OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL
Em artigo publicado nesta coluna no último sábado (25/05), o professor José Levi Mello do Amaral Júnior ofereceu aos leitores uma forma interessante e, para muitos, nova de pensar sobre a evolução do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Segundo o texto, a evolução do modelo pátrio de controle tem se marcado por uma constante busca pelo stare decisis, instituto do direito anglosaxônico especialmente relevante para a compreensão do judicial review norte-americano, que busca dar segurança às teses jurídicas já decididas por cortes superiores, constrangendo os juízes e tribunais inferiores a seguirem seus precedentes, ante a ausência de qualquer matéria fática distintiva da questão em exame ou da alteração da paisagem jurídica viabilizadora de uma proposta de evolução da ratio juris subjacente aos precedentes.
O texto aqui publicado no sábado passado termina oferecendo ao leitor esse interessante caminho para refletir sobre o voto apresentado pelo ministro Gilmar Mendes na Reclamação 4.335. Segundo o professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o voto do ministro quer acentuar a necessidade — e o já suficiente grau de maturidade — de que o Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário em geral, reconheçam a força vinculante dos fundamentos determinantes de suas decisões, ainda que tomadas em processos subjetivos. O que o texto da semana passada afirma, e concordo com essa leitura, é que o voto do ministro Gilmar Mendes, ao defender a transcendência da ratio decidendi das decisões do Supremo, está a propor um passo além na caminhada de nosso modelo de controle rumo a algo pelo menos análogo ao stare decisis que vigora no sistema de controle estadunidense.
Isso me levou a refletir sobre as funções da Reclamação Constitucional em nosso modelo de controle de constitucionalidade, o qual se caracteriza, entre tantas outras coisas, pela adoção dos sistemas difuso e concentrado de controle. Deve-se ressaltar, de início, que a reclamação é um instituto que foi criado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, uma vez que não estava prevista em norma jurídica de qualquer natureza. Com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), delineada pelo juiz da Suprema Corte norte-americana John Marshall, no julgamento do caso McCulloch v. Maryland, o Tribunal construiu, paulatinamente, o instituto da reclamação.
Se, em um primeiro momento, o Supremo Tribunal Federal deixava transparecer que a reclamação tinha natureza administrativa ou correcional, em pouco tempo a Corte pode esclarecer que o instituto visava a garantir a autoridade de suas decisões e a coibir a usurpação de sua competência, em ambas as hipóteses tendo em mira julgados de juízes e cortes inferiores. Nesse sentido, a Reclamação 84 (DJ 23.7.46) impugnou decisão que supostamente aplicava de forma inexata precedente do STF. Na Reclamação 90 (DJ 19.4.48), o Tribunal chega a afirmar que a medida não tem natureza meramente administrativa. E, no julgamento do Recurso Extraordinário 13.828 (em 4 de abril de 1950), a 2ª Turma do STF, pela voz do relator, ministro Orosimbo Nonato, explicita que “a alegação de ofensa a julgado do Supremo Tribunal Federal pela Justiça local pode ser examinada e resolvida por via de reclamação”¹ .
Em sessão realizada no dia 2 de outubro de 1957, o Supremo fez constar de seu Regimento Interno a previsão da Reclamação. Muito se discutiu sobre a natureza jurídica do instituto. Houve quem o considerasse uma espécie de correição parcial, bem como quem atribuísse à reclamação natureza recursal, e a polêmica durou longos anos. Por fim, a Constituição de 1988 previu a reclamação, inicialmente, em seu artigo 102, inciso I, alínea “l”, e com ela a doutrina apaziguou-se em considerar o instituto um tipo de ação constitucional. A evolução do controle abstrato de normas pós-1988 e seu relacionamento com o antigo controle difuso de constitucionalidade trouxe novas perspectivas para o interessante instituto da Reclamação Constitucional, que, a partir da Emenda Constitucional 45/2004, passou a ser cabível, também, contra eventuais violações às súmulas vinculantes editadas pelo Supremo (artigo 103-A, parágrafo 3º, CF).
Ao pensar na forma como nasceu a reclamação e na evolução de nosso sistema misto de controle de constitucionalidade, que exige dos estudiosos do tema engendrar formas de compatibilização dos modelos difuso e concentrado, torna-se claro que a criação pretoriana desse instituto também serviu como uma espécie de sucedâneo do stare decisis entre nós, visto que permitiu ao Supremo Tribunal fazer valer a autoridade de suas decisões.
Mas a reclamação continua a apresentar desafios ao nosso sistema de controle de constitucionalidade e sua utilização criativa e inteligente oferece possibilidades interessantes para que o STF possa integrar e atualizar o conteúdo de suas decisões. Nesse sentido, revela-se extremamente importante a recente decisão tomada no julgamento da Rcl 4.374, relator Ministro Gilmar Mendes, Plenário, julgada em 18 de abril de 2013.
Nesse caso, o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) ajuizou reclamação contra decisão proferida pela Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Pernambuco, que concedeu ao interessado o benefício assistencial previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, em desrespeito ao parâmetro previsto na legislação de regência (artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 8.742/1993), a qual exige, para a concessão do referido benefício, o requisito renda familiar per capita inferior um quarto do salário mínimo. Isso porque tal parâmetro foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 1.232, na qual o relator era Ministro Ilmar Galvão, e o redator para o acórdão foi o ministro Nelson Jobim – Plenário, DJ 1º.6.2001.
Vários foram os casos em que juízos concederam o benefício fora do parâmetro legal, em razão do reconhecimento da hipossuficiência do interessado, comprovada pelas mais diversas maneiras. Na Rcl 4.374, a Corte, por maioria, acompanhou o voto do ministro Gilmar Mendes para entender que mediante o julgamento de reclamação pode o Tribunal integrar e atualizar o conteúdo de decisão proferida em ação direta de inconstitucionalidade, que já não se afigura consentânea com a realidade fática e jurídica vivenciada pelo país.
Ao julgar a ADI 1.232, o STF afirmou a constitucionalidade da norma inscrita no artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 8.742/1993, que assim dispõe: “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo”. Ante as inúmeras decisões de juízes e tribunais inferiores considerando que o parâmetro legal já não mais se mostrava consentâneo com a realidade socioeconômica brasileira, o Supremo Tribunal, ao reconhecer a correção dessa avaliação, utilizou-se da referida reclamação para reapreciar sua decisão tomada na ADI 1232, evoluindo em seu posicionamento para redefinir ou até mesmo superar o acórdão que serviu como parâmetro para o ajuizamento da reclamação, afirmando que tal decisão não mais se coaduna com a interpretação atual da Constituição.
Assim, o relator demonstrou que foram editadas diversas normas que previram critérios mais elásticos para a concessão de benefícios assistenciais, entre elas a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; e a Lei 10.219/2001, que criou o Bolsa Escola. A partir disso, a Corte pode constatar, no julgamento da reclamação, a ocorrência do processo de inconstitucionalização do artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 8.742/1993, decorrente da significativa alteração das condições políticas, sociais e econômicas vigentes no país, bem como em razão das mudanças jurídicas (as sucessivas modificações legais mencionadas) empreendidas.
Após essas considerações, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do artigo 20, parágrafo 3º, da Lei 8.742/1993, e julgou procedente a Reclamação 4.374, reconhecendo que os parâmetros legais sofreram processo de inconstitucionalização e que, portanto, os benefícios podem ser concedidos mediante outras formas de comprovação da situação de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes.
Retomando a ideia lançada no início do texto, conclui-se que a construção pretoriana da reclamação também pode ser inserida, na compreensão da evolução do controle de constitucionalidade brasileiro, entre os sucedâneos do stare decisis, uma vez que buscava dar ao Supremo Tribunal Federal meios de fazer valer a autoridade de suas decisões e de preservar a sua competência.
O julgamento da Rcl 4.374, por sua vez, demonstra que as possibilidades e funções do instituto são diversas e ainda não esgotadas. Do referido julgamento extrai-se que a reclamação pode-se tornar um importante instituto para a compatibilização dos modelos difuso e concentrado de controle de constitucionalidade. Ela permite que o Supremo Tribunal Federal dialogue com as instâncias ordinárias, de modo a perceber nuances e modificações fáticas relevantes para a melhor compreensão do atual significado da Constituição. A partir desse frutífero diálogo, viabiliza-se uma oxigenação da jurisdição constitucional, permitindo-se à Corte evoluir em sua interpretação, fazendo com que decisões em reclamações integrem e atualizem julgados antigos, proferidos pelo STF no controle abstrato de normas.
1. Sobre o assunto, consultar: DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000, pp. 172 e s.
Sérgio Antônio Ferreira Victor é doutor em Direito do Estado pela USP, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCeub), membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Revista Consultor Jurídico
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