RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL. REVISÃO CRIMINAL. PUBLICAÇÃO DE ACÓRDÃO QUE NÃO CORRESPONDE AO JULGAMENTO DO ÓRGÃO COLEGIADO. COISA JULGADA. NÃO OCORRÊNCIA. PERCEPÇÃO DO EQUÍVOCO PELO TRIBUNAL APÓS O TRÂNSITO EM JULGADO. DESCONSIDERAÇÃO DA PUBLICAÇÃO. POSSIBILIDADE. SEGURANÇA JURÍDICA. LEALDADE E ÉTICA PROCESSUAIS. PRETENDIDAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DECORRENTES DE ATOS ILÍCITOS. DESCONSIDERAÇÃO. SUSPEIÇÃO DE JULGADORES. UTILIZAÇÃO DE EXPRESSÕES INADEQUADAS. CIRCUNSTÂNCIA INSUFICIENTE A CONFIGURAR PARCIALIDADE NO JULGAMENTO.
1. O processo, em sua atual fase de desenvolvimento, é reforçado por valores éticos, com especial atenção ao papel desempenhado pelas partes, cabendo-lhes, além da participação para construção do provimento da causa, cooperar para a efetivação, a observância e o respeito à veracidade, à integralidade e à integridade do que se decidiu, conforme diretrizes do Estado Democrático de Direito.
2. A publicação intencional de acórdão ideologicamente falso – que não retrata, em nenhum aspecto, o julgamento realizado – com o objetivo de beneficiar uma das partes, mesmo após o trânsito em julgado, não pode reclamar a proteção de nenhum instituto do sistema processual (coisa julgada, segurança jurídica etc.)
3. Ao sistema de invalidades processuais aplicam-se todas as noções da teoria do direito acerca do plano de validade dos atos jurídicos de maneira geral. No processo, a validade do ato processual, tal como ocorre com os fatos jurídicos, também diz respeito à adequação do suporte fático que lhe subjaz e lhe serve de lastro.
4. A manutenção dos efeitos da publicação ilícita, eventualmente pretendida pelas partes, refoge à própria finalidade da revisão criminal que, ao superar a intangibilidade da sentença transitada em julgado, cede espaço aos impetrativos da justiça substancial.
5. É bem verdade que a revisão criminal encontra limitações no direito brasileiro, e a principal delas diz respeito à modalidade de decisão que pode desconstituir. Desde que instituída a revisão criminal na Constituição de 1891, é tradição do processo penal brasileiro reconhecer – tomando o princípio do favor rei como referência – que somente as sentenças de condenação podem ser revistas.
6. A revisão pro societate, cumpre dizer, reclamaria a mesma lógica que explica a revisão pro reo, qual seja, a necessidade de preservar a verdade e a justiça material, sobretudo quando o tempo demonstra a falsidade das provas sobre as quais se assentou a decisão absolutória, de modo a comprometer a legitimidade da sentença perante a comunhão social.
7. Embora entre nós não se preveja, normativamente, ainda que em caráter excepcional, a possibilidade de revisão do julgado favorável ao réu, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal autoriza desconstituir decisão terminativa de mérito em que se declarou extinta a punibilidade do acusado, em conformidade com os arts. 61 e 62 do Código de Processo Penal, tendo em vista a comprovação, posterior ao trânsito em julgado daquela decisão, de que o atestado de óbito motivador do decisum fora falsificado.
8. Ainda que a hipótese em exame não reproduza o caso de certidão de óbito falsa, retrata a elaboração de acórdão de conteúdo ideologicamente falsificado sobre o qual se pretende emprestar os efeitos da coisa julgada, da segurança jurídica e da inércia da jurisdição, o que ressoa incongruente com a própria natureza da revisão criminal que é a de fazer valer a verdade.
9. A desconstituição do acórdão falso não significa que houve rejulgamento da revisão criminal, muito menos se está a admitir uma revisão criminal pro societate. Trata-se de simples decisão interlocutória por meio da qual o Judiciário, dada a constatação de flagrante ilegalidade na proclamação do resultado de seu julgado, porquanto sedimentado em realidade fática inexistente e em correspondente documentação fraudada, corrige o ato e proclama o resultado verdadeiro (veredicto). Pensar de modo diverso (é que) ensejaria ofensa ao princípio do devido processo legal, aqui analisado sob o prisma dos deveres de lealdade, cooperação, probidade e confiança, que constituem pilares de sustentação do sistema jurídico-processual.
10. O processo, sob a ótica de qualquer de seus escopos, não pode tolerar o abuso do direito ou qualquer outra forma de atuação que dê azo à litigância de má-fé. Logo, condutas contrárias à verdade, fraudulentas ou procrastinatórias conspurcam o objetivo publicístico e social do processo, a merecer uma resposta inibitória exemplar do Judiciário.
11. Portanto, visto sob esse prisma, não há como se tolerar, como argumento de defesa, suposta inobservância à segurança jurídica quando a estabilidade da decisão que se pretende seja obedecida é assentada justamente em situação de fato e em comportamento processual que o ordenamento jurídico visa coibir.
12. A seu turno, o emprego, por desembargador que oficiou nos autos, de expressões inadequadas ou de linguajar não compatível com a nobre função de julgar não significa, por si só, a ocorrência de julgamento parcial. A suspeição se comprova pelo laço íntimo de afeição ou de desafeição e não pela ausência de técnica escorreita de linguagem.
13. Recurso Especial não provido
Fonte: STJ, REsp 1.324.760
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