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terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

A aplicação do rito ordinário previsto no Código de Processo Penal aos crimes definidos na Lei nº 11.343/06 à luz da lei, doutrina e jurisprudência



* Bernardo Dall'Agnol Sá 


Resumo: Este artigo possui como objetivo analisar a repercussão do rito a ser seguido nas ações penais que versem sobre o crime de tráfico de drogas, em decorrência do conflito aparente entre a Lei n.º 11.343/06 e o Código de Processo Penal-CPP, sobretudo quando este prevê a aplicação de alguns procedimentos descritos em seus artigos a todos os penais de primeiro grau, inclusive os por ele não regulados. Considerando-se as orientações doutrinárias e jurisprudenciais, os princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, segurança jurídica e devido processo legal, e a Convenção Americana dos Direitos Humanos, concluiu-se pela aplicação do procedimento ordinário, tendo em vista ser o que melhor se amolda aos preceitos de ordem pública atrelados ao contraditório e ampla defesa. Na elaboração deste artigo, utiliza-se o método indutivo.

Palavras chave: Tráfico. Notificação. Rito. Procedimento Ordinário.


Introdução 

Com escopo de aprofundar os estudos sobre os efeitos das inovações trazidas pela Lei n.º 11.719/08 nos procedimentos a serem observados para o julgamento de ações penais, em especial as envolvem atividades delitivas com previsão legal, material e formal, específica, o artigo em questão trata do aparente conflito procedimental existente entre a Lei de Drogas e o Código de Processo Penal.
Isso porque a legislação específica prevê, a exemplo, etapa de notificação pré-processual inexistente no rito ordinário da norma geral, que por sua vez tem sua aplicabilidade no procedimento específico possibilitada, em tese, pelo artigo 394, §4º, do Código de Processo Penal.
Sendo assim fez-se manifesta a importância de o operador do direito avaliar cautelosamente as razões que acompanham e sustentam a adoção de qualquer desses procedimentos para o trâmite da ação penal, notadamente diante da sua interferência direta no exercício da defesa por parte do suposto autor da atividade penal incriminada.
Registra-se que o intuito de escrever sobre o presente tema é exteriorizar a experiência prática do subscritor expondo os estudos realizados sobre a matéria como, inclusive, forma a possibilitar o exaurimento ou a minimização de dúvidas decorrentes da temática envolvendo a adoção de um dos dois procedimentos, em tese, colocados à disposição dos aplicadores do direito pelo legislador, bem como as respectivas consequências.
Impõe-se, inarredavelmente, a digressão sobre diversos preceitos de ordem pública, em especial o princípio do contraditório e ampla defesa, assim como a
apresentação de alguns entendimentos firmados sobre o assunto, seja pela doutrina ou pela jurisprudência.
Registre-se que, no caso em estudo, não prevalece o princípio da especialidade, porque se considerado em conflito com os princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, estes é que devem se sobrepor àquele.
Por derradeiro, anota-se que o assunto não é ermo de controvérsia, ao revés, eriçado de discussões, sendo que os respectivos fundamentos basilares mereceram uma abordagem delineada e providencialmente aprofundada na forma como segue.

1 Breves apontamentos acerca do rito procedimental adotado pela Lei n.º 11.343/06 

Ao ponderarmos o parâmetro norteador do rito especial definido na própria Lei n.º 11.343/2006, tem-se que oferecida a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado para apresentar defesa prévia, por escrito, no prazo de 10 dias, podendo arguir toda e qualquer matéria relevante à defesa, bem como arrolar, no máximo, 5 testemunhas, a teor do art. 55, caput, e § 1º, da legislação referida.
Oferecida a defesa prévia por defensor constituído ou nomeado, neste caso quando não oferecida no prazo legal após a notificação (art. 55, § 3º, da Lei de Drogas), o juiz, não verificando qualquer causa de rejeição, deverá receber a denúncia e designar dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, ordenando a citação pessoal do acusado, a intimação do Ministério Público, do assistente - se for o caso - e requisitará os laudos periciais, conforme dispõe o art. 56, caput, da Lei n.º 11.343/06.
Da análise dos atos procedimentais acima perfilhados, tem-se que o legislador determinou, a partir da denúncia ofertada pelo órgão acusatório, a instauração obrigatória pelo juiz de um contraditório ao notificar o denunciado para oferecer defesa prévia, antecedendo o recebimento da denúncia, como forma de garantir maior efetividade às garantias constitucionais e evitar a tramitação de processos que não se mostram aptos a um fim profícuo à sociedade.
No entanto, com as alterações levadas a efeito no ordenamento jurídico pela Lei n.º 11.719/2008 o Código de Processo Penal passou a estabelecer no art. 394, § 4º, que "as disposições dos arts. 395 a 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código".
Tal regramento é diverso do previsto na Lei de Drogas, uma vez que segundo a nova sistemática do CPP o juiz recebe a denúncia e cita o acusado para apresentação de resposta à acusação, por escrito, no prazo de 10 dias. Após, não convencido dos argumentos apresentados, recebe a denúncia, entendendo que não estão presentes os requisitos da absolvição sumária. Por outro lado, pela lei de tóxicos, apresentada a denúncia, o juiz notifica o acusado para oferecimento de resposta e só depois, se não vislumbrar hipótese de absolvição sumária, recebe a denúncia e, ato contínuo, determina a citação do réu e designa audiência.
Assim, pela sistemática do CPP, oferecida a resposta, o juiz deve analisar a incidência ou não de alguma das causas do art. 397 do CPP, que prevê a absolvição sumária do acusado e, somente depois, transcorrido todo o juízo de admissibilidade da peça acusatória, designar dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente (art. 399 do Código de Processo Penal).
Todavia, a desigualdade de procedimentos entre a Lei de Drogas e o Código de Processo Penal acabou gerando não só um conflito aparente de normas, como também diferentes entendimentos doutrinários a respeito do assunto, os quais a seguir serão debatidos de forma detalhada.

3 Do conflito aparente de normas entre a Lei n.º 11.343/06 e o Código de Processo Penal 

O doutrinador Fernando da Costa Tourinho Filho sustenta que todos os procedimentos relativos a crimes previsto em lei especial, dentre estes o da Lei n.º 11.343/06, sujeitam-se às regras expostas nos arts. 394 a 398 do CPP. [01]
Nesta esteira, transcreve-se a aludida lição:
Regra importante é a do §4º do art. 394: a todos os procedimentos penais de primeiro grau aplicam-se as regras atinentes a recebimento e rejeição de denúncia, "resposta do réu" e, inclusive, o julgamento antecipado de que trata o art. 397. Não importa saber se o procedimento é sumário, sumaríssimo, se é crime cujo procedimento especial esteja, ou não, previsto neste Código. Os procedimentos relativos a crimes de abuso de autoridade, contra a economia popular, entorpecentes, falimentares, lavagem ou ocultação de bens, malgrado previstos em leis especiais, sujeitam-se Às regras expostas nos arts. 395 a 398 do CPP. Exceto o art. 398, a despeito de ter sido
indicado no §4º do art. 394... É que ele "já nasceu morto". Antes de a Lei n. 11.719/2008 entrar em vigor, o art. 398, a que ela se refere expressamente no corpo do §4º do art. 394, estava revogado... o que demonstra a maneira açodada como se fazem nossas leis.
Por outro lado, para Guilherme de Sousa Nucci, se a legislação especial prevê um procedimento prévio de defesa do denunciado, antes do recebimento da denúncia ou queixa, não tem cabimento, após ter sido a peça acusatória recebida, reiniciar o procedimento de citação e oitiva das razões do réu para, se for o caso, absolvê-lo sumariamente. [02]
A título ilustrativo, transcreve-se o entendimento do indigitado doutrinador:
12. Conflito aparente de normas: o disposto no art. 395 do CPP pode ser aplicado a todas as situações de recebimento da peça acusatória, pois cuida das condições da ação penal. Entretanto, ainda assim, é preciso observar se, em lei especial, não existe mais alguma situação peculiar, dando ensejo a eventual rejeição da denúncia ou queixa. Quanto aos arts. 396 (recebimento da denúncia ou queixa e citação do réu), 396-A (resposta do acusado) e 397 (absolvição sumária) somente cabe a sua aplicação se a lei especial não contiver procedimento diverso e incompatível com o preceituado nesses três artigos. Afinal, sabe-se que lei especial afasta a aplicação de lei geral. Portanto, se a legislação especial prevê um procedimento prévio de defesa do denunciado, antes do recebimento da denúncia ou queixa, não nos parece tenha cabimento, após ter sido a peça acusatória recebida, reiniciar o procedimento de citação e oitiva das razões do réu para, se for o caso, absolvê-lo sumariamente. Ora, se as prova fossem tão evidentes assim, já não teria o magistrado recebido a denúncia ou a queixa, pois houve defesa preliminar, com exibição de provas.
Na visão de Edilson Mougenot Bonfim o intérprete da norma jurídica deve proceder uma análise sistemática do disposto no art. 394, §2º, do Código de Processo Penal, o qual prevê que se aplicam a todos os processos o procedimento comum, salvo disposições em contrário do próprio estatuto processual ou lei especial, concluindo que são aplicáveis à generalidade dos procedimentos de primeira instância, desde que não conflitem com as regras por eles estabelecidas [03].
Segue a profícua lição:
Em razão do contido no §4º do art. 394 - "As disposições dos arts. 395 e 398 deste Código aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados neste Código" - há que se fazer uma interpretação sistemática com o §2º do mesmo dispositivo legal,
donde se pode concluir que os arts. 395 a 398 são aplicáveis à generalidade dos procedimentos de primeira instância, desde que não conflitem com as regras por eles estabelecidas.
Com efeito, as considerações ora entabuladas auferem alta relevância na medida de se determinar o rito adotado pela Lei n.º 11.343/06, sobretudo em situação hipotética na qual o denunciado tenha sido regularmente notificado, porém, deixado de oferecer a defesa prévia, o que gera a necessidade de observação do disposto no art. 55, § 3º, da Lei de Drogas, dispositivo este que determina a nomeação de defensor para apresentação da peça técnica defensiva.
Desta feita, surge a seguinte indagação: Ao ser devidamente providenciada a regular notificação do denunciado, tendo este deixado de apresentar sua defesa prévia, de forma livre e consciente, mesmo após a nomeação de defensor para tanto, deve o magistrado, após o recebimento da denúncia, determinar a sua citação ou considerá-la praticada na oportunidade da notificação e, decretando a sua revelia (art. 367, CP), de imediato, designar dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, intimando-o?
Pela análise do comando inserto no art. 56, caput, da Lei n.º 11.343/06, a conclusão aparenta certa lógica no sentido de ser determinada a citação do réu, porém, dos ensinamentos acima transcritos verificarmos que, em casos concretos, a situação pode revelar a incidência de percalços desnecessários à instrução processual e, especialmente, à satisfação dos anseios da sociedade.

4 Da nova interpretação do termo "notificação" inserido no art. 55, caput, da Lei n.º 11.343/06 

Com efeito, a repercussão prática e inafastável a ser aplicada nos casos concretos em que se tenha procedido à notificação do denunciado nos termos do art. 55, caput, da Lei n.º 11.343/06, é a designação de dia e horário para audiência de instrução e julgamento e não a citação do réu.
Caso o denunciado deixe de apresentar sua defesa prévia, a consequência lógica é a satisfação do comando inserto no art. 55, §3º, da Lei n.º 11.343/06, que, por sua vez, coaduna-se com disposto no art. 396-A, §2º, do Código de Processo Penal, ou seja, será nomeado defensor para oferecer a resposta à acusação, concedendo-lhe vista dos autos pelo prazo de 10 (dez) dias.
Seguindo-se restritamente o rito previsto na lei especial, se o réu, notificado, deixar de apresentar sua peça defensiva técnica, mesmo após a nomeação de defensor para tanto, deverá ser determinada a sua citação pessoal e intimação para a audiência de instrução e julgamento. Frustradas estas, diante da omissão da legislação, deve-se dar seguimento nos moldes previstos nos artigos 361 (citação por edital) e 366 (suspensão do processo e do curso do prazo prescricional) do CPP.
Está clarividente que o termo "citação" previsto para resposta escrita no art. 396, caput, do CPP, corresponde à "notificação" para resposta escrita prevista no art. 55 da Lei de Drogas, tanto o é que inclusive os seus prazos são idênticos (10 dias), ou seja, a semelhança de matérias a serem arguidas e o prazo processual para apresentação, impostas pelo legislador às peças processuais de nome distinto, ao que tudo indica, não foi por acaso. Tem-se, pois, mera distinção de nomenclatura para referência a um mesmo instituto.
Dessarte, adotando-se esse entendimento, tem-se que a opção pelo rito ordinário, previsto no Código de Processo Penal, demonstra-se mais razoável. Isso porque se o réu, citado (interpretação extensiva da expressão "notificação"), deixar de apresentar sua peça defensiva técnica, mesmo após a nomeação de defensor para tanto, deverá ser decretada a sua revelia e, por conseguinte, determinada a sua intimação, e não a citação, para comparecimento em audiência de instrução e julgamento, a qual também seguirá o rito ordinário, e, em razão sito, seu depoimento será colhido por último, para que tome contato com a prova até então produzida, de modo a exercer na sua forma plena os preceitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Em recente publicação o autor Renato Marcão, em sentido contrário, destacou [04]:
Como se vê, o §4º do art. 394 do CPP não pode ser interpretado isoladamente, mas sim em consideração com os demais dispositivos do mesmo artigo, levendo em conta, ainda, o disposto no art. 48, caput, da Lei de Drogas, resultando claro que as regras gerais só têm aplicação de forma subsidiária, residual, ao procedimento da Lei n. 11.343/2006, que dispõe de forma contrária quando trata da notificação do denunciado para apresentação de resposta escrita, do recebimento da denúncia, citação do réu etc.
Mais adiante prossegue sublinhando que [05]:
Não há dúvida, portanto, que o procedimento regulado nos arts. 55 a 58 da Lei n. 11.343/2006, atual Lei de Drogas, permanece íntegro, sem qualquer modificação decorrente do disposto nos arts. 396 e 397 do CPP, ao contrário do que algumas vezes se tem proclamado em razão do disposto no §4º do art. 394 do mesmo estatuto.
O sobredito doutrinador, no entanto, salienta que o que é causa de absolvição sumária no art. 397 do CPP é causa de rejeição da peça acusatória no âmbito da Lei de Drogas, reforçando a tese de que não se trata de imposição do disposto no § 4º do art. 394, mas sim porque o juiz jamais, em tempo algum, deve receber formalmente a acusação inicial e instaurar processo criminal quando verificar: I - a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II - a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III - que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou, IV - extinta a punibilidade do agente. [06]
Portanto, a Lei de Drogas ao definir expressamente que é necessária a citação do acusado para comparecer na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada após o recebimento da denúncia, apresenta impropriedade, pois a prévia notificação faz às vezes da citação, ao passo que perfectibiliza a relação processual, devendo, via de consequência, considerar-se como tal, e a expressão "citação", prevista na legislação específica, como o ato de "intimação" do acusado para audiência de instrução e julgamento.

5 Os princípios constitucionais do contraditório, ampla defesa, segurança jurídica e devido processo legal, à luz da Convenção Americana dos Direitos Humanos e da jurisprudência pátria a respeito do assunto. 

A adoção de entendimento contrário ao que vem sendo esposado neste trabalho não revela razoabilidade sob o argumento de que tal interpretação poderá violar a segurança jurídica e o devido processo legal, porquanto não há, em absoluto, a aplicação da lei processual penal em malefício do réu.
Vale sublinhar que as normas processuais têm aplicação imediata, pouco importando se o fato que deu origem ao processo é anterior à sua entrada em vigor e os atos processuais realizados sob a égide da lei anterior são considerados fatos válidos e não atingidos pela nova lei processual.
De qualquer forma, o rito ordinário é notadamente reconhecido como o mais adequado ao exercício do contraditório e da ampla defesa, não havendo que se reputar a incidência de violação ao princípio da segurança jurídica.
O art. 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 garante expressamente a inviolabilidade à segurança jurídica, tratando-se, a toda
evidência, de garantia fundamental eminentemente vinculada aos regimes de natureza democrática, os quais costumam consagrar a proteção da confiança e a segurança das relações jurídica constituídas.
Nesse sentido, elucida Canotilho [07]:
O homem necessitada de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsalvemente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiançacomo elementos constitutivos do Estado de direito.
O interesse precípuo do princípio positivado da segurança jurídica visa nitidamente preservar e efetivar os valores consignados no Estado Democrático de Direito, revelando-se como instrumento de garantia da efetividade dos direitos fundamentais, dentre os quais se encontram o contraditório e a ampla defesa, como se vê do art. 5º, inciso LV, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, entrou em vigor internacional em 18 de julho de 1978, na forma do segundo parágrafo de seu art. 74, sendo posteriormente promulgada no Brasil através do Decreto n.º 678, de 6 de novembro de 1992.
Nela há a seguinte previsão:
Artigo 8º - Garantias judiciais
1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal;
b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada;
c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; (grifou-se)
O princípio do devido processo legal se encontra estreitamente vinculado ao princípio do contraditório e da ampla defesa, não obstante sua previsão esteja intimamente atrelada à garantia de adoção de procedimento tipificado em lei, uma vez que a atenuação da regra prevista na Lei n.º 11.343/06 vem de encontra ao interesse do próprio réu, pois a marcha processual definida no Código de Processo Penal confere a celeridade adequada - e necessária - à absolvição sumária.
A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do HC 990.08.188568-9, relatado pelo Desembargador Figueiredo Gonçalves em 16 de março de 2009, manifestou-se no seguinte sentido[08]:
Lei atualizando o Código de Processo Penal podia revogar as normas de procedimento da Lei Antidrogas e o fez, expressamente, ao dispor sobre esse aparente conflito no §4º do renovado art. 394 do CPP a qualquer procedimento previsto em lei outra, fora do estatuto do processo, anda no caso aqui tratado, da Lei Antidrogas. Desse modo, não há nulidade a ser reconhecida, no curso da ação penal.
O Desembargador Ivan Marques, da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos autos do HC n.º 900.08.189286-3 [09], destacou que não há como imaginar qual seria o prejuízo decorrente da denúncia ter sido recebida antes da defesa preliminar se, com a adoção do rito comum (CPP) o juízo examinará a resposta à acusação e poderá até mesmo absolver sumariamente o acusado.
O professor Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado a respeito deste entrave destacou [10]:
O que se depreende das decisões do TJ-SP é o seguinte: de acordo com o rito da Lei Antidrogas, se não houver a rejeição da denúncia, o acusado viverá todas as fases do processo penal, para, apenas ao final, se cabível, ser beneficiado pela absolvição sumária (o constrangimento do processo em troca da absolvição sumária: uma lógica ilógica!). Uma realidade completamente alterada pela Lei n.º. 11.719/08: o réu, agora, é citado para a apresentação da sua defesa preliminar e a decisão proferida nesse momento já pode ser a de absolvição sumária.
Laborou com acerto o autor na lição acima transcrita, porquanto com a adoção do rito ordinário previsto no Código de Processo Penal confere a possibilidade de absolvição sumária assim que o réu apresentar sua resposta à acusação.
O Superior Tribunal de Justiça, aparentemente, vêm se rendendo à ideia de que, em processos de natureza criminal cujo crime em apuração se refere ao tráfico ilícito de drogas em conjunto com conduta delitual diversa abarcada procedimento de natureza ordinária, deverá ser observada esta marcha processual, a qual se coaduna de maneira insofismável ao princípio da ampla defesa.
Neste sentido, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC n.º 114997/SP – 2008/0197279-4, relatado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura, em 16 de junho de 2011 (publicado em 28/06/2011), destacou [11]:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO. INOBSERVÂNCIA DO RITO PROCESSUAL ESTABELECIDO PELA LEI N.º 10.409/2002. CONEXÃO COM DELITOS PREVISTOS NA LEI N.º 10.826/03. NULIDADE PROCESSUAL. NÃO OCORRÊNCIA.
1. Verificando-se a existência de conexão ou continência entre o crime de tráfico ilícito de entorpecentes, que possui rito peculiar, e outras infrações penais, o procedimento a ser adotado será o ordinário, ressalvados os da competência absoluta do júri e das jurisdições especiais.
2. In casu, são imputados crime da Lei de Drogas e crimes do Estatuto do Desarmamento.
3. Ordem denegada.
A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC n.º 116374/DF – 2008/0211423-6, relatado pelo Ministro Arnaldo Esteves Lima, em 15 de dezembro de 2009 (publicado em 01/02/2010), consignou [12]:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E LATROCÍNIO, NA FORMA TENTADA. NULIDADE POR INOBSERVÂNCIA DO RITO PREVISTO NA LEI 11.343/06. NÃO-OCORRÊNCIA. CRIMES CONEXOS. ADOÇÃO DO RITO ORDINÁRIO. MAIOR AMPLITUDE DE DEFESA. INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS. RENOVAÇÃO. POSSIBILIDADE. NÃO-OCORRÊNCIA. ORDEM DENEGADA.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, reiteradamente, tem decidido que, nas hipóteses de conexão dos crimes previstos na Lei 11.343/06 com outros cujo rito previsto é o ordinário, este deve prevalecer, porquanto, sob perspectiva global, ele é o que permite o melhor exercício da ampla defesa. 2. A interceptação telefônica deve perdurar pelo tempo necessário à completa investigação dos fatos delituosos, devendo o seu prazo de duração ser avaliado motivadamente pelo Juízo sentenciante, considerando os relatórios apresentados pela polícia.
Precedentes do STJ e STF. 3. No processo penal pátrio, no cenário das nulidades, vigora o princípio geral de que somente se proclama a nulidade de um ato processual quando há a efetiva demonstração de prejuízo, nos termos do que dispõe o art. 563 do Código de Processo Penal e o enunciado sumular 523 do Supremo Tribunal Federal. 4. Ordem denegada.
Convém ressaltar que há entendimento no Tribunal Regional Federal da 4ª Região emanado no sentido de que a instrução processual, em situação análoga, deverá seguir as normas da Lei n.º 11.343/06, oportunizando-se, no entanto, a apresentação da resposta à acusação prevista nos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal, com a finalidade de ampliar a defesa do réu e evitar a posterior alegação de nulidades.
A 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, nos autos do HC n.º 0003260-87.2010.404.0000, de relatoria do Desembargador Paul Afondo Brum Vaz, destacou [13]:
[...] A defesa alega nulidade na condução do processo originário, porquanto não estariam sendo observadas as alterações introduzidas pela Lei n.º 11.719/2008, mais benéficas ao acusado. Sem razão. Ao que se denota das informações prestadas, não há qualquer prejuízo ao acusado na condução da ação penal. Ao contrário, conforme esclareceu a magistrada singular, a instrução do feito seguirá as normas contidas na Lei n.º 11.343/05, oportunizando-se, todavia, a apresentação de resposta à acusação prevista nos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal, a fim de ampliar a defesa dos réus e evitar alegação posterior de nulidades. Assim, está sendo aproveitado o que é mais favorável de cada uma das leis, com a finalidade de ampliar as oportunidades de defesa. De fato, conforme ressaltou a juíza de primeiro grau: "... O rito adotado, portanto, não causa prejuízo à defesa do paciente. Ao contrário, ao possibilitar que os réus apresentem a defesa prévia antes do exame da inicial acusatória pelo juiz e, após o recebimento desta, a resposta à acusação, amplia o leque defensivo, permitindo que o acusado pleiteie a rejeição da denúncia (defesa prévia do art. 55 da Lei n.º 11.343/06) e, caso não logre êxisto, busque a absolvição sumária por meio da resposta à acusação (art. 396 do Código de Processo Penal). [...] (D.E. 01/03/2010)
Certamente existem demais argumentos resistentes e favoráveis à aplicação do rito ordinário previsto no Código de Processo Penal às infrações penais com tipicidade legal reportada à Lei n.º 11.343/06, não sendo aqui abordados em sua integralidade porquanto necessário se faz manter-se a síntese expositiva outrora delineada.

6 Considerações finais 

Finaliza-se este despretensioso estudo enumerando-se as derradeiras conclusões:
1) Ao que se pode concluir, denota-se que o rito ordinário, previsto no Código de Processo Penal, é o que melhor se amolda à observância dos mandamentos constitucionais do contraditório e da ampla defesa, notadamente porque oferece a possibilidade de absolvição sumária do réu de forma mais célere, além de proporcionar a possibilidade de a colheita da prova ser precedente à oitiva do réu, o que sobremaneira confere-lhe o melhor exercício de sua defesa, razão pela qual esse rito deverá ser aplicado em detrimento do previsto na legislação especifica.
2) Deve-se observar que para o pleno exercício do contraditório deverá o magistrado determinar que se faça constar a expressão "citação" no mandado direcionado ao denunciado para oferecimento de resposta à acusação, com as respectivas menções aos dispositivos correspondentes do CPP, evitando-se assim futuras nulidades processuais.
3) Por todo o exposto, espera-se que o entendimento jurisprudencial se firme no mesmo sentido defendido no presente estudo, porquanto, data venia, afigura-se em perfeita consonância com os princípios basilares da Constituição da República Federativa do Brasil, em destaque, os do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.

REFERÊNCIAS 

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. rev., atual. De acordo com as Lei n.º 11.900, 12.016 e 12.037, de 2009. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 523/524.
Brasil. Superior Tribunal de Justiça.Habeas Corpus n.º 114997/SP - 2008/0197279-4. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
Brasil. Superior Tribunal de Justiça.Habeas Corpus n.º 116374/DF - 2008/0211423-6. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.Habeas Corpus n.º 990.08.188568-9. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.Habeas Corpus n.º 900.08.189286-3. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
Brasil. Tribunal Regional Federal da 4ª Região.Habeas Corpus n.º 0003260-87.2010.404.0000. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª. ed. Coimbra, Almedina: 1997, p. 252.
FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Código de processo penal comentado. v.2. 13ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 23.
GOMES, Luiz Flávio. Lei n.º 11.343/06 versus Lei n.º 11.719/08. Qual procedimento deve prevalecer? . Jornal Carta Forense. 1º/06/2009. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=4227. Acesso em 24 de agosto de 2011.
MARCÃO, Renato. Tóxicos. Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de drogas anotada e interpretada. 8ª ed. São Paulo, Saraiva: 2011, p. 418-419.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8ª. ed. rev., atual. e ampl. 3ª tir. São Paulo: RT, 2008. p. 702.
Notas
1. FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Código de processo penal comentado. v.2. 13ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 23.
2. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8ª. ed. rev., atual. e ampl. 3ª tir. São Paulo: RT, 2008. p. 702.
3. BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. rev., atual. De acordo com as Lei n. 11.900, 12.016 e 12.037, de 2009. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 523-524.
4. MARCÃO, Renato. Tóxicos. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de drogas anotada e interpretada. 8A ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 422.
5. MARCÃO, Renato. Tóxicos. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de drogas anotada e interpretada. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 422.
6. MARCÃO, Renato. Tóxicos. Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 – Lei de drogas anotada e interpretada. 8A ed. São Paulo, Saraiva: 2011, p. 418-419.
7. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª. ed. Coimbra, Almedina: 1997, p.252.
8. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.Habeas Corpus n.º 990.08.188568-9. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
 
 
9. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.Habeas Corpus n.º 900.08.189286-3. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
10. GOMES, Luiz Flávio. Lei nº. 11.343/06 versus Lei n.º. 11.719/08. Qual procedimento deve prevalecer? . Jornal Carta Forense. 1º/06/2009. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=4227. Acesso em 24 de agosto de 2011.
11. Brasil. Superior Tribunal de Justiça.Habeas Corpus n.º 114997/SP - 2008/0197279-4. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
12. Brasil. Superior Tribunal de Justiça.Habeas Corpus n.º 116374/DF - 2008/0211423-6. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.
13. Brasil. Tribunal Regional Federal da 4ª Região.Habeas Corpus n.º 0003260-87.2010.404.0000. Disponível em . Acesso em 23 de agosto de 2011.

* Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Pós-graduado, em nível de especialização, com aptidão para o mercado de trabalho e ao exercício do magistério superior, em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduando, em nível de especialização, com aptidão para o mercado de trabalho, em Jurisdição Federal pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado de Santa Catarina (ESMAFESC), em convênio com a Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Assistente de Promotoria de Justiça do Ministério Público do Estado de Santa Catarina (MPSC), com lotação na 9ª Promotoria de Justiça da Comarca de São José/SC. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil, Direito Processual Civil, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direitos Difusos e Coletivos.

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