Maria José Nunes de AlmeidaMaria José Nunes de Almeida
O artigo aborda a finalidade social do instituto da prescrição, a consagração do princípio da segurança jurídica e o dissenso doutrinário relativo à interpretação do art. 37, § 5º, da Constituição, objeto do RE 669.069/MG.
1. O INSTITUTO DA PRESCRIÇÃO
Violado o direito (norma agendi), nasce a pretensão (facultas agendi), a ser exercida durante o prazo fixado pelo legislador, sob pena de perda do direito de ação (art. 189 do Código Civil de 2002).
A prescrição, assim como a decadência, é instituto jurídico voltado à pacificação social, vez que permite a consolidação de situações jurídicas pelo decurso do tempo, impedindo a perpetuação de um estado de insegurança.
Conforme magistério de Flávio Tartuce (2015, p. 229): “É antiga a máxima jurídica segundo a qual o exercício de um direito não pode ficar pendente de forma indefinida no tempo. O titular deve exercê-lo dentro de um determinado prazo, pois o direito não socorre aqueles que dormem.”
Para o referido autor (2015, p. 229), a prescrição e a decadência são fundadas na pacificação social, na certeza e na segurança da ordem jurídica e em uma espécie de boa-fé do próprio legislador ou do sistema jurídico.
Entre nós, o Código Civil de 2002 pôs fim à celeuma relativa a identificação de prazos prescricionais e decadenciais, existente sob a ordem do Código de 1916,e, em homenagem ao princípio da simplicidade (faceta do princípio da operatividade), concentrou os prazos prescricionais em seus arts. 205 e 206, fixando-os em anos, enquanto os prazos decadenciais, estabelecidos em outros dispositivos, são fixados em dias, meses, ano e dia ou também em anos, parâmetros que facilitaram a separação entre as duas categorias de prazos (TARTUCE, p. 229/230).
No que tange à matéria, o Código Civil de 2002 adotou os estudos de Agnelo Amorim Filho, que associou os prazos prescricionaisa direitos subjetivos e às respectivas ações condenatórias e os prazos decadenciais a direitos potestativos e às ações constitutivas (negativas ou positivas) correspondentes, identificando as ações meramente declaratórias como não sujeitas à prescrição ou a decadência (TARTUCE, 2015, p. 230).
2. CONSAGRAÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Os princípios da segurança e da harmonia social são invocados no preâmbulo da Constituição de 1988, que, embora não possua força normativa, contém as diretrizes que nortearam a elaboração da Carta pelo constituinte originário, às quais se atribui valor interpretativo (MENDES; BRANCO, 2015, p. 77).
Há, contudo, dispositivos no corpo da Constituição, estes sim dotados de força normativa, que evidenciam a consagração da segurança jurídica e da pacificação social como fatores de relevância para o Estado brasileiro e para a sociedade, a exemplo do art. 5º, caput (segurança); art. 5º, inciso XXXVI (proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada); art. 5º, inciso XL (princípio da não retroação da lei penal in malam partem); e art. 5º, inciso XLVII, alínea “b” (vedação de penas perpétuas).
3. O ART. 37, § 5° DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A (IN)EXISTÊNCIA DE PRAZO PRESCRICIONAL DAS AÇÕES PARA RESSARCIMENTO POR DANOS AO ERÁRIO
Segundo do disposto no art. 37, §5º, da Constituição Republicana de 1988: “A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”.
A interpretação do dispositivo pela doutrina sempre foi controversa.
Até o julgamento do RE 669069/MG, havia aqueles que entendiam que o referido dispositivo estabeleceria a imprescritibilidade da pretensão reparatória do poder público perante o agente de ilícito que lhe causasse dano patrimonial.
Os autores filiados a tal corrente, tida como majoritária, sustentavam que a redação do art. 37, §5º, da CF seria clara e que a imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento decorreria do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, um dos pilares do regime jurídico administrativo brasileiro (SOUZA, 2012, p. 90).
Filiavam-se a tal corrente os autores José dos Santos Carvalho Filho, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, José Afonso da Silva, entre outros (SOUZA, 2012, p. 90).
Conforme o magistério de José dos Santos Carvalho Filho (2015, p. 609):
Pelo texto constitucional, pode concluir-se que a Carta, no caso de ilícitos oriundos de agentes do Poder Público, admitiu ações prescritíveis e ações imprescritíveis, referindo-se, em relação a estas, ao ressarcimento de prejuízos. Desse modo, em se tratando de efeitos administrativos e penais, advindos da conduta ilícita, haverá prescritibilidade, na forma estabelecida na lei. Para os primeiros, a lei será federal, estadual, distrital ou municipal, conforme o caso; para os últimos, a lei será privativamente federal (art. 22, I, CF). Consequentemente, no que concerne à pretensão ressarcitória (ou indenizatória) do Estado, a Constituição assegura a imprescritibilidade da ação. Assim, não há período máximo (vale dizer: prazo prescricional) para que o Poder Público possa propor a ação de indenização em face de seu agente, com o fito de garantir o ressarcimento pelos prejuízos que o mesmo lhe causou.
Como visto, para o referido autor (2015, p. 610) a imprescritibilidade se aplicaria apenas aos casos em que efeitos danosos (prejuízos) adviessem de condutas ilícitas de natureza civil e, tão somente, em relação à pretensão de ressarcimento.
De outro modo, defendiam a tese da prescritibilidade, entre outros, os autores Celso Antônio Bandeira de Mello (que afirmava que a tese da imprescritibilidade iria de encontro ao direito de defesa (em vista da impossibilidade de perpetuação de provas e elementos de defesa) e que as hipóteses de imprescritibilidade previstas no texto constitucional se referiam à matéria penal, norteada pelo princípio da intransendência, ao contrário da responsabilidade por ressarcimento, transmissível aos herdeiros) e Luciano Ferras (para quem a imprescritibilidade encontraria óbice nos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal, previsto no art. 5º, LV, CF/88) (SOUZA, 2012, p. 96).
Procedendo à interpretação histórica do dispositivo constitucional, mediante exame do processo legislativo que lhe deu origem e buscando captar a mens legis, Thiago Igor de Paula Souza (2012, p. 97), conclui que:
[...] no processo de elaboração da Constituição, a regra era a imprescritibilidade de ilícitos de todas as espécies, o que, depois, foi limitada às ações de ressarcimento e veio a ser, ao final, também, eliminada. Ou seja: percebe-se que no processo constituinte da Carta de 1988 cogitou-se da imprescritibilidade das ações de ressarcimento dos danos ao erário, mas que, como visto, o constituinte originário não a adotou.
Os que advogavam a tese da prescritibilidade das ações de ressarcimento também justificavam sua posição nos princípio da segurança jurídica, da proteção à confiança, do contraditório, da ampla defesa (SOUZA, 2012, p. 98/102).
4. O ENTENDIMENTO ADOTADO PELO STF NO RE 669.069/MG
A questão do alcance da imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento ao erário prevista no artigo 37, § 5º, da Constituição Federal chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a sistemática de Repercussão Geral, instituída pela Emenda Constitucional nº. 45/2004 e regulamentada pela da Lei n. 11.418/2006, nos autos do Recurso Extraordinário (RE) nº. 669069/MG, de relatoria do Ministro Teori Zavascki, no qual a União se insurgiu de acórdão que julgou prescrita a pretensão de ressarcimento de danos causados por acidente a um automóvel de sua propriedade, aplicando a prazo de prescrição quinquenal.
A repercussão geral da matéria foi reconhecida em 02.08.2013, sob o fundamento de que:
A questão transcende os limites subjetivos da causa, havendo, no plano doutrinário e jurisprudencial, acirrada divergência de entendimentos, fundamentados, basicamente, em três linhas interpretativas: (a) a imprescritibilidade aludida no dispositivo constitucional alcança qualquer tipo de ação de ressarcimento ao erário; (b) a imprescritibilidade alcança apenas as ações por danos ao erário decorrentes de ilícito penal ou de improbidade administrativa; (c) o dispositivo não contém norma apta a consagrar imprescritibilidade alguma. É manifesta, assim, a relevância e a transcendência dessa questão constitucional. (STF, RE 669069/MG, Min. Teori Zavasqui. Julgamento em 02 ago. 2013. Inteiro Teor do Acórdão, p. 3[1])
O julgamento do mérito da causa, iniciado em novembro de 2014, conforme divulgado no Informativo nº. 767[2] do STF, foi suspenso devido a pedido de vista do Ministro Dias Toffoli.
A retomada e conclusão do julgamento, noticiada no Informativo nº. 813[3], se deu em fevereiro de 2016, ocasião na qual o Plenário da Suprema Corte, interpretando o disposto no art. 37, § 5º, da CF, assentou a tese de que “é prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.”
Para o Colegiado:
“[...] a parte final do dispositivo constitucional em comento veicularia, sob a forma da imprescritibilidade, ordem de bloqueio destinada a conter eventuais iniciativas legislativas displicentes com o patrimônio público. Todavia, não seria adequado embutir na norma de imprescritibilidade um alcance ilimitado, ou limitado apenas pelo conteúdo material da pretensão a ser exercida — o ressarcimento — ou pela causa remota que dera origem ao desfalque no erário — ato ilícito em sentido amplo. De acordo com o sistema constitucional, o qual reconheceria a prescritibilidade como princípio, se deveria atribuir um sentido estrito aos ilícitos previstos no § 5º do art. 37 da CF. No caso concreto, a pretensão de ressarcimento estaria fundamentada em suposto ilícito civil que, embora tivesse causado prejuízo material ao patrimônio público, não revelaria conduta revestida de grau de reprovabilidade mais pronunciado, nem se mostraria especialmente atentatória aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública. Por essa razão, não seria admissível reconhecer a regra excepcional de imprescritibilidade. Seria necessário aplicar o prazo prescricional comum para as ações de indenização por responsabilidade civil em que a Fazenda figurasse como autora. Ao tempo do fato, o prazo prescricional seria de 20 anos de acordo com o CC/1916 (art. 177). Porém, com o advento do CC/2002, o prazo fora diminuído para três anos. Além disso, possuiria aplicação imediata, em razão da regra de transição do art. 2.028, que preconiza a imediata incidência dos prazos prescricionais reduzidos pela nova lei nas hipóteses em que ainda não houvesse transcorrido mais da metade do tempo estabelecido no diploma revogado.” (STF, Informativo nº. 813[4])
Não houve pronunciamento do Pretório Excelso acerca da aplicação da regra de (im)prescritibilidade aos casos de improbidade administrativa ou em matéria criminal, uma vez que não esta a questão debatida nos autos (princípio da congruência ou adstrição).
Apenas o Ministro Edson Fachin endossara em seu voto vencido a tese de imprescritibilidade das ações de ressarcimento decorrentes de atos ilícitos que gerassem prejuízo ao erário.
A decisão do STF, prolatada no âmbito do controle difuso de constitucionalidade e da sistemática de repercussão geral, deverá ser aplicada pelos demais órgãos do Poder Judiciário, em casos idênticos.
Consoante ensinado por Gilmar F. Mendes: “[...] a sistemática da repercussão geral faz com que as decisões proferidas nos processos-paradigmas espraiem seus efeitos para uma série de demandas sobre igual tema, antes mesmo da conversão do entendimento em súmula vinculante. É mais uma fase do fenômeno de "objetivação" do recurso extraordinário.” (MENDES; BRANCO, 2015, p. 1128).
Fonte: https://jus.com.br/artigos/47552/o-art-37-5-da-constituicao-federal-e-im-prescritibilidade-das-acoes-de-ressarcimento-por-danos-ao-erario
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