Há alguns anos venho investigando as experiências de vida familiar de africanos e afro-descendentes na Bahia oitocentista, enfatizando a forma como as mudanças sociais, econômicas e políticas do período influíram na estrutura, dinâmica e vida cotidiana dos negros submetidos ou não ao regime de cativeiro.
por Isabel Crsitina Ferreira dos Reis Do Fundação Pedro Calmon
Para a realização deste estudo tenho realizado ampla pesquisa documental a partir da combinação de fontes demográficas, favoráveis às análises quantitativas (a exemplo do Censo de 1872, registros de casamentos, listas de matrículas de escravos, listas de cativos classificados para a alforria pelo Fundo de Emancipação, “Relação dos africanos livres existentes na Província da Bahia”, etc.); algumas fontes que se prestam tanto à quantificação quanto a uma história social e cultural fundamentada em análises qualitativas (testamentos e inventários post mortem e cartas de alforrias); e fontes que discorrem sobre episódios cotidianos da vida familiar e afetiva (notícias em periódicos, documentação policial, Ações de liberdade, processos crimes, entre outros), o que tem favorecido na composição de cenários e trajetórias de vida, assim como para a compreensão dos sentidos que os africanos e seus descendentes conferiam às suas próprias experiências.
Como é sabido, o período em estudo é marcado por uma conjuntura nitidamente emancipacionista — tanto do ponto de vista de uma política arquitetada e controlada pelo Estado como, igualmente importante, pelas ações capitaneadas pela população negra escravizada, livre e liberta. Neste período não foram poucos os indivíduos que faziam parte de famílias que vivenciaram a conflituosa dualidade cativeiro-liberdade, pois muitos cativos estavam unidos de forma consensual ou legitima à pessoa livre ou liberta, assim como muitos escravizados possuíam filhos já alforriados ou nascidos depois da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre). Muitos daqueles que ainda permaneciam na condição de cativos, tiveram que dividir as agruras impostas pelo regime com os seus familiares e parentes não escravos.
Vimos que neste cenário, as experiências de vida familiar dos africanos e seus descendentes podem ser facilmente associadas à resistência negra ao sistema escravista, pois não foram poucas as iniciativas empreendidas para impedir a desagregação da família pelo comércio em separado de seus membros, e até mesmo as tentativas de recuperação de laços familiares desfeitos pelo tráfico interprovincial.
O descontentamento do escravizado diante da impossibilidade de preservar os laços familiares e relacionamentos afetivos manifestaram-se em circunstâncias as mais variadas, a exemplo das fugas empreendidas em família ou com o apoio de familiares, ou para ir ao encontro deles; dos crimes cometidos contra os que abusavam de seus entes queridos; dos suicídios cometidos por mulheres escravizadas precedidos do infanticídio contra seus filhos; além de um comportamento cotidiano rebelde em função da pressão senhorial sobre a sua parentela.
Podemos recordar aqui as fugas empreendidas por cativos “casados”, “amásios”, mulheres escravizadas que fugiram grávidas, “pejadas”, “às vésperas de parir” ou levando consigo um, dois, ou mais filhos, muitas vezes ainda pequenos. Não foram raros os cativos fugidos, encontrados anos depois, vivendo como se fossem livres, pois estrategicamente trocavam de nome, procuravam ocupação, arranjavam parceiros que podiam ser também fugitivos, libertos ou até mesmo pessoas livres, ou seja, muitos fujões tinham filhos, constituíam famílias e acabavam por ampliar os seus vínculos e meios de solidariedade.
A família consensual ou legitimada pela igreja católica, a família nuclear ou parcial (mães, pais e sua prole) foi extremamente importante para os negros no tempo da escravidão, um contexto em que a solidariedade e o amparo mútuo eram elementos indispensáveis e que podiam contribuir para a conquista da carta de alforria, para uma vida com alguma dignidade e nos momentos de maior dificuldade. O apoio de familiares e parentes era fundamental, sobretudo para aqueles que ficavam doentes ou inválidos, ou para os que conseguiam atingir a velhice.
É importante enfatizar que para além dos laços de sangue, nas comunidades negras do tempo da escravidão se firmaram redes de apoio e solidariedade ancorados na recriação dos laços de família, o que pode ser evidenciado a partir das várias formas de parentesco simbólico ou ritual, a exemplo das relações de compadrio, das “famílias de santo” e irmandades católicas de negros (instituições freqüentemente organizadas seguindo a lógica da filiação étnica), dos “parentescos” forjados entre aqueles que atravessavam juntos a terrível passagem através do Atlântico, a exemplo do malungo.
Os africanos e seus descendentes utilizaram-se dessas relações, formando famílias extensas, compostas por parentes de consideração e companheiros de trabalho, articulando uma rede de solidariedades que lhe proporcionasse maior amparo, ainda mais que a família sangüínea imediata estava permanentemente sob ameaça de desagregação.
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