O porte de arma de fogo do policial civil aposentado e a decisão do STJ no HC N. 267.058 - SP, negando este direito
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Realizando minhas pesquisas diárias, fomos surpreendidos com a decisão da 5º Turma do STJ, da lavra do Ministro JORGE MUSSI, relacionada ao porte de arma de fogo dos policiais civis aposentados, negando este direito, bem como reconhecendo a prática do crime de porte ilegal de arma de fogo a um policial civil aposentado, decisão esta proferida no HC N. 267.058-SP, e, noticiada no Informativo n. 554 do STJ[1], cujo inteiro teor também está disponível no site do referido tribunal[2]. A ementa ficou assim redigida:
DIREITO PENAL. PORTE DE ARMA DE FOGO POR POLICIAL CIVIL APOSENTADO. O porte de arma de fogo a que têm direito os policiais civis (arts. 6º da Lei 10.826/2003 e 33 do Decreto 5.123/2014) não se estende aos policiais aposentados. Isso porque, de acordo com o art. 33 do Decreto5.123/2004, que regulamentou o art. 6º da Lei 10.826/2003, o porte de arma de fogo está condicionado ao efetivo exercício das funções institucionais por parte dos policiais, motivo pelo qual não se estende aos aposentados. Precedente citado: RMS 23.971-MT, Primeira Turma, DJe 16/4/2008. HC 267.058-SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 4/12/2014, DJe 15/12/2014.
Tal decisão me deixou bastante incomodado, uma vez que recentemente, ao requerer a minha aposentadoria do cargo de delegado de polícia civil do Distrito Federal, tive de fazer uma peregrinação para poder manter o porte da arma adquirida com recursos próprios e muitas vezes utilizada durante as atividades funcionais.
Será que o julgado está juridicamente correto? Será que não existe amparo legal para a manutenção do porte de arma de fogo ao policial aposentado? Será que é socialmente recomendável cassar o porte de arma do policial aposentado, somente pelo fato de estar aposentado? Será que o policial que passou trinta anos exercendo uma profissão perigosa, prendendo todo o tipo de criminoso, ao se aposentar não merece o reconhecimento do Estado no sentido de lhe autorizar a manutenção do porte de arma de fogo?
Pois bem, intrigado com estes questionamentos, vamos às pesquisas.
Primeiramente é de se verificar que o paciente no Habeas Corpus em referencia (HC 267.058-SP), era um policial civil aposentado que foi denunciado por trazer consigo arma de fogo fora do Estado em que exercia a sua profissão, qual seja, Rio Grande do Sul.
A defesa arguiu, entre outros argumentos que não merecem destaque aqui, que "se o porte do policial em atividade tem validade em todo território nacional, por força da norma insculpida no artigo 6º da Lei 10.826/2003, o do aposentado também teria, em razão do disposto na Lei Estadual 7.366/1980, que dispõe sobre o Estatuto dos Servidores da Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul".
O julgado do STJ, negando o porte de arma ao policial civil aposentado, foi baseado no art. 33, do Decreto n. 5.123/2004, que regulamentou o Estatuto do Desarmamento(Lei n. 10.826/03), senão vejamos:
Melhor sorte não socorre a impetrante quanto ao vislumbrado direito de porte de arma por parte do paciente, mesmo estando na inatividade.
Isso porque de acordo com o artigo 33 do Decreto Federal 5.123/2004, que regulamentou o artigo 6º da Lei 10.826/2003, o porte de arma de fogo está condicionado ao efetivo exercício das funções institucionais por parte dos policiais, motivo pelo qual não se estende aos aposentados
Art. 33. O Porte de Arma de Fogo é deferido aos militares das Forças Armadas, aos policiais federais e estaduais e do Distrito Federal, civis e militares, aos Corpos de Bombeiros Militares, bem como aos policiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em razão do desempenho de suas funções institucionais.
§ 1o O Porte de Arma de Fogo das praças das Forças Armadas e dos Policiais e Corpos de Bombeiros Militares é regulado em norma específica, por atos dos Comandantes das Forças Singulares e dos Comandantes-Gerais das Corporações.
§ 2o Os integrantes das polícias civis estaduais e das Forças Auxiliares, quando no exercício de suas funções institucionais ou em trânsito, poderão portar arma de fogo fora da respectiva unidade federativa, desde que expressamente autorizados pela instituição a que pertençam, por prazo determinado, conforme estabelecido em normas próprias.
No julgado, o Ministro lança mão de uma decisão, também do STJ, que em Mandado de Segurança (RMS 23971-MT), negou o porte de arma de fogo aos Delegados de Polícia Civil Aposentados do Estado do Mato Grosso, cuja ementa transcrevemos:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DELEGADOS DE POLÍCIA APOSENTADOS. INEXISTÊNCIA DE DIREITO A PORTE DE ARMAS. VEDAÇÃO EXPRESSA PELO ARTIGO 33 DO DECRETO FEDERAL 5.123/2004, QUE REGULAMENTA O ARTIGO 6º DA LEI 10.826/03,ESTATUTO DO DESARMAMENTO. DIREITO LÍQUIDO E CERTO NÃO-CARACTERIZADO. 1. Trata-se de recurso ordinário em mandado de segurança ajuizado pelo Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de Mato Grosso - Sindepo/MT em impugnação a acórdão que, amparado na Lei 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento), decidiu que os delegados de polícia aposentados não possuem direito ao porte de armas, prerrogativa somente deferida aos profissionais que estejam no exercício de suas funções institucionais. 2. Contudo, a pretensão é de manifesto descabimento, porquanto o artigo 33 do Decreto Federal 5.123/2004, que regulamenta o artigo 6º da Lei 10.826/03, Estatuto do Desarmamento, é expresso ao condicionar o porte de arma de fogo aos policiais civis (dentre outros profissionais) ao efetivo exercício de suas funções institucionais, o que não se verifica em relação aos profissionais policiais que estejam já aposentados. Confira-se o precitado dispositivo: Decreto 5.123/2004 - Art. 33. O Porte de Arma de Fogo é deferido aos militares das Forças Armadas, aos policiais federais e estaduais e do Distrito Federal, civis e militares, aos Corpos de Bombeiros Militares, bem como aos policiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em razão do desempenho de suas funções institucionais. 3. Ao que se constata, portanto, os argumentos recursais não possuem o condão de elidir o acórdão atacado, que deve ser mantido pelos seus próprios e jurídicos fundamentos. 4. Recurso ordinário em mandado de segurança não-provido. (RMS 23.971/MT, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/04/2008, DJe 16/04/2008)
O equívoco do julgado, aliás de ambos os julgados, está justamente na utilização do art. 33 do Decreto n. 5.123/04, que é específica para os os profissionais da ativa (militares das Forças Armadas, aos policiais federais e estaduais e do Distrito Federal, civis e militares, aos Corpos de Bombeiros Militares, bem como aos policiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal).
O direito ao porte de arma de fogo aos policiais aposentados está escancarado no art. 37 do referido decreto, ou seja, é uma norma especial em relação ao art. 33, senão vejamos:
Art. 37. Os integrantes das Forças Armadas e os servidores dos órgãos, instituições e corporações mencionados nos incisos II, V, VI e VII do caput do art.6º da Lei nº 10.826, de 2003, transferidos para a reserva remunerada ou aposentados, para conservarem a autorização de porte de arma de fogo de sua propriedade deverão submeter-se, a cada três anos, aos testes de avaliação da aptidão psicológica a que faz menção o inciso III do caput art. 4º da Lei nº10.826, de 2003. (Redação dada pelo Decreto nº 6.146, de 2007
§ 1o O cumprimento destes requisitos será atestado pelas instituições, órgãos e corporações de vinculação.
Neste contexto, o policial civil aposentado, bem como os demais profissionais previstos nos inc. II, V, VI e VII do art. 6º do Estatuto do desarmamento, paraconservarem a autorização de porte de arma de fogo de sua propriedade devem submeter-se a cada três anos, aos testes de avaliação da aptidão psicológica para portar arma de fogo, nos termos do art. 4º, inc. III do Estatuto do Desarmamento, devendo a Instituição a que pertence, atestar os referidos requisitos.
Neste sentido, e tomando como exemplo, a Policia Civil do Distrito Federal, quando da aposentação de seus policiais, a instituição emite uma identidade funcional fazendo constar a expressão (DELEGADO DE POLICIA CIVIL APOSENTADO) para o aposentando que exercia o cargo de Delegado, o mesmo ocorrendo com os demais cargos (Perito Criminal Aposentado, Perito Médico-Legista Aposentado, Agente de Polícia Aposentado, Escrivão de Polícia Aposentado, Papiloscopista Policial Aposentado e Agente Policial de Custódia Aposentado[3]), identidade funcional esta que deve andar junto com um documento de AUTORIZAÇÃO PARA PORTE DE ARMA DE FOGO, expedido pelo Diretor-Geral da Policia Civil do Distrito Federal, sendo que ambos os documentos (identidade e autorização), trazem estampada em seu corpo, as seguintes redações, respectivamente:
O titular tem livre porte de arma de fogo, mediante a apresentação de autorização específica, expedida pelo Diretor Geral da Polícia Civil do Distrito Federal (Art. 6º, inc. II da Lei Federal nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, c/c Art. 37, caput do Decreto Federal nº 5.123, de 1º de julho de 2004. (cédula de identidade funcional de aposentado)
Cumprido os requisitos do art. 37 caput do Decreto n. 5.123 de 1º de julho de 2004, fica conservada a Autorização de Porte de Arma de Fogo de Propriedade do Titular (autorização para porte de arma de fogo).
Alem disso, entendemos que a decisão do STJ foi equivocada, na medida em que fechou os olhos para o art. 37 do Decreto n. 5.123/2004, pois, mesmo que não houvesse referido dispositivo, seria possível, em uma interpretação analógica in bona partem, conferir, por equiparação, o direito ao porte de arma que é garantido aos membros do Ministério Público da União[4] conforme previsto na Lei Complementar n.75/93, que no seu art. 234 estende aos promotores aposentados as mesmas garantias dos promotores da ativa, quando trata do porte de arma funcional e da prisão especial, ambos previsto no art. 18 do mesmo diploma legal, senão vejamos:
Art. 234. O aposentado conservará as prerrogativas previstas no art. 18, inciso I, alínea e e inciso II, alínea e, bem como carteira de identidade especial, de acordo com o modelo aprovado pelo Procurador-Geral da República e por ele expedida, contendo expressamente tais prerrogativas e o registro da situação de aposentado.
Art. 18. São prerrogativas dos membros do Ministério Público da União:I - institucionais:e) o porte de arma, independentemente de autorização;II - processuais:e) ser recolhido à prisão especial ou à sala especial de Estado-Maior, com direito a privacidade e à disposição do tribunal competente para o julgamento, quando sujeito a prisão antes da decisão final; e a dependência separada no estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena;
Ambos os profissionais, membros do Ministério Público e Policiais, lidam no diaadia com pessoas de alta periculosidade, estes últimos com maior frequencia e maior proximidade, o que, na falta de lei específica (que não é o caso sub examine) justificaria concessão do direito à manutenção do porte de arma de fogo aos policiais aposentados.
Assim, respondendo às indagações iniciais, concluímos com as seguintes respostas:
a) Será que tal decisão está juridicamente correta? Decisão foi equivocada, uma vez que não aplicou a norma especial que, no caso, seria o art. 37, do Decreto n.5123/04 que regulamentou a Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento).
b) Será que existe amparo legal para a manutenção do porte de arma de fogo ao policial aposentado? resposta é afirmativa, pois estampado no referido art. 37, sendo que o preenchimento dos requisitos legais, garante o porte de arma, nos mesmos moldes do porte durante a atividade, inclusive com validade em todo o território nacional, se for o caso.
c) Será que é socialmente recomendável cassar o porte de arma do policial aposentado, somente pelo fato de estar aposentado? resposta é negativa, pois um policial que passou 30 anos atuando contra a criminalidade, deve ter seu porte mantido para se defender, bem como a sua família, devendo o Estado garantir-lhe esta segurança, sendo que a autorização para continuar portando sua arma de fogo seria o mínimo que o Estado poderia oferecer, o que já responde a última indagação.
E, finalizando, dar tratamento diferenciado a seguimento de profissionais que durante a vida funcional atuaram na repressão à criminalidade, apenas por "suposta" falta de Lei em relação a determinado seguimento, impuntando-lhe a prática de crime, é negar as regras básicas do Direito, especialmente aquelas indicadas no art. 4º e 5º da Lei de Introdução do Código Civil[5], que respectivamente afirma que "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito" e "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" sendo certo que a referida decisão se mostra injusta e contrária ao Direito, uma vez que a garantia do porte de arma do policial aposentado está previsto no art. 37, do Decreto n. 5.123/2004.
Referências
[1] Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/ >. Acesso em: Acesso em: 02 mar. 2015.
[2] Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=42210362&am... >. Acesso em: 02 mar. 2015.
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