publicado em 5 de junho de 2013 às 14:21
por Conceição Lemes
O preconceito, o oportunismo, o conservadorismo e a ignorância venceram mais uma vez a saúde pública e violaram direitos.
O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde lançou no final de semana nas redes sociais uma campanha destinada às profissionais do sexo. Com o tema “Sem vergonha de usar camisinha”, o objetivo é reduzir o estigma da prostituição da associada à infecção pelo HIV e aids.
O material da ação – banners e vídeos – foi feito a partir de uma Oficina de Comunicação em Saúde para Profissionais do Sexo, realizada em João Pessoa (PB), de 11 a14 de março.
As peças da campanha trazem mensagens contra o preconceito, sobre a necessidade de prevenção da infecção pelo HIV e demais doenças sexualmente transmissíveis e a vontade de as prostitutas serem respeitadas. Médicos e especialistas na prevenção de DST-Aids elogiaram o material.
Porém, nessa terça-feira 4, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, cometeu dois desatinos, após protestos e pressões da bancada evangélica.
Primeiro, mandou tirar do ar, inclusive da página do Departamento de DST/Aids, uma das peças da campanha que tinha os seguintes dizeres: “sou feliz sendo prostituta”. A peça trazia o logotipo do ministério e havia sido divulgada no twitter. As chamadas com destaque na página do Departamento também sumiram.
Segundo, no final da tarde, demitiu sumariamente o diretor do Departamento de DST/Aids do Ministério, o dr. Dirceu Greco, infectologista de renome mundial e professor titular da Faculdade de Medicina da UFMG. É um dos nomes históricos da luta contra a aids e um dos maiores especialistas em bioética e ética em pesquisas no Brasil.
Em nota, a Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Saúde justificou:
As peças expostas no site do Departamento de DST/Aids não passaram por análise e aprovação da Assessoria de Comunicação Social, como ocorre com todas as campanhas do Ministério da Saúde, de todos os departamentos. Logo, o descumprimento das normas previamente estabelecidas pelo Ministério da Saúde justificou a retirada das peças do site do departamento e de seus perfis nas redes sociais e a apuração das responsabilidades.
Em entrevistas à mídia, Padilha disse:
Enquanto eu for ministro, não acho que essa tem que ser uma mensagem passada pelo ministério. Nós teremos mensagens restritas à orientação sobre a prevenção contra as doenças sexualmente transmissíveis. O papel do Ministério da Saúde é estimular a prevenção das DSTs.
Não existirá nenhum material assinado pelo Ministério da Saúde que não seja material restrito às orientações de como se prevenir das DSTs.
“DESDE O ALCENI GUERRA, NÃO ASSISTIMOS ALGO SEMELHANTE”“Quando soube da campanha, fiquei animado. Pensei:‘Tomara que o ministro Padilha tenha voltado atrás nas ações de prevenção, pensando nas pessoas vulneráveis às infecções por DSTs e aids’”, afirma o pesquisador, ativista e professor Mario Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda de São Paulo. “Não demorou 24 horas para ver que o Padilha continua o mesmo.”
“É retrocesso histórico”, denuncia Scheffer. “Desde a época do Alceni Guerra, ministro da Saúde do então presidente Collor, não assistimos algo semelhante.”
Alceni foi ministro de 15 de março de 1990 a 23 de janeiro de 1992. Na época, fez uma campanha baseada no terrorismo e no preconceito, tipo “a aids vai te pegar”, “a aids vai te matar”, que afastava as pessoas. Consequentemente, elas não se sentiam vulneráveis, não se protegiam e a doença disseminou.
A ação desastrada de Alceni foi há mais de 20 anos, quando existia apenas o AZT. Portanto, na fase pré-coquetel antirretroviral.
“O Brasil conseguiu uma boa resposta à aids graças à combinação de ações afirmativas – como defesa de direitos civis, combate ao preconceito, aumento da autoestima das populações afetadas — com ações de saúde pública — distribuição de preservativos, acesso ao teste de HIV e tratamento com remédios antirretrovirais”, alerta Scheffer. “É o que chamamos de prevenção combinada. Na prevenção em aids, não podemos separar direitos humanos de saúde pública. Agora, uma dessas pernas foi quebrada. A epidemia se concentra em algumas populações e o Padilha ficará para a história como o ministro que jogou isso para baixo do tapete, que colocou o falso moralismo acima das evidências científicas. A saúde pública está pagando um preço muito alto pela ambição pessoal do Ministro em ser candidato a governador.”
“VIOLAÇÃO DE DIREITOS GERAM MAIS DOENÇAS;MORTES E INFECÇÕES DESNECESSÁRIAS VIRÃO”
Em pouco mais de um ano, é a terceira vez que Padilha censura material destinado à prevenção de DST/Aids.
A primeira, por determinação do governo, recolheu um kit dirigido a adolescentes. O material abordava temas como homossexualidade, drogas e gravidez. O ministro da Saúde, assim como fez nessa terça-feira, justificou na época que a distribuição tinha sido feita à revelia dele.
A segunda foi no carnaval de 2012. Proibiu a exibição de um vídeo com um casal de jovens gays, produzido para a exibição em TV aberta. Alegou depois que se destinava a circulação restrita.
“É totalmente inaceitável a proibição do Padilha”, diz, chocada, a pesquisadora e professora Vera Paiva, do Núcleo de Pesquisas em Aids da Faculdade de Psicologia da USP. “Fez isso em nome de quê? Valores pessoais? As prostitutas não têm direito à saúde e de serem felizes? Criminalizar como bandidos sem direitos os que não concordam com o seu projeto de felicidade? A decisão dele é injusta. É censura de ações baseadas em rigorosa evidência técnico-científica. ”
“É violação de direitos pelo Estado, inclusive do direito à saúde”, avisa a pesquisadora da USP. “É negligência na promoção e proteção do direito à não discriminação.”
“Padilha não quer prostitutas felizes? Quer o quê? Prostitutas tristes?”, questionou ontem, em Brasília,Elizabeth Franco, da USP, numa reunião de pesquisadores. “Nós queremos putas alegres! Putas tristes só aceitas no título da obra de Gabriel Garcia Márquez!.”
“O exército de crentes e carolas que hoje manda nas grandes decisões nacionais se insurgiu contra a campanha, acionou seus lobistas de plantão e, outra vez, colocou o governo de joelhos”, atenta o jornalista Leandro Fortes, em sua página no Facebook. ”Agora, calaram as putas, condenadas a serem tristes por decreto. Feliz mesmo é Feliciano, que logo se apressou a cumprimentar o ministro, no Twitter, por mais essa vitória da moral e dos bons costumes.”
“Só que violação de direitos gera mais doenças”, adverte Vera Paiva. “Mortes e infecções desnecessárias virão, como no caso dos jovens homossexuais.”
SOLIDARIEDADE A DIRCEU GRECO E DEFESA INEQUÍVOCA DOS DIREITOS HUMANOS
Logo após a confirmação da demissão do dr. Dirceu Greco, Toni Reis, secretário de Educação da ABGLT, divulgou esta nota:
“Confirmado: Dirceu Greco, Diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais foi exonerado sumariamente pelo Ministério da Saúde (causa, a felicidade da prostituta acima)
Todos e todas têm direito de ser feliz no Brasil, inclusive as prostitutas (independente do que elas vendem…).
Nossa mais irrestrita solidariedade ao Dr. Dirceu Greco e equipe – estamos consternados com a notícia.
Felicidade é um direito humano. Quem se ama se cuida.
Plagiando a obra no Caminho com Maiakowski: ’Primeiro foram os gays a serem censurados. Eu não era gay, não reagi.Depois, censuraram as prostitutas. Eu não era prostituta, não reagi. Cercearam os índios. Eu não era índio, não reagi. Até que arrancaram o Estado laico, e já não podemos dizer nada”.
No início desta tarde, de junho, Dirceu Greco enviou esta mensagem a todos os seus colaboradores:
Esta é para comunicar que fui destituído e rapidamente exonerado pelo secretário de Vigilância em Saúde por ordem do ministro da Saúde, por discordâncias do ministério com a condução da política de direitos humanos e valorização de populações em situação de maior vulnerabilidade, que não coadunava com a política conservadora do atual governo.
Agradeço o apoio durante minha gestão e a solidariedade neste momento de transição. Volto para Belo Horizonte, para minhas atividades como Professor Titular de Clínica Médica e na Bioética.
Espero continuarmos todos juntos nesta luta, não só para o controle da epidemia, para a qual já existe instrumental técnico, mas principalmente enfrentando as disparidades, combatendo o estigma, a discriminação e a violência, e com defesa inequívoca dos direitos humanos.
Relembro que a política brasileira de enfrentamento das DST, Aids e Hepatites Virais, reconhecida nacional e internacionalmente, é maior que o Departamento e deve ser mantida como política de Estado e não só de governo”.
Com base nos meus 32 anos como repórter especializada em saúde e que acompanhou toda a evolução da aids no Brasil, ouso dizer: se, por nossa infelicidade, a epidemia tivesse surgido neste momento, o Brasil nunca teria se tornado referência mundial na prevenção de HIV/aids.[Queremos investigar os planos de saúde vagabundos que atuam no Brasil. Que tal nos ajudar a financiar esta reportagem?]
Leia também:
Alaerte Martins: A morte materna invisível das mulheres negras
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