho da recuperação” dos “menores infratores que vivem na Fundação Casa”, em São Paulo. Esta instituição é a herdeira da antiga FEBEM, tragicamente famosa em todo o país pelo histórico de violações de direitos dos adolescentes que para lá eram encaminhados. A matéria destaca a nova estrutura da instituição adotada após a entrada da procuradora Berenice Gianella em sua direção.
O tom adotado pelo jornalismo sensacionalista da revista enfatiza uma grave oposição entre os tempos da “violência institucionalizada” e a nova era, assumida perante o discurso legitimado por um pretenso amor materno, explícito na fala da Presidente da instituição: “(...) posso dizer que são meus filhos”. Há que se reconhecer uma série de melhorias ocorridas nos últimos anos. Talvez a maior delas seja a diminuição da violência vivida nas grandes rebeliões do fim dos anos noventa e começo dos dois mil.
Contudo, a maior barbaridade jornalística cometida refere-se ao comentário sobre o adolescente punido por crimes graves cometidos quando tinha 16 anos. Além de chamá-lo de “monstro” (estranho, pois o título da matéria é “Em busca de uma segunda chance”; uma segunda chance para um “monstro”?), os jornalistas simplificam o caso dizendo que “esse criminoso está hoje internado em uma unidade psiquiátrica do Estado” (grifo nosso).
A tal unidade, de fato, possui nome, estrutura e encontra-se em grave conflito com as leis da Constituição do nosso país. É a Unidade Experimental de Saúde (UES), criada em 2006, por iniciativa da Vara da Infância e da Juventude e da Secretaria da Saúde do Estado, com a participação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Associação Beneficiente Santa Fé. Seu objetivo inicial era o de receber adolescentes infratores diagnosticados com graves distúrbios psicológicos. Cerca de um ano depois, os dois parceiros citados abandonaram o projeto.
Há vários problemas aí envolvidos, como a própria instalação da UES indica. O quadro legal de manutenção da privação de liberdade de jovens que cometeram o ato infracional com menos de 18 anos não está previsto em nenhuma estrutura jurídica. O ECA determina que a detenção será por no máximo três anos. No caso em discussão, o adolescente cumpriu este período máximo e não recebeu sua liberdade de volta, mesmo após ter percorrido, à exaustão legal e etária, todos os procedimentos previstos pela medida socioeducativa de privação de liberdade. Não bastasse isto, o governo do Estado ainda tentou interná-lo, antes de seu encarceramento à UES, na Casa de Custódia de Taubaté, destinado à adultos infratores e com problemas psiquiátricos. Este aparato é, portanto, impossibilitado legalmente de receber alguém que cometeu ato infracional na adolescência.
Há neste quadro algumas interrogações: como é possível a contenção de um adolescente que já cumpriu a medida máxima de privação de liberdade? Diante deste quadro, qual o estatuto jurídico da Unidade Experimental de Saúde?
Responder a estas questões é tão difícil quanto o modo como o Estado tem lidado com a UES. Após a confusão inicial e não esclarecida do rompimento de contrato com a Unifesp, a administração da unidade passou a ser compartilhada entre a Secretaria da Saúde, a Secretaria de Assuntos Penitenciários e a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania (em fins de 2007). Um ano depois ela voltou a ficar sob o encargo da Secretaria da Saúde. Não se sabe ao certo se os sete adolescentes que hoje lá se encontram estão por motivo de saúde mental ou de periculosidade.
Esta confusão se dá pela própria condição jurídica do local, o qual se encontra em um verdadeiro estado de exceção. Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, o estado de exceção caracteriza-se pela suspensão do ordenamento normal em favor de uma necessidade maior, uma emergência. Nesta situação, a interrupção do direito aponta para uma íntima e perigosa relação entre o sistema de justiça e a ação ilegal do Estado, violando os direitos fundamentais do cidadão. Em um típico caso de estado de exceção, a UES encontra-se dentro e fora da lei. Dentro do aparato institucional do Estado, criada com base nas exigências da Vara da Infância e da Juventude, e fora da lei, ao não respeitar os direitos previstos no ECA e na Constituição sobre privação de liberdade para adolescentes autores de ato infracional.
De fato, o ordenamento jurídico e o Estado brasileiro rasgaram a Constituição em favor de certo apelo popular por uma demonstração de punição grave e exemplar. Em um país que viveu duas grandes ditaduras em sua história, o fato de as instituições autorizarem a criação de um estado de exceção permanente no trato desses adolescentes gera um grave precedente que fere a ideia de vivermos em um país democrático e respeitoso aos direitos de seus cidadãos.
O tom adotado pelo jornalismo sensacionalista da revista enfatiza uma grave oposição entre os tempos da “violência institucionalizada” e a nova era, assumida perante o discurso legitimado por um pretenso amor materno, explícito na fala da Presidente da instituição: “(...) posso dizer que são meus filhos”. Há que se reconhecer uma série de melhorias ocorridas nos últimos anos. Talvez a maior delas seja a diminuição da violência vivida nas grandes rebeliões do fim dos anos noventa e começo dos dois mil.
Contudo, a maior barbaridade jornalística cometida refere-se ao comentário sobre o adolescente punido por crimes graves cometidos quando tinha 16 anos. Além de chamá-lo de “monstro” (estranho, pois o título da matéria é “Em busca de uma segunda chance”; uma segunda chance para um “monstro”?), os jornalistas simplificam o caso dizendo que “esse criminoso está hoje internado em uma unidade psiquiátrica do Estado” (grifo nosso).
A tal unidade, de fato, possui nome, estrutura e encontra-se em grave conflito com as leis da Constituição do nosso país. É a Unidade Experimental de Saúde (UES), criada em 2006, por iniciativa da Vara da Infância e da Juventude e da Secretaria da Saúde do Estado, com a participação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Associação Beneficiente Santa Fé. Seu objetivo inicial era o de receber adolescentes infratores diagnosticados com graves distúrbios psicológicos. Cerca de um ano depois, os dois parceiros citados abandonaram o projeto.
Há vários problemas aí envolvidos, como a própria instalação da UES indica. O quadro legal de manutenção da privação de liberdade de jovens que cometeram o ato infracional com menos de 18 anos não está previsto em nenhuma estrutura jurídica. O ECA determina que a detenção será por no máximo três anos. No caso em discussão, o adolescente cumpriu este período máximo e não recebeu sua liberdade de volta, mesmo após ter percorrido, à exaustão legal e etária, todos os procedimentos previstos pela medida socioeducativa de privação de liberdade. Não bastasse isto, o governo do Estado ainda tentou interná-lo, antes de seu encarceramento à UES, na Casa de Custódia de Taubaté, destinado à adultos infratores e com problemas psiquiátricos. Este aparato é, portanto, impossibilitado legalmente de receber alguém que cometeu ato infracional na adolescência.
Há neste quadro algumas interrogações: como é possível a contenção de um adolescente que já cumpriu a medida máxima de privação de liberdade? Diante deste quadro, qual o estatuto jurídico da Unidade Experimental de Saúde?
Responder a estas questões é tão difícil quanto o modo como o Estado tem lidado com a UES. Após a confusão inicial e não esclarecida do rompimento de contrato com a Unifesp, a administração da unidade passou a ser compartilhada entre a Secretaria da Saúde, a Secretaria de Assuntos Penitenciários e a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania (em fins de 2007). Um ano depois ela voltou a ficar sob o encargo da Secretaria da Saúde. Não se sabe ao certo se os sete adolescentes que hoje lá se encontram estão por motivo de saúde mental ou de periculosidade.
Esta confusão se dá pela própria condição jurídica do local, o qual se encontra em um verdadeiro estado de exceção. Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, o estado de exceção caracteriza-se pela suspensão do ordenamento normal em favor de uma necessidade maior, uma emergência. Nesta situação, a interrupção do direito aponta para uma íntima e perigosa relação entre o sistema de justiça e a ação ilegal do Estado, violando os direitos fundamentais do cidadão. Em um típico caso de estado de exceção, a UES encontra-se dentro e fora da lei. Dentro do aparato institucional do Estado, criada com base nas exigências da Vara da Infância e da Juventude, e fora da lei, ao não respeitar os direitos previstos no ECA e na Constituição sobre privação de liberdade para adolescentes autores de ato infracional.
De fato, o ordenamento jurídico e o Estado brasileiro rasgaram a Constituição em favor de certo apelo popular por uma demonstração de punição grave e exemplar. Em um país que viveu duas grandes ditaduras em sua história, o fato de as instituições autorizarem a criação de um estado de exceção permanente no trato desses adolescentes gera um grave precedente que fere a ideia de vivermos em um país democrático e respeitoso aos direitos de seus cidadãos.
Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
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