"A retomada do controle do Estado no Alemão e na Vila Cruzeiro teve como mola propulsora um esquema de propaganda para subtrair marcas de um passado que não passou. O teatro de máscaras caiu estrondosamente. Mais uma vez a Cidade Maravilhosa surpreende o mundo, e para pior", escrevem Bruno Lima Rocha e Rafael Cavalcanti. Bruno Lima Rocha é cientista político, tendo feito doutorado e mestrado na UFRGS, jornalista formado na UFRJ; docente de comunicação e pesquisador 1 da Unisinos; membro do Grupo Cepos (Comunicação, Economima Política e Sociedade) e editor do portal Estratégia & Análise. Rafael Cavalcanti é graduando em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, da Faculdade Integrada Tiradentes, atua na comunicação sindical e é membro do Grupo Cepos. Eis o artigo. Tem situações estruturais que se compreendidas tal como são, mudam a noção de verdade, norma e consenso entre os cidadãos. A segurança pública no estado do Rio encarna uma situação limite, típicas da caracterização de Estado Falido. É certo, outros poderes e instituições desse nível de governo sub-nacional não tem tamanho grau de corrupção. Mas, em uma Região Metropolitana onde existe mais de mil espaços geográficos cujo controle do Estado é parcial ou nulo, a banda podre na ponta (o varejo do tráfico, as apostas ilegais, os transportes clandestinos, serviços de consumo por fora da fiscalização, dentre outras variantes de tipo capitalismo informal com ares de selvageria) corrompe ou afeta o conjunto de poderes e agentes com capacidade de veto. Até tentaram gerar o efeito de encantamento e mágica, mas não deu certo. De uma hora para outra, diante dos helicópteros da Globo e da Record, a realidade fruto da experiência vivida por mais de 2 milhões de cariocas e fluminenses, supera a hiper-realidade midiática e força a ação do Estado para conter a rebelião do Comando Vermelho. O país precisava de uma guerra tipo missão humanitária e atividade-fim civilizatória. Diante das câmaras, um jovem delegado com trajetória meteórica surge para o público receptor como uma fonte confiável e respeitável. Após a tomada e invasão do Morro do Alemão, o castelo de cartas começa a cair, porque como está na moda, esta também era uma noção construída em cima do nada. Em maio de 2009, o então recém empossado chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Allan Turnowski, declarou para o jornal O Globo: “Estou mais preparado para combater milícia do que qualquer um que não esteve na ponta. Porque eu sei exatamente o que vai acontecer se nada for feito: meus policiais, políticos e jornalistas vão morrer em emboscada”. Nada mais profético. O delegado de carreira acertaria em cheio o prognóstico, caso ele mesmo não estivesse sendo acusado de estar envolvido nos escândalos de abuso de poder no estado. A emboscada fora montada com ordem judicial e demonstra um racha profundo e gangrenoso por dentro do aparelho repressivo estadual. Bastaram dois anos e uma investigação da Polícia Federal (PF) para derrubar a estrela midiática das invasões ao Complexo do Alemão e à Vila Cruzeiro. A Operação Guilhotina prendeu dezenas de policiais sob a acusação de participação em milícias, desvio de armas e ligações com bicheiros e narcotraficantes. O ex-subchefe operacional da Polícia Civil e principal colaborador de Turnowski na corporação, Carlos Oliveira, está entre os acusados. Turnowski pediu exoneração do cargo, que foi aceita pela Secretaria de Segurança Pública do Rio sob o pretexto de ser o mais adequado para preservar “o bom funcionamento das instituições”. Nunca é demais lembrar que o demissionário é adversário de Cláudio Ferraz, o delegado estrela da Delegacia de Repressão às Ações Crimonosas Organizadas (DRACO), e um dos co-autores do livro Elite da Tropa 2, o texto que dera base para o roteiro do ultra-realista filme de José Padilha. Para complicar ainda mais, Turnowski também é “peixe” (ou era) de Álvaro Lins, o ex-oficial do BOPE que se tornara delegado da Civil (passara num concurso para a magistratura e optou pela Polícia!), também ex-chefe de Polícia e deputado estadual (PMDB) cassado. O delegado da Federal, José Mariano Beltrame, badalado secretário de Segurança Pública do RJ, indicara o dr. Allan para o cargo e, seguramente, ficou com uma batata quente nas mãos, sendo fritas em azeite pelando. Várias acusações também pesam contra o delegado. Uma testemunha, que atuou durante 15 anos como informante do grupo de Oliveira, denunciou para a Polícia Federal (após ter o irmão assassinado, segundo o próprio depoente, pela quadrilha) que Turnowski recebia R$ 500 mil por mês de propina de uma milícia no bairro Jacarepaguá, na capital do Rio, e mais R$ 100 mil para permitir a venda de produtos falsificados no camelódromo Uruguaiana. O diretor da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) também acusa o ex-chefe da Polícia Civil de envolvimento em crimes na favela da Coréia e desvio de armas apreendidas durante operações. Há ainda a suspeita de vazamento de informações para “irmãozinhos” alvos da investigação da PF, policiais estes que resultaram presos da Operação Guilhotina. Embora faltem provas conclusivas contra Turnowski, é inegável a corrupção do grupo que lhe acompanha há tanto tempo. Para piorar, conforme já dissemos, um dos seus antecessores no mais alto posto da Polícia Civil, o ex-deputado estadual Álvaro Lins, que o pôs como diretor geral das delegacias especializadas, foi condenado em 2010 a 28 anos de prisão por formação de quadrilha armada, corrupção passiva e lavagem de bens. Lins foi preso pela primeira vez no exercício do mandato de parlamentar estadual, em maio de 2008, durante a Operação Segurança Pública S/A, da Polícia Federal. Como diria o personagem criado por José Padilha, o Capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura nos filme Tropa de Elite (1 e 2), “o sistema não tem limite, parceiro. Não tem fronteira. Ele já faz parte da cultura da polícia”. Trata-se de uma cultura de extorsão e morte e estas barbaridades não vêm de agora. O Esquadrão Especial da antiga Polícia Civil da Guanabara, ainda no governo Lacerda, inaugura uma nova tradição de “bandido bom é bandido morto”, desde que não sejam pistoleiros a serviço de políticos ou capangas do Jogo do Bicho. A nova modalidade de crime no Rio enquadra-se no conceito de Estado ampliado em sua forma falimentar, quando se forma um poder não paralelo, mas complementar e alimentado por dentro do aparelho de segurança e repressão. Esta realidade brutal, magistralmente narrada nas obras já citadas, torna-se alvo da elite da polícia brasileira, a partir de investigações, a Operação Guilhotina tentará desvendar crimes de grande repercussão no Rio de Janeiro. Já existem evidências da participação de policiais civis e militares em mais de 15 homicídios, que gozavam do livre acesso à cúpula da Polícia Civil. Entre os principais casos, está o do bicheiro Rogério Andrade em 2010. Rogério é filho do falecido “banqueiro de bicho” Castor de Andrade, padrinho da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel e do clube de futebol Bangu A. C. O atentado foi à moda da antiga direita explosiva do Brasil, os mesmos que no período da Abertura política e da transição dos governos Geisel para Figueiredo (1978-1981) explodiam bancas de jornal, instituições de tipo republicanas (como OAB e ABI) e que tiveram seu réquiem no episódio do Rio Centro. No caso de Rogério de Andrade, foi posta uma bomba caseira em seu carro; Andrade sobreviveu, mas seu filho acabou morrendo no atentado, que contou até com um mercenário israelense. Também houve o sumiço da chinesa Ye Goue após trocar R$ 220 mil numa casa de câmbio em 2008, e os assassinatos do ex-deputado tucano (PSDB entre 1995 e 1998, durante o governo Marcelo Alencar) e à época assessor da Secretaria Estadual de Governo (já no mandato do ex-tucano e atual peemedebista Sérgio Cabral Filho) Ary Ribeiro Brum, como também do presidente da associação de ambulantes Alexandre Pereira, ambos em 2007. Além, claro, de vários episódios de queima de arquivo. Direitos Humanos? Em outubro de 2010, estreou em todo o Brasil a continuação de um dos mais bem-sucedidos filmes nacionais. Tropa de Elite 2, do diretor José Padilha, baseia-se no livro de “ficção” Elite da Tropa 2, escrito pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares, pelos policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) André Batista e Rodrigo Pimentel, e por Cláudio Ferraz, o delegado diretor da DRACO, o mesmo que denunciou Turnowski à Polícia Federal. Ao contrário do primeiro filme, a nova versão de Tropa de Elite mostra um estado onde os traficantes foram expulsos de comunidades e estas foram tomadas por milícias. Os policiais que antes extorquiam os traficantes por meio do chamado arrego, passaram a lucrar muito mais ao extorquir toda a comunidade em diversos serviços indispensáveis, como a venda de gás, acesso a internet e telegato e “proteção” ao pequeno comércio. Pela tradição da Baixada Fluminense e da Zona Oeste do Rio, é a sofisticação da chamada polícia mineira, agora em uma escala organizacional superior, incluindo a venda de porteira fechada para políticos locais. Dominar favelas gerava muito mais do que aumento nos ganhos. Gerava votos. E, no enredo do filme, logo deputados, o secretário de Segurança Pública e até o governador do Rio – no caso ficcional da obra - passaram a se beneficiar com as milícias, consideradas a essa altura como forças de segurança do Estado em zonas de alta criminalidade. Qualquer semelhança com o nascimento das Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) não são nenhuma coincidência. A vida e a arte se encontram na vala comum da sarjeta do aparato de segurança. No mesmo dia em que Tropa de Elite 2 passara a ser o filme nacional de maior bilheteria da história do cinema brasileiro, com quase 11 milhões de espectadores, forças militares e da polícia fluminense ainda recebiam elogios pelas operações na Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão. Supostamente, o tráfico teria perdido para o Estado sob os aplausos da mídia corporativa e da opinião pública. Contudo, a euforia escondia diversos desrespeitos aos direitos humanos, quase todos contra moradores das favelas que passaram a ser vistos como bandidos, sem diferenciação. Assim, se manteve o mesmo padrão operacional de toda uma vida, e especificamente aprimorado nos últimos 25 a 27 anos. A diferença era a cobertura multimídia, louvando as polícias de forma não crítica, negando-se (as mídias) inclusive de pôr contra a parede o governador do estado, que estava em Angra dos Reis, bem distante dos tiros e da pressão. Nos dias da invasão, os telespectadores do Brasil viram a ação republicana e os moradores da área invadida sentiram o pânico do avanço das guarnições contra o botim do narcotráfico. Mais uma vez a realidade supera a ficção. A Organização Não-Governamental Justiça Global, que atua em defesa dos direitos humanos, tornou público, por meio de um manifesto em 21 de dezembro de 2010, uma verdadeira caça pela herança do tráfico. De acordo com a ONG, “equipes policiais de diferentes corporações, de diferentes batalhões, se revezam em busca do dinheiro, das jóias, das drogas e das armas que criminosos teriam deixado para trás na fuga; em lugar de encaminhar para a delegacia tudo o que foi apreendido, as equipes estão partilhando entre elas partes valiosas do “tesouro”. Aproveitando-se do clima de “pente fino”, agentes invadem repetidamente as casas impondo ameaças e aplicando técnicas de tortura como forma de arrancar de moradores a delação dos esconderijos do tráfico. Não bastasse isso, praticam a extorsão e o roubo de pequenas quantias e de telefones celulares, câmeras digitais e outros objetos de algum valor”. Por atacado ou no varejo, o arrego tem que continuar! E, na ausência do arrego, passa-se a dominação territorial do tipo “milícias” para-militares e para-policiais. Das denúncias a ONG passa a ser propositiva, desejando algum tipo de utopia republicana, algo mais distante de ser executável do que uma profunda e radical transformação social. Em nova nota expedida na semana de 07 de fevereiro, a Justiça Global mostra que o resultado da Operação Guilhotina reforça a necessidade de se debater uma reforma das polícias. Reforma esta de caráter estrutural que vise transparência, fiscalização e o controle externo e independente da atividade policial, diminuindo assim o poder das investigações internas que costumam se contaminar pelo corporativismo ou por disputas internas. Apesar de errarem na proposta (pela utopia legalista), entendemos que acertam ao manifestar a necessidade de cortar na carne. A ONG também entende que “o governo do estado do Rio de Janeiro deve ser responsabilizado pelos roubos e pelas invasões de domicílio praticadas por policiais nas favelas do Complexo do Alemão e da Penha. Vamos lembrar que, logo após a ocupação, o coronel Mario Sergio Duarte, comandante da Polícia Militar, foi à imprensa e deu carta branca aos abusos e às violações de direitos na região ao afirmar: ‘A ordem é vasculhar casa por casa’”. Como diziam os antigos, “liberou geral e a samangada não perdeu a chance de faturar!”. Vale frisar que o governador Sérgio Cabral administra o Rio de Janeiro há quatro anos e que o seu partido, o PMDB, foi gestor do estado por outros oito, nas figuras do casal Anthony e Rosinha Garotinho. O governador teria inclusive vetado a lei que garantia o monitoramento das viaturas. Foi no mandato de Cabral que dois chefes da Polícia Civil caíram. Tudo isso leva a crer que há duas possibilidades não excludentes relacionadas à segurança pública do Rio de Janeiro: ou o governador sofre de uma terrível falta de sorte nas escolhas, beirando à incompetência administrativa, ou o mesmo sabe que, em certos momentos, é impossível manter-se no poder sem o convívio do que está posto. Apontando conclusões: a tropa de elite é real Nas antigas regras do mar era assim. Um navio tomado era uma embarcação saqueada. Muitos impérios, dentre eles o britânico no reinado de Elizabeth I, sangraram os oceanos municiando seus capitães com cartas de corso. O mais famoso, Francis Drake (1540-1596), ganhou título de Sir e ajudou a Inglaterra a derrotar a “invencível” armada espanhola, como vice-almirante em 1588. Não é de hoje que os Estados liberam seus agentes de ordem e força para apropriar-se das presas em nome do bem comum. No Brasil do início do século XXI, não precisa ser especialista operador da área e nem estudioso acadêmico do tema para distinguir entre a ação coordenada de forças federais e estaduais com aquilo que mais pareceu uma contra manobra. Turnowski caiu porque acusou o golpe da Operação Guilhotina, dando ordem e liberação para uma ação de represália da hierarquia superior da polícia judiciária fluminense para com uma de suas unidades mais jacobinas, a DRACO. É quase surreal, se não fosse cotidiano. A chefia da Polícia do Rio pune uma de suas unidades por esta operar como polícia de Estado. E, para completar, a Associação de Delegados de Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro (Adepol-RJ), no entender destes que escrevem, passa recibo e protesta veementemente contra o secretário Beltrame pelo “ato espetaculoso” da PF com o devido auxílio da Sub-secretaria de Inteligência subordinada diretamente a cúpula da segurança pública fluminense. A Associação de Delegados torna-se, na prática, leal e fiel ao ex-chefe de Polícia Allan Turnowski, ao criticar a infiltração policial dentro da própria polícia. Assim, ainda na ética de defender “irmãozinhos”, a Adepol-RJ recorda a velha máxima do 10 por 1, querendo seguir o baile como toda uma vida. Não há nada de novo no front, a não ser o fato de que por vezes, as disputas intra-policiais escancaram o modus vivendi de corporações estruturalmente marcadas pela corrupção e a violência ilegal. Percebam que não afirmamos serem todos os policiais fluminenses corruptos, mas sim que o aparelho está todo atravessado por práticas de ilícitos. Um jornalista “das antigas”, ele mesmo ex-diretor de escola de samba, nos narra a sedução do convívio com a bandidagem com ou sem distintivo. Segundo suas contas, não deveriam ser 35 policiais os punidos pela Operação Guilhotina, mas um número na ordem dos milhares! A dureza destas sociedades e territórios cravados no Rio e Grande Rio é tão gritante que até uma telenovela da TV Globo (Duas Caras, de Aguinaldo Silva, exibida de outubro de 2007 a maio de 2008, com a inesquecível analogia de Rio das Pedras, chamada de Portelinha) romantizou a situação, atenuando a existência de milícias para-policiais, como que naturalizando um “estado de natureza” entre os pobres da metrópole. Já se nos ativermos ao ambiente interno das instituições coercitivas fluminenses (e cuja tragédia é passível de ser nacionalizada), a estrutura da banda podre salta aos gritos! Levando em conta o relatório final da CPI das Milícias concluído na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro em novembro de 2008 e a opinião pública influenciadas pelas obras já citadas, esta guilhotina já deveria estar cortando há mais tempo e em volume maior. A retomada do controle do Estado no Alemão e na Vila Cruzeiro teve como mola propulsora um esquema de propaganda para subtrair marcas de um passado que não passou. O teatro de máscaras caiu estrondosamente. Mais uma vez a Cidade Maravilhosa surpreende o mundo, e para pior. Para ler mais: |
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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
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A Operação Guilhotina e a corrupção estrutural das polícias do Rio de Janeiro. Tropa de Elite é real.
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