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terça-feira, 3 de novembro de 2015

Processo socioeducativo administrado pela Fundação Casa é, no mínimo, desastrado

MP NO DEBATE



No início do ano, neste importante espaço, revelamos algumas das múltiplas mazelas do processo socioeducativo administrado pela Fundação Casa[1]. Apontamos, entre outros aspectos, que os serviços prestados pelo Estado de São Paulo, por meio da fundação especificamente destinada a este fim, há muito estão conspurcados por superlotação das unidades, insalubridade das instalações habitacionais e das condições de trabalho dos funcionários, escassez de servidores, rebeliões e tumultos, torturas, elevados índices de reincidência, inexistência de vagas em locais próximos da residência familiar, unidades sob influência de organizações criminosas, e ausência de formação e supervisão adequadas que viabilizem capacitação e aperfeiçoamento dos servidores da entidade.
A repercussão do texto ensejou até mesmo uma resposta do órgão. Argumentou-se, na tentativa de desacreditar aquilo apontado  e até mesmo, eventualmente, do articulista  que os fatos descritos refletiamimpressões pessoais, e que os relatórios decorrentes das visitas realizadas a cada dois meses pelos promotores de São Paulo — inclusive pelo responsável pelo artigo em questão — constatam de maneira inequívoca que os jovens, em síntese, têm acesso a um processo socioeducativo adequado e eficiente.
A impessoalidade e isenção das supostas impressões foi logo comprovada. Em artigo publicado em fevereiro deste ano[2], onze Promotores de Justiça especializados na área da infância e juventude prognosticaram a falência da Fundação Casa, expuseram as mesmas máculas do serviço socioeducativo e demonstraram que as políticas públicas relacionadas aos adolescentes infratores não apresentaram, ao menos no Estado de São Paulo, resultados minimamente satisfatórios.
Os gravames e desastres mencionados no artigo original também foram ratificados por estudo estatístico inédito realizado pelo Ministério Público[3]. Demonstrou-se, para além de qualquer dúvida, que o índice de reincidência, dentre aqueles que cumprem ou cumpriram medida socioeducativa de internação, é superior a 55% (sem computar aqueles que, posteriormente, ingressam no sistema penitenciário); que 61,7% dos atos infracionais são praticados com violência ou grave ameaça à pessoa (sendo que 52,7% do total é equivalente a crime de roubo majorado); que mais de 90% dos internados definitivamente lá estão em razão da prática de atos infracionais graves (roubo, roubo majorado, latrocínio, homicídio doloso qualificado, estupro, e tráfico de drogas); que o número de internações é de 40,9% (muito aquém daquilo que poderia ser aplicado); que 67,5% dos adolescentes internados na Fundação Casa ali permanecem menos de nove meses, e apenas 13,3% mais de um ano; e que das 2.111 internações monitoras pelo estudo, apenas uma perdurou o prazo máximo de três anos; entre outros inúmeros aspectos.
Também demonstramos, nesta mesma coluna, que no estado de São Paulo, o excesso de internações é um mito inverídico[4]; e discorremos sobre o princípio da brevidade da medida de internação[5].
Passados quase onze meses, os graves fatos testemunhados por toda a população paulista afastaram vez por todas eventuais dúvidas sobre a qualidade dos serviços socioeducativos oferecidos. Isto porque, apenas em 2015  e até o momento  foram registradas quase 530 fugas de unidades de internação da Fundação Casa. O montante corresponde a mais de 5% dos adolescentes e jovens submetidos à mencionada medida. Em 2012 ocorreram 417 fugas; em 2013 foram anotadas 454; e em 2014 outras 382 fugas[6].
A título meramente elucidativo da tragédia representada por estes números, no complexo penitenciário de Ribeirão das Neves (MG), instalado em janeiro de 2013 e que abriga aproximadamente 3.040 pessoas, há notícia, nestes quase três anos de funcionamento, de apenas três fugas  a primeira ocorreu apenas quase um ano após sua inauguração[7]. O gasto mensal com cada preso é de aproximadamente R$ 2,8 mil. No mesmo período, a Fundação Casa, que atualmente acolhe menos de 10 mil adolescentes e conta com investimento médio aproximado de R$ 11,3 mil ao mês por internado, registra 1.366 fugas.
E não se argumente, com isso, que menores de 18 anos devem ser submetidos a regime equivalente ao dispensado aos penalmente imputáveis — ao contrário, devem contar com processo socioeducativo qualificado e que respeite seus direitos, sobretudo sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Mas, certamente, da perspectiva disciplinar, manter encarcerados milhares de adultos condenados pela prática de crimes é tarefa mais árdua do que custodiar adolescentes.
Não bastasse, os episódios de fugas não vêm isolados. Ordinariamente são acompanhados de rebeliões, tumultos e agressões. Como nem sempre estes eventos resultam em evasões, forçoso concluir que o número destes incidentes é ainda superior ao de escapadas.
Fica claro, consideradas todas estas circunstâncias, que as fugas e rebeliões não são a origem do problema, mas a consequência das graves violações de direitos humanos anteriormente reveladas. Como salientado no artigo original, reafirmado por 11 promotores de Justiça, e confirmado pelo idealizador e criador do Estatuto da Criança e do Adolescente, o processo socioeducativo administrado pela Fundação Casa é, no mínimo, desastrado[8].
Trata-se de uma tragédia, previsível, prevista e anunciada pelo Ministério Público desde a ação civil pública proposta em agosto de 2014[9], e que almeja resolver o problema da superlotação, das unidades de internação e semiliberdade em desacordo com a lei, e as infrações a direitos fundamentais rotineiramente identificadas  dos adolescentes, seus familiares, servidores da fundação estatal e de toda a sociedade.
As soluções, como há muito apontado, exigem a reavaliação das políticas públicas relacionadas aos jovens e adolescentes em conflito com a lei, e a consequente gestão da Fundação Casa, braço do estado de São Paulo responsável pelos autores dos mais graves atos infracionais. Dentre as medidas a serem adotadas será preciso terminar, vez por todas, com o problema da superlotação, e garantir um processo socioeducativo satisfatório pelo tempo necessário à reeducação dos adolescentes, que apresente à sociedade resultados eficientes e proporcionais ao expressivo investimento feito pelos cofres públicos, com estrito respeito aos direitos destes jovens e à legislação vigente.
 
[9] Autos número 1073999-72.2014.8.26.0100, em curso na Vara da Infância e da Juventude do Foro Central da Capital.
 é promotor de Justiça, membro do Movimento Ministério Público Democrático (MPD) e coordenador da coluna MP no Debate

Revista Consultor Jurídico

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