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terça-feira, 3 de novembro de 2015

O Tema 838 da repercussão geral: agente público e tatuagem combinam?

OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL


O Supremo Tribunal Federal noticiou na última segunda-feira (26/10) o reconhecimento da repercussão geral da controvérsia jurídica suscitada no Recurso Extraordinário 898450/SP, sintetizada no Tema 838 da seguinte forma: “Constitucionalidade da proibição, contida em edital de concurso público, de ingresso em cargo, emprego ou função pública para candidatos que tenham certos tipos de tatuagem em seu corpo.”[i]
Segundo informado, por meio de decisão de 28/08/2015 (DJe 10/09/2015), o Plenário Virtual da Corte, por maioria de votos, acompanhou o relator do caso, ministro Luiz Fux, em sua manifestação favorável ao reconhecimento do caráter constitucional e da repercussão geral da questão suscitada.[ii]
Embora o caso concreto contido no RE 898450/SP diga respeito a provimento de cargo de soldado da Polícia Militar – ou seja, de agente público ligado à atividade estatal de segurança pública ostensiva e preservação da ordem pública –, o STF optou por uma redação abrangente do Tema 838 da repercussão geral, aparentemente assumindo a pretensão de abordar o tema para todo e qualquer cargo, emprego ou função pública.
Essa postura deve observar, pelo menos, dois pontos de vista. De um lado,trata-se de considerar a diversidade dentro da unidade, pois ainda que a ampliação do espectro de análise da questão constitucional não seja necessariamente prejudicial ou vedada e, em certos casos, possa se mostrar até mais adequada, fato é que a opção de análise para todo e qualquer agente público (civil e militar) não pode olvidar a existência de diferentes mares (pelas peculiaridades de cada atribuição) em um mesmo oceano (de servir ao público).
De outro lado, trata-se de considerar a unidade dentro da diversidade, na medida em que as regras de contratação de agentes públicos, embora possam tomar rumos distintos de acordo com a competência legislativa própria de cada ente federativo para fixar o regime jurídico de seus servidores,[iii] devem observar normas constitucionais comuns, geralmente vinculadas à impessoalidade, à isonomia de tratamento e à igualdade de chances de ingressar no serviço público.
Em termos gerais, o fundo do debate remonta a um tema clássico do direito público brasileiro e que tem diversos precedentes no âmbito do STF, vinculados especialmente às disposições dos incisos I e II do artigo 37 da Constituição (quanto a servidores civis), no sentido de que toda restrição (ou discriminação) de acesso a cargos, funções ou empregos públicos deve ter previsão em lei (em sentido formal), bem como deve haver relação de pertinência (razoabilidade ou proporcionalidade) com a natureza das atribuições funcionais. Assim, a previsão de uma restrição qualquer em edital de concurso público é condição necessária de sua validade, mas não é suficiente para tanto, pois requer, ainda, suporte jurídico em lei.[iv]
Nesse sentido, sempre houve muita discussão jurídica acerca das restrições de idade ou de altura mínima dos candidatos que concorrem a determinados cargos, empregos ou funções públicas – especialmente daqueles ligados a atividades ligadas à segurança pública e à atividade militar. [v]
Ademais, é interessante relembrar que há restrições que a própria Constituição estabelece. Por exemplo, há restrições para admissão de determinados agentes políticos quanto à idade mínima e máxima e à nacionalidade.
De todo modo, o entendimento predominante é o de que caberá à lei definir a restrição de forma objetiva, imparcial e razoável, em concordância com os parâmetros constitucionais antes mencionados, e que tal definição nunca é infensa ao controle jurisdicional.
A despeito dessas balizas gerais, o caso em análise traz um elemento aditivo ao motor da discussão. De um lado, o critério de idade ou altura são critérios biológicos que não estão na esfera de autonomia decisória e liberdade individual de cada um. Ninguém escolhe, num determinado momento da vida, a idade que quer ter ou a altura que almeja possuir para determinado fim – pelo menos é o que se verifica atualmente, a não ser que a engenharia genética e a ciência venham a provar o contrário. Assim, o debate aqui se concentra nos princípios de igualdade e isonomia.
De outro lado, a restrição em debate no Tema 838 da repercussão geral envolve um aspecto da vida privada do indivíduo, fruto de decisão voluntária de tatuar o seu corpo, como desdobramento de sua esfera de liberdade de expressão e de livre desenvolvimento da personalidade. Trata-se de uma forma de expressão humana que acompanha o homem em sua história, ainda que com diferentes conotações estéticas e simbólicas ao longo do tempo. [vi]  
De todo modo, não está em discussão a legitimidade dessa opção individual e livre de cada um, que deve ser respeitada por todos. O que se ressalta é que a discussão ganha complexidade, pois, além do debate anteriormente mencionado, agrega-se a necessidade de se avaliar se (e como) uma liberdade individual pode ser afetada.
Ocorre que, diferentemente da consideração única e exclusiva da esfera privada do indivíduo, os agentes públicos se submetem a um conjunto de regras estatutárias, na medida em que eles cumprem uma função pública e são parte da exteriorização física e concreta da figura do Estado.
De um lado, essas regras podem afetar a conduta em si e certos direitos dos agentes públicos. Por exemplo, situações de vedação de vinculação a partidos políticos para alguns agentes públicos ou a vedação do direito de greve para outros. A proibição de ingestão de bebidas alcoólicas quando estiver em exercício da função. 
De outro lado, tais regras podem afetar até mesmo a aparência que os agentes públicos devem manter durante o exercício das atividades funcionais ou o vestuário que devem trajar, a fim de cumprir a “liturgia de um cargo” ou a fim de preservar a imagem de profissionalismo, hierarquia, disciplina e credibilidade de determinadas instituições públicas. Basta pensarmos que, de modo geral, agentes de segurança pública ostensiva devem trajar uniforme adequado para ser identificados entre si ou pela sociedade, enquanto estiverem no exercício do cargo.
Nesse sentido, surge a necessidade de acomodar, de um lado, os valores constitucionais ligados à função pública, à imagem e preservação das instituições públicas e às atribuições funcionais e, de outro lado, os direitos ligados ao livre desenvolvimento da personalidade e à liberdade individual de expressão daqueles que decidem se tornar agentes públicos.
Interessa notar que as vedações ou restrições que surgirem dessa dinâmica e complexa harmonização devem se vincular a uma razão objetiva, razoável e juridicamente fundada.
Nesse contexto, com o intuito de contribuir com o debate, é interessante investigar se o STF tem se pronunciado sobre questões idênticas ou assemelhadas ao contido no Tema 838 da repercussão geral e que elementos podem ser apontados para a futura análise do caso.
Até aqui, podemos identificar um conjunto de argumentos e fundamentos jurídicos ligados à controvérsia: exigência de reserva legal da restrição ao cargo público, vinculação ao edital do certame, relação de pertinência entre a restrição e a natureza do cargo (inclusive quanto à necessidade de manutenção da ordem e da credibilidade das instituições públicas), impessoalidade, isonomia de tratamento e igualdade de chances, liberdade de expressão e livre desenvolvimento da personalidade.
Quanto à jurisprudência do STF, pode-se dizer que, até o momento, nenhum precedente enfrentou, de forma expressa e direta, o mérito do tema da restrição de acesso a concurso público em razão de o candidato ser tatuado. Dentre as principais ocorrências em decisões monocráticas, podemos citar, ilustrativamente, o seguinte:
  1. Há precedentes que acolhem ou rejeitam recursos tão somente para afirmar a jurisprudência de que a restrição é inconstitucional por falta de previsão legal (sem aprofundar sobre a restrição em si mesma);[vii]
  2. Há precedentes que acolhem ou rejeitam recursos com fundamento na violação da cláusula de reserva de plenário (art. 97/CF e Súmula Vinculante 10);[viii]
  3. Há precedentes que negam seguimento a recursos com fundamento em súmulas que impedem a revisão de fatos e provas e a revisão de cláusulas editalícias para se aferir a violação constitucional; [ix]
  4. Há decisões mais recentes que apenas determinam a devolução dos autos à origem, nos termos da sistemática da repercussão geral, até que o Tema 838 tenha seu mérito julgado.[x]

    Quanto a decisões colegiadas, não se verifica decisão do Pleno do STF que trate diretamente do mérito do tema. A 1º Turma do tribunal tem três precedentes (com fundamento na cláusula de reserva de plenário e em súmulas impeditivas de revisão de fatos e provas e de revisão de cláusulas editalícias) e a 2º Turma tem um precedente (com fundamento em súmulas impeditivas de revisão de fatos e provas e de revisão de cláusulas editalícias).[xi]
De todo modo, um possível caminho que se espera como linha de análise da corte é a necessidade de se averiguar em que medida a restrição atende às finalidades públicas, ou, como o próprio ministro Luiz Fux asseverou, “é preciso definir, à luz dos arts. 5º, I e 37, I e II da CRFB/88, se o fato de um cidadão ostentar tatuagens seria circunstância idônea e proporcional a impedi-lo de concorrer a um cargo público”.
Para tanto, torna-se necessário investigar quais as razões dadas para as restrições e que finalidade elas pretendem alcançar. Esses elementos parecem importantes para o juízo de proporcionalidade e razoabilidade almejado. Além disso, é preciso indagar se a apresentação de agentes públicos com tatuagens expostas pode prejudicar o exercício de determinada função pública e a imagem e os valores de instituições públicas. Ao mesmo tempo, é preciso indagar sobre que medidas conformadoras (compensatórias) da situação em análise podem se mostrar aptas a preservar e harmonizar os valores e direitos constitucionais envolvidos.
Tamanho e parte do corpo
Nesse sentido, por exemplo, o debate pode se aprofundar sobre a adequação de critérios relativos ao tipo de tatuagem, à simbologia do desenho(conflitante ou não com valores incorporados às instituições públicas, representativas ou não de atividades ou organizações criminosas ou terroristas, etc.), à parte do corpo em que se encontra (visível ou invisível em relação ao traje de trabalho), às finalidades e valores institucionais e constitucionais envolvidos.

Esses elementos de análise já são considerados e palpitantes no debate existente nas instâncias ordinárias – quando analisam o conteúdo restritivo da legislação infraconstitucional –, mas nunca foram objeto de discussão direta pelo STF.[xii]
Apenas a título ilustrativo, é possível enumerar alguns argumentos registrados nos acórdãos de tribunais de segundo grau, contra os quais tem havido a interposição de recursos extraordinários: atentar ou não contra o decoro castrense; aparentar ou não representação a qualquer tipo de preconceito, discriminação ou apologia à violência ou às drogas; estar ou não coberto pelo uniforme ou fardamento; ainda que visível ao público, em nada impedir ou dificultar o desempenho das atividades profissionais do policial e não possuir cunho ofensivo aos princípios da corporação; estar ou não aparente apenas quando do uso do uniforme de educação física; etc.
A experiência de outros países também é interessante e permite evidenciar que o elemento cultural exerce importante influência nessa questão, sobretudo quando se tratar de atividades policiais e militares. Um exemplo caricato é o caso norte-americano.
Nos Estados Unidos da América, por exemplo, onde o prestígio dado à figura do militar e da autoridade policial é um elemento cultural relevante, há muito debate acerca do uso de tatuagens por militares e policiais – e também o registro de conflitos curiosos. Em abril de 2015, por exemplo, houve uma revisão da regulamentação vigente do U.S. Army a esse respeito, em que se definiu que não haveria mais limites quanto ao tamanho e à quantidade de tatuagens que os soldados do exército poderiam ter nos braços e pernas, desde que elas se mantivessem cobertas pelo uniforme.
Entretanto, permaneceram proibidas tatuagens na cabeça (inclusive nos olhos, boca e orelhas), no pescoço (anything above the t-shirt neckline), nos pulsos e nas mãos (à exceção de uma tatuagem de anel em cada mão e próxima à palma). Além disso, independentemente da parte do corpo, são proibidas tatuagens que prejudiquem a disciplina e a boa ordem, tais como as que tenham referências indecentes, de violência de gênero, racistas e extremistas. E é proibido qualquer tipo de maquiagem ou artifício que tente cobrir as tatuagens feitas em partes do corpo não autorizadas.[xiii]
Além disso, as regulamentações de corporações policiais norte-americanas (locais e estaduais) sobre o tema não só deixam de seguir uma uniformidade de critérios, mas também costumam destoar das regras das forças armadas daquele país.[xiv] Com isso, cria-se uma situação curiosa, pois boa parte do efetivo do exército, que costuma migrar para as forças policiais após o fim de suas atividades militares, encontra resistências nos departamentos de polícia por conta de as tatuagens (antes cobertas pelos uniformes militares) terem se tornado visíveis em razão do novo modelo de uniforme (policial), seja no ingresso em uma corporação policial, seja por mudança da regulamentação de tatuagens em uma corporação de que já faziam parte.
Quanto a esse último exemplo, vale mencionar que, em abril de 2015, três oficiais (ex-militares) contestaram na Justiça a mudança da regulamentação do departamento de polícia da cidade de Chicago, que passou a proibir a exposição de tatuagens em locais do corpo não cobertos pelo uniforme, obrigando-os a usar determinados tipos de roupas e produtos (extra clothing to cover tattoos or cover-up tape) durante o expediente que, segundo eles, causariam muito calor e irritação da pele durante meses quentes. Alegavam violação à primeira emenda constitucional e a suas liberdades de expressão.
Contudo, como noticiado em 29 de outubro, a primeira decisão judicial proferida no caso rejeitou o pleito dos oficiais, ao argumento de que o propósito da regulamentação, no sentido de implementar uma imagem profissional do departamento policial, superaria os interesses individuais dos oficiais em manter visíveis suas tatuagens enquanto estivessem em atividade.
Outro exemplo interessante é o caso da Alemanha, em que a regulamentação também é variável no nível estadual (dos Länder), embora seja comum verificar a existência de restrições quanto ao ingresso nas forças policiais, no que diz respeito a tatuagens que não sejam cobertas pelos uniformes ou que possam fazer apologia a ideias discriminatórias ou ofensivas aos valores constitucionais. É o que se verifica, por exemplo, na regulamentação de apresentação das forças policiais de Rheinland-Pflaz[xv]e de Berlin.[xvi] No âmbito federal, também se verificam restrições semelhantes noticiadas nas informações relativas ao processo de recrutamento e admissão da Bundespolizei.[xvii]
Os exemplos de países estrangeiros são muitos ricos e podem mostrar que o desafio é comum – guardadas as peculiaridades locais, jurídicas e culturais próprias de cada país ou região – e envolve uma preocupação com a imagem de instituições públicas, sobretudo daquelas compostas por agentes públicos que representam atividades de segurança pública ostensiva.[xviii]
De volta ao contexto do Brasil, vale destacar, ainda, que há previsão sobre o tema das tatuagens no âmbito das normas de ingresso das Forças Armadas brasileiras, que têm disposições específicas nas legislações da Marinha[xix], da Aeronáutica[xx] e do Exército[xxi], proibindo tatuagens ofensivas a determinados valores institucionais ou que representem ofensa à ordem pública em geral. Quanto à legislação do Exército, é interessante pontuar a existência de um veto da presidente da República quanto à proposição do critério de restrição ao ingresso de candidatos portadores de tatuagens que: “pelas suas dimensões ou natureza, prejudiquem a camuflagem e comprometam as operações militares” (Art. 2º, VIII, alínea “b”, Lei 12705/2012). A razão de contrariedade ao interesse público apresentada no veto foi a de que “Quanto à apresentação de tatuagens, o discrímen só se explica se acompanhado de parâmetros razoáveis ou de critérios consistentes para sua aplicação”.
Esse último exemplo demonstra bem a relevância de não apenas se exigir fundamentação de todo e qualquer critério restritivo da concorrência isonômica e igualitária de acesso e permanência na função pública, mas também de toda proposta de restrição a liberdades e direitos fundamentais – como pode ocorrer no contexto de admissão de candidatos tatuados que almejam se tornar agentes públicos. A restrição pode existir, mas deve ser a exceção, deve ser fundamentada e pautada em critérios objetivos e razoáveis e deve sempre definir os limites e extensão de sua aplicação.
O que se pode perceber, em suma, é que há uma enorme variedade de elementos a serem considerados, dotados de razoável complexidade. A proposição ampla e abrangente da redação do Tema 838 da repercussão geral traz para si um desafio maior, traduzido aqui nas ideias deobservância de diversidade dentro da unidade e de unidade dentro da diversidade.
Quer dizer, exige-se não se descuidar das peculiaridades que podem envolver distintos nichos de atuação pública, como ocorre nas atividades militares e nas atividades de segurança pública ostensiva, por exemplo. Mas é preciso um tratamento minimamente uniforme, no sentido de observar balizas constitucionais comuns de acesso ao serviço público.
Ao mesmo tempo, deve-se refletir bem sobre os limites de uma restrição a liberdades e direitos fundamentais – como no caso em questão –, para que não se cometam excessos e restrições inconstitucionais. Algumas pistas desse quebra-cabeça já se mostram identificáveis. Mas caberá ao Supremo Tribunal Federal o próximo passo, no sentido de se conferir ao caso uma decisão final constitucionalmente coerente e fundamentada.

 é professor em cursos de pós-graduação no Instituto Brasiliense de Direito Público, doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-out-31/tema-repercussao-geral-agente-publico-tatuagem-combinam

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