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quarta-feira, 11 de maio de 2016

O ESTADO DE EXCEÇÃO, O TRÁFICO DE DROGAS E O TERRORISMO


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BREVE ANÁLISE SOBRE A TEORIA DO ESTADO DE EXCEÇÃO DE GIORGIO AGAMBEN E SUA RELAÇÃO COM ALGUMAS MEDIDAS PROPOSTAS PELO PARADIGMA GOVERNAMENTAL CONTEMPORÂNEO

​Por Tracy Reinaldet

O filósofo italiano Giorgio Agamben ficou conhecido por trabalhar em seus escritos com a ideia de estado de exceção. Segundo ele, desde a segunda guerra mundial, tal forma de governar tornou-se regra, revelando-se “verdadeiro paradigma de governo dominante na política contemporânea”[1](I).

É bem verdade que não é fácil visualizarmos a consubstanciação desse pensamento em nossa realidade atual, ainda mais em um ambiente (supostamente) democrático como o que vivemos. Contudo, determinadas medidas tomadas pelo poder soberano, seja no Brasil, seja em outros ordenamentos jurídicos, parecem dar razão ao pensamento de Agamben – vez que se tratam de medidas muito similares às que poderiam ser prolatadas sob a égide de um estado de exceção(II).

I – O ESTADO DE EXCEÇÃO E O PARADIGMA CONTEMPORÂNEO DE GOVERNO

À partida, necessário se faz estudarmos o conteúdo e as características da noção de Estado de Exceção (A), para, então, verificarmos a aplicabilidade prática de um tal conceito e a sua relevância no paradigma de governo contemporâneo(B)

A) O estado de exceção de Giorgio Agamben

O estado de exceção é um conceito fruto mais da tradição democrática do que da absolutista[2]. Ele foi trabalhado ao longo da história em diversos ordenamentos jurídicos, tais como o suíço, o francês, o alemão e também o brasileiro[3] – ganhando diferentes apelações e contornos em cada um destes países. No entanto, até hoje, a despeito dos estudos de Carl Schmitt[4] e do debate travado entre referido jurista e Walter Benjamin sobre o tema[5], o estado de exceção carece de uma teoria jurídica propriamente dita. Talvez a explicação para esse vácuo teórico se de pelo fato de que não sabemos ao certo se o tema, em razão de suas características, situa-se num topos jurídico ou num topos essencialmente político[6], ou ainda se é um problema de fato ou de direito[7].

De qualquer forma, a partir dos escritos de Agamben, podemos dividir o exame do estado de exceção em duas partes. A primeira, é o estudo do motivo que engendra a aplicação de um tal modelo de governo, o exame do contexto fático- político que é a razão de ser do estado de exceção. A segunda,é a análise das características do instituto propriamente ditas – a partir das quais podemos concluir se estamos ou não diante de uma tal forma de governar.

De acordo com o professor italiano, o estado de exceção existe quando um fator social ou político abala a estrutura da ordem até então estabelecida[8]. Esse dado fático, o qual pode se originar numa grave comoção ou receio social, ou ainda numa tentativa institucional de minar o poder vigente,será responsável por colocar em xeque a vigência do poder soberano.Em razão desse risco, a ordem jurídica será modificada, remodelando-se para fazer frente à ameaça eminente - no intuito de se manter válida apesar do fator social ou político que a abala. Essa remodelagem consubstancia o que denominamos como estado de exceção e trás consigno certas alterações no exercício do poder soberano.

A primeira, e talvez mais importante, é a suspensão da ordem jurídica e, consequentemente, a suspensão de determinados direitos fundamentais e sociais por ela previstos. No estado de exceção, as normas jurídicas continuam válidas, mas deixam de ser aplicadas vez que a efetividade do conteúdo destas pode colocar em xeque o próprio ordenamento[9]. Assim, realiza-se algo que parece em princípio paradoxal: sacrifica-se a ordem jurídica estabelecida para, justamente, preservá-la. A ameaça político-social que justifica o estado de exceção exige que medidas graves sejam tomadas, as quais desrespeitam os direitos e garantias previstos na lei. Isso, no entanto, não significa que tais direitos tenham sido revogados, pelo contrário. Eles ainda existem, permanecem válidos,mas são suspensos durante o estado de exceção, pois a sua aplicação ameaça a estabilidade do poder vigente.

A segunda alteração provocada pelo estado de exceção é a formação de uma espécie de amalgama dos três poderes[10]. Legislativo, Executivo e Judiciário acabam por, de certa forma, fundir-se em um único poder durante o estado de exceção. Não obstante, dentre os três poderes, há certa predominância do poder executivo sobre os demais – o qual irá, inclusive, exercer funções estranhas ao seu campo de competência, como, por exemplo, a função de legislar[11].

A terceira alteração provocada pelo estado de exceção na forma de governar é a adoção de medidas excepcionais para a preservação da ordem jurídica; medidas que, por vezes, terão um significado imediatamente biopolítico[12]. Assim, durante a vigência dessa forma de governo, o poder soberano poderá praticar um ato ilícito em detrimento do cidadão ou da sociedade sem que tal ato seja considerado inválido. Face às circunstâncias fáticas que ameaçam a ordem estabelecida, o Estado está autorizado a praticar atos irregulares, que possam por ventura mitigar direitos individuais ou sociais. Como estaríamos inseridos em um contexto fático anormal e extraordinário, a prática de atos contra legem não seria considerada irregular ou ilegal, vez que as condições “anormais de pressão e temperatura”autorizariam a tomada de medidas excepcionais por parte do Estado, para que ele possa justamente assegurar a preservação do ordenamento jurídico-político ameaçado[13].

Assim, em resumo, o estado de exceção seria provocado por um contexto fático tumultuoso[14], o qual ameaça a ordem vigente e, por conta disto, exige que o poder soberano tome providências para protegê-la. Todas essas características fariam, portanto, do estado de exceção uma forma de governo bastante perigosa e imprecisa, por detrás da qual poderíamos encontrar pensamentos ideológicos de satanização ou de canonização[15]. Por conta disto, ela deveria ser utilizada pelo poder vigente com parcimônia e apenas em casos excepcionais. Entrementes, e aqui entra a peculiaridade do pensamento de Agamben, o estado de exceção nas últimas décadas teria deixado de ser uma exceção para se tornar a regra, revelando-se um modo corriqueiro de se governar(B).

B) A exceção que virou regra

Segundo o professor italiano, o estado de exceção nas últimas décadas passou a ser o “paradigma dominante na política contemporânea”[16], deixando de ser uma forma pontual de governo para se tornar o cotidiano da política governamental.

De acordo com o escólio de Agamben, a origem desse fenômeno de normalização do estado de exceção está na Alemanha do entre guerras. Durante um longo período, o Estado alemão aplicou um regime excepcional de governo, o qual estava previsto no art. 48 da Constituição de Weimer. Desde então, e partir de tal exemplo, o estado de exceção deixou de ser uma medida excepcional para se tornar uma técnica de governo, uma prática duradoura que se encontra presente em diversos estados contemporâneos[17].

Portanto, ainda segundo Agamben, haveria na atualidade um paradigma governamental guiado pela aplicação da medida excepcional. Certo,essa forma de governar não se autonomearia estado de exceção -no entanto, apesar da fraude de etiquetas[18], ela possuiria características inerentes à ele, tais como: a suspensão de direitos e garantias; a sobreposição do poder executivo sobre os demais; a tomada de medidas excepcionais para se manter a ordem; e a existência de um contexto fático político de instabilidade permanente.

Aliás, com relação a esta última característica, Agamben chega a afirmar que o poder vigente, a forma de governo atual, alimenta a existência de crises econômicas e sociais no seio da sociedade para, justamente, poder justificar a tomada de medidas excepcionais em desfavor dos cidadãos[19]. E é nesse ponto que o pensamento do filósofo italiano nos causa espécie. Seria possível que, efetivamente, estivéssemos a viver sob a égide de um estado de exceção? O estado de exceção poderia existir em meio ao ambiente democrático nos quais pensamos estar inseridos?

De acordo com Agamben, poderíamos responder positivamente às duas interrogações, isto porque a medida excepcional, contrariamente ao que podemos imaginar, encontra-se a meio caminho da tradição democrática e da tradição absolutista[20]. Assim sendo, elaestá ancorada numa zona cinzenta a qual pode muito bem conviver com a democracia contemporânea, apesar de consubstanciar na prática medidas ditatoriais.

A tempo, quando analisamos algumas práticas governamentais, seja no Brasil, seja em ordenamentos estrangeiros, percebemos que efetivamente a política governamental atual, por vezes, acaba por praticar atos típicos de um estado de exceção, apesar de não os nominá-los desta forma. Talvez o paradigma de governo contemporâneo não possa ser visto como um estado de exceção em sua integralidade,não obstante, encontramos nele, ainda que momentaneamente, medidas típicas de uma tal forma de governar (II).

II – A APLICAÇÃO DO PENSAMENTO DE AGAMBEN NA REALIDADE CONTEMPORÂNEA

Localizar um respaldo prático para a teoria de AGAMBEN não é tarefa das mais difíceis. Podemos visualizá-lo tanto na realidade brasileira (A), como na realidade estrangeira – notadamente em países da União Europeia como a França (B).

A) Brasil: o tráfico de drogas e a ocupação do complexo da Maré

A luta contra o narcotráfico é há muito tempo um sério problema político criminal brasileiro. Não é de hoje que o Estado busca combater esse tipo de delinquência. No entanto, os resultados têm se mostrado pouco expressivos[21]. Não sem razão, o tráfico de drogas e infrações conexas, tais como roubos, sequestros e extorsões, causam uma crise de insegurança muito grande na população brasileira e demandam uma atuação ativa do Estado na resolução desse problema social. Diante desse quadro, em 2014, a União, face achegada de eventos esportivos internacionais no país, acabou por requisitar, com base no art. 142 da Constituição, o apoio das Forças Armadas no combate ao tráfico de drogas[22].

Para levar a efeito o pedido, foi então montada pelos militares a “operação de garantia da lei e da ordem”[23]. Tal operação possuía o escopo de “fazer cessar” a prática de ilícitos inerentes ao tráfico de drogas no Rio de Janeiro, por intermédio da pacificação de diversas comunidades cariocas. Para atingir a finalidade almejada, as Forças Armadas requereram junto à Justiça Militar a expedição de um mandado de busca e apreensão coletivo, autorizando a entrada do poder coator em todas as casas localizadas no complexo da Maré. Na prática, isso significava que um único mandado de busca e apreensão, genérico e sem fundamentação individualizada, conferia ao braço armado do Poder Executivo a permissão de, discricionariamente, adentrar na moradia de aproximadamente trinta mil moradores do referido complexo. A medida, além de chamar a atenção, guarda muitas semelhanças com as práticas de um governo excepcional. Por tal razão, poderíamos nos perguntar se um tal episódio não consubstanciaria na realidade brasileira o pensamento teórico de Giorgio Agamben. Vejamos.

A exemplo do estado de exceção, também encontramos no Estado brasileiro um fator social que cria certa instabilidade securitária capaz de colocar em xeque a vigência do ordenamento jurídico-político. Nesse contexto, o narcotráfico irá engendrar na população um temor e uma crise generalizada – a qual poderá abalar o poder vigente em razão do desrespeito reiterado das normas penais e por conta da falência do Estado em cumprir o seu dever de garantir a segurança dos cidadãos. Em razão de tal crise, o Estado brasileiro se vê autorizado a realizar uma “operação de garantia da lei e da ordem” para, justamente, assegurar o respeito do ordenamento jurídico-político vigente.

 Para tanto, o Estado não suspendeu toda a ordem jurídica, mas sim uma parte dela, notadamente a que prevê o direito constitucional de inviolabilidade do domicílio[24]. Ou seja, ante um fator social de abalo, o Estado afastou a aplicação de tal direito individual para, com isto, tentar restabelecer o respeito ao ordenamento jurídico-político. O raciocínio é paradoxal: para fazer valer o ordenamento, deixamos de aplicá-lo. Nesse contexto, o direito à inviolabilidade do domicílio continua vigente, mas ele será suspenso com relação a alguns cidadãos, em especial com relação àqueles que, voluntariamente ou involuntariamente, estão permeados pelo fator social que abala a ordem: o narcotráfico.

Mas, o que chama atenção em tal medida, e aqui encontramos uma terceira similitude com o raciocínio proposto por Agamben, é que a suspensão desta fração do ordenamento jurídico é realizada por intermédio de um mandado de busca e apreensão coletivo e genérico. Assim sendo, o Estado age em tal evento de forma ilícita e irregular não só à luz do art. 93, inciso IX, da Constituição[25], como também à luz do art. 240 do Código de Processo Penal[26]. Não obstante, a medida resta, em princípio, justificada por conta do abalo social que a motiva.Portanto, trata-se de verdadeira medida de exceção – alheia à vigência da ordem jurídica nacional e análoga as formas de agir inerentes a governos excepcionais.

Em seguida, há um quarto fator de semelhança entre a realidade brasileira e a teoria do estado de exceção. Ao conferir um mandado de busca e apreensão coletivo e genérico ao braço armado do Poder Executivo, o Poder Judiciário confere a este uma liberdade de atuação – a qual será responsável por engendrar um amalgama entre os Poderes;isto porque ao mesmo tempo que os militares executam o mandato, eles possuem o poder discricionário de adentrar na residência de qualquer pessoa, ou seja, são os juízes soberanos da conveniência ou não de se desrespeitar a inviolabilidade do domicílio dos moradores do complexo da Maré.Portanto, por intermédio de uma “carta branca” de busca e apreensão, o Poder Executivo acaba por se sobrepor ao Poder Judiciário, recebendo a outorga de um poder de decisão que permite verdadeiro ativismo do Executivo.

Portanto, a similitude entre o ocorrido no complexo da Maré e a teoria proposta por Agamben causa espécie, ainda mais quando percebemos que tais medidas de exceção não estão restritas a um único ordenamento jurídico-político(B).
          
B) França: o terrorismo e a lei Cazeneuve

Na França, o terrorismo tem sido objeto de um amplo debate no cenário político-jurídico. Trata-se de um fenômeno criminológico que, a exemplo do tráfico de drogas, ameaça a ordem soberana vigente. Em primeiro lugar, porque é responsável por causar uma grave crise securitária na sociedade, vez que é cometido através de atos que buscam causar o terror ou a intimidação na população[27]. Em segundo lugar, porque muitas vezes tais atos de terrorismo são realizados justamente para contestar a adoção de determinadas medidas pelo poder soberano, como, por exemplo, medidas inerentes a política de liberdade de imprensa.

Diante desse fator social que abala o ordenamento jurídico-político, a França, em 13 de novembro de 2014, promulgou a Lei Cazeneuve. Referido diploma legal reforçou a luta contra o terrorismo através de diversas medidas que poderiam ser consideradas como inerentes a uma forma de governo excepcional. Dentre elas, uma em especial guarda bastante semelhança com a teoria de Agamben: a interdição administrativa de saída do território francês.

De acordo com o art. L. 224-1 do Código de Segurança do Interior, o qual foi modificado pela aludida lei, “todo cidadão francês pode ser objeto de uma interdição de saída do território nacional quando sua saída poderá acarretar em: 1º um deslocamento ao estrangeiro para a prática de atividades terroristas; 2º um deslocamento ao estrangeiro para o treinamento na prática terrorista, o qual pode implicar na realização de um ato terrorista quando do retorno do cidadão em questão para o território francês”. Ainda de acordo com o referido artigo, a interdição de saída do território francês deve ser pronunciada por via de um decreto ministerial, a ser prolatado pelo Ministro do Interior (representante do poder executivo), e poderá ter a duração de até seis meses, prorrogável por um período máximo de dois anos. Portanto, trata-se de uma medida não ordinária que se adequa a uma técnica governamental de exceção, e isto por variegadas razões.

À partida, porque aqui também tem-se um fator social que abala o poder soberano vigente, o qual vai implicar na suspensão temporária de uma parte do ordenamento jurídico: o terrorismo. Em razão desse fator social, o poder soberano irá suspender o direito constitucional de ir e vir do cidadão francês[28] para, com isto, assegurar que nenhum ato terrorista vindouro possa colocar em xeque o ordenamento jurídico-político. Ou seja, assim como no estado de exceção, suspender-se-á uma parte do ordenamento jurídico para, justamente, garantir que o fator de comoção social em questão não tenha o condão de abalá-lo; o direito de ir e vir continuará válido, mas ele será momentaneamente suspenso.

Em seguida, porque, no caso em comento,realiza-se a suspensão de tal direito por intermédio de uma medida excepcional – a qual poderia ser considerada ilícita, mas que, em razão do contexto fático no bojo do qual é pronunciada, acaba sendo vista como válida pelo ordenamento jurídico-político e pela sociedade. De outra forma: em razão do pânico e da intimidação causados pelo terrorismo, o Estado realiza uma medida típica de paradigmas governamentais ditatoriais, impedindo a livre locomoção do cidadão para além das fronteiras de seu país;entretanto, por causa do fator social autorizador, a conduta estatal vai ser tida como regular e legítima.

Por fim, há ainda uma quarta semelhança entre tal medida e a teoria de Agamben: a prevalência do Poder Executivo sobre os demais poderes. De acordo com a Lei Cazeneuve, o órgão competente para decretar e executar a interdição de saída do território francês é o Ministro do Interior. Por tal razão, pode-se dizer que a lei confere ao Poder Executivo a capacidade plena de, a seu critério, proibir a saída de um cidadão francês do território de seu país. Em outras palavras, o Poder Executivo terá aqui uma nova “carta branca” para aplicar, quando bem entender, a medida excepcional que suspende a vigência do direito de ir e vir.

Assim sendo, pode-se dizer que estamos aqui novamente diante de mais um exemplo que consubstancia na prática a teoria de Agamben. Trata-se, portanto, de uma medida excepcional que guarda ampla similitude com as práticas presentes em um estado de exceção. Esses dois exemplos, no Brasil e na França, nos levam a breves propósitos conclusivos sobre o tema.

BREVES PROPÓSITOS CONCLUSIVOS 

A partir da análise de tais exemplos, acabamos percebendo que a teoria de Agamben possui respaldo prático, podendo ser demonstrada através de certas medidas excepcionais levadas a efeito pelos Estados contemporâneos, como a expedição de mandados de busca e apreensão genéricos e coletivos ou a possibilidade de se interditar a saída de um cidadão do território de seu país.

A dúvida, porém, subsiste para se saber se tais exemplos são práticas pontuais que podem ser assimiladas a um estado de exceção, ou se são em verdade manifestações explícitas de um paradigma governamental guiado em sua essência e integralidade por uma técnica excepcional de governo. A resposta para uma tal interrogação é ainda mais difícil de ser encontrada quando temos em conta o fato de que tais práticas estatais não são nominadas como medidas de exceção, nem são prolatadas sob a égide formal de um estado de exceção. Por tal razão, a fraude de etiquetas torna ainda mais difícil a leitura do atual paradigma de governo dominante na política contemporânea.

Para Agamben, entretanto, isto não é um problema, vez que o filosofo italiano conclui pela segunda opção, ou seja, pela assertiva de que o paradigma de governo atual é sim o de um estado de exceção. Seria correta esta afirmação ou seria ela o fruto de um exagero, o qual vê numa prática governamental pontual e isolada a essência do modelo de Estado contemporâneo? Desafortunadamente, apenas o tempo parece ser capaz de responder tal indagação. Até que isto ocorra podemos afirmar que, com relação a algumas medidas pontuais consubstanciadas pelos Estados hodiernos, Agamben tem razão em seu discurso.


Tracy Reinaldet
Mestre em Direito Penal e Ciências Criminais pela Universidade de Toulouse I Capitole
Doutorando em Direito Penal pela Universidade de Toulouse I Capitole, em co-tutela com a Universidade Federal do Paraná
Advogado Criminal

Notas:

[1]AGAMBEN, G.Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

[2] “É importante não esquecer que o estado de exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição absolutista”. AGAMBEN, op. cit., p. 16.

[3] No Brasil, nosso legislador constituinte não faz uso da nomenclatura estado de exceção. Entretanto, podemos considerar que as medidas previstas nos artigos 136 e 137 da Constituição (estado de defesa e estado de sítio, respectivamente) são inerentes a uma forma de governar bastante análoga a do estado de exceção.

[4] Sobre a relação do pensamento de Agamben com a teoria de Carl Schmitt vide BIGNOTTO, Newton. Soberania e exceção no pensamento de Carl Schmitt, disponível no sítio eletrônico:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2008000200007, acessado em 04/08/2015, às 10:00 horas.

[5]AGAMBEN, op. cit., p. 85.

[6]Idem, p. 38.

[7]Idem, p. 45.

[8]Idem, p. 40.

[9]Idem, p. 48.

[10] “Uma das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário”. AGAMBEN, op. cit., p. 19.

[11] A medida provisória, prevista no artigo 62 da Constituição é um bom exemplo – isso porque ela é um ato unipessoal do Presidente da República que possui força de lei, apesar de não envolver num primeiro momento a participação do poder legislativo em sua confecção. Trata-se, portanto, do exercício da prerrogativa de legislar por um poder que não possui, em princípio, tal função. Não sem razão, alguns autores defendem a ideia de que as “intervenções abusivas de medidas provisórias” no Brasil poderia ser um sintoma de que vivemos, ainda que esporadicamente, um estado de exceção na realidade governamental brasileira. FONSECA, Ricardo Marcelo. Estado de Exceção (resenha)in Revista da Faculdade de Direito da UFPR, 2004, nº 41, p. 171/174.

[12]AGAMBEN, op. cit., 14.

[13]Idem., p. 41. Poderíamos traçar um paralelo entre o estado de exceção e o estado de necessidade, previsto como causa justificadora de um ilícito penal (art. 23, inc. I, do Código Penal). Seria o estado de exceção o estado de necessidade do ente estatal?

[14] No direito romano,  o iustitium, arquétipo do moderno Ausnahmezustand, era prolatado com base num decreto do senado que declarava o tumultus, isto é, uma situação de emergência provocada por uma guerra externa, uma insurreição ou uma guerra civil. AGAMBEN,op. cit., p. 67.

[15] GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes.Para GiogioAgamben há perigo que estado de exceção torne-se regra. Disponível no sítio eletrônico:http://www.conjur.com.br/2014-set-21/embargos-culturais-giorgio-agamben-perigo-estado-excecao-torne-regra, acessado em 08/07/2015, às 14:34.

[16]AGAMBEN, op. cit., p.13.

[17]Ibid.

[18] “Nos Estados contemporâneos, muitas vezes, o estado de exceção é decretado sem ser chamado por qualquer nome e, nesse sentido, podemos falar de medidas de exceção”. ROCHA DE OLIVEIRA, Pedro.Estado de exceção: o que é, e para que serve. Disponível no sítio eletrônico: http://blogdaboitempo.com.br /2013/12/20/ estado-de-excecao-o-que-e-e-para-que-serve/, acessado no dia 08/07/2015, às 20:12.

[19] Em entrevista concedida à televisão grega, Agamben afirma que “o governo de hoje não quer mais manter a ordem, mas quer governar na desordem”. A entrevista está disponível no seguinte sítio eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=skJueZ52948.

[20]AGAMBEN, op. cit., p.13.

[21] CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

[22]A requisição ocorreu por via da Diretriz Ministerial nº 9/2014.

[23] De acordo com o Manual MD33-M-10 do Ministério da Defesa, “operação de Garantia da Lei e da Ordem (op GLO) é uma operação militar determinada pelo Presidente da República e conduzida pelas Forças Armadas de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem”.

[24] Tal direito fundamental está previsto no art. 5, inc. XI, da Constituição.

[25] O qual prevê a obrigatoriedade de fundamentação de toda decisão judicial.

[26]De acordo com referido dispositivo, a busca e apreensão domiciliar só poderá ocorrer de maneira fundamentada e justificada e deverá ter escopo determinado e restrito.

[27] De acordo com o art. 421-1 do Código Penal francês, “Constituem atos de terrorismo os abaixo listados que, intencionalmente, através de uma empreitada individual ou coletiva, possuem por objetivo abalar gravemente a ordem pública através da intimação ou do terror”. Em seguida aocaput, referido artigo trás uma lista dos atos que podem ser considerados como crime de terrorismo.

[28] Como a Constituição francesa, diferentemente da brasileira, não possui o escopo de traçar uma lista de direitos fundamentais e sociais do cidadão, vez que se trata de um diploma legal que visa a organização do poder vigente e não a enumeração de todos os direitos constitucionais, é o Conselho Constitucional francês que, por intermédio de sua jurisprudência,consagra o caráter constitucional do direito de ir e vir. Ele o fez pela primeira vezem uma de decisão de 12 de julho de 1979, quando se pronunciou sobre a constitucionalidade da lei relativa às praças de pedágio.  

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