"Um governo não eleito
e um Congresso desmoralizado, contando com grande banda de
música na imprensa, formarão um rolo compressor sobre a
cidadania, impondo mudanças regressivas no meio de uma crise
social já enorme. Não sabemos para onde isso vai nos levar."
César Benjamin
Revista Piauí, maio de 2016
Meus amigos estranharam quando eu disse que me opunha à
aceitação, pela Câmara dos Deputados, da admissibilidade do
impedimento de Dilma Rousseff, que agora será objeto de
apreciação no Senado. Sempre fui crítico aos governos do PT e
considero a presidente uma figura lamentável sob todos os
pontos de vista. Além disso, ao contrário do que dizem os
governistas, não creio que as regras da democracia estejam em
risco.
Os motivos jurídicos para o impedimento podem ser
considerados suficientemente fortes ou não, mas existem.
Somam-se, é claro, a motivos políticos.
Oponho-me ao processo em curso por causa dos
desdobramentos que ele terá: um governo não eleito encontrará
pronta uma maioria parlamentar qualificada – apta, pois, a
alterar a Constituição –, articulada sabe-se lá de que forma,
aberta a todo tipo de negociações e ávida para repartir o novo
poder. Será um salto no escuro.
O programa apresentado há
pouco tempo pelo PMDB, intitulado “Ponte para o futuro”,
antecipa que diversos dispositivos constitucionais, como as
despesas obrigatórias em educação e saúde, a indexação dos
benefícios da Seguridade Social ao salário mínimo e o estatuto
do Banco Central, serão questionados. Também será
questionada a CLT, pois, a depender do PMDB, os acordos
diretos entre patrões e empregados terão mais valor do que
aquilo que as leis determinam.
O mesmo texto promete uma
política econômica conservadora puro-sangue, sem as
ambiguidades do PT, o que inclui um corte drástico nas despesas
de custeio para obter superávit nominal (e não apenas primário)
nas contas do setor público. Chega a ser difícil imaginar o
significado disso. É uma meta praticamente impossível.
O golpe, em curso, não será o afastamento de Dilma Rousseff.
Será a formação de um governo comprometido com um
programa que muito dificilmente seria aceito pelo povo
brasileiro nas urnas.
Estaremos expostos a um intenso fogo de
barragem, com o mesmo grupo de economistas apresentando
sua versão, reiteradamente, de modo a legitimar pela imprensa
alterações constitucionais importantes, patrocinadas por um
governo não eleito e realizadas por um Congresso que já perdeu
legitimidade aos olhos da população.
O debate que veremos será
apenas um simulacro.
O impedimento mimetizará uma eleição indireta. Aqui
desembocou a esperteza política do PT e de Lula, tão enaltecida
nos últimos anos. Foram eles que se juntaram a figuras
lombrosianas e lhes deram tanto poder.
* * *
Seja qual for o governo, o padrão de gastos do Estado – e,
portanto, sua relação com a sociedade – precisará ser revisto em
uma dimensão que ultrapassa muito as desastradas tentativas de
ajuste que estão em curso desde janeiro do ano passado.
A atual
configuração desses gastos e o nível de consumo a que a
sociedade se acostumou na última década não são compatíveis
com um crescimento econômico sustentado, com relativo
equilíbrio nas contas fiscais e externas. Empurramos o problema
para frente durante alguns anos, à custa de aumentar
endividamentos. É certo que esse tempo acabou. Mas há
diferentes maneiras de lidar com a questão, e não uma só.
Aumentar juros e provocar recessão não é uma delas.
Entre os grandes gastos do Estado destacam-se a Seguridade
Social, que cuida dos pobres, e a rolagem da dívida pública, que
cuida dos ricos. Juntas, representam nada menos que 22% do
PIB.
Apesar de sua importância, são dois temas em que a
desinformação predomina. Vale a pena olhar para eles.
A dívida pública ultrapassou R$ 3 trilhões. Diante da enormidade
desse número, é fácil convencer as pessoas de que o Estado é
irresponsável, gasta muito mais do que arrecada e por isso se
endivida pesadamento junto ao setor privado, sugando recursos
que poderiam se destinar ao investimento. Isso justitifica os
cortes draconianos anunciados, que seriam necessários para que
possamos juntar recursos para pagar essa dívida. É a economia
política da dona de casa, completamente intuitiva.
Se ela fosse
verdadeira, as faculdades de economia poderiam fechar.
Dívidas públicas existem no mundo inteiro porque são um
recurso legítimo dos Estados nacionais. Como os investimentos
feitos hoje beneficiam as gerações futuras, é justo que elas
repartam os custos com as gerações atuais. Quando bem
realizados, esses investimentos estimulam o crescimento
econômico e assim contribuem para aumentar a capacidade de
arrecadação de tributos, equilibrando as contas num momento
seguinte.
Além disso, a dívida é essencial para que o Estado possa fazer
política econômica.
Uma economia não pode funcionar direito
nem com moeda demais nem com moeda de menos. A compra e
venda de títulos é o mecanismo que permite que a autoridade
monetária regule a liquidez em cada momento: ela compra
títulos para colocar moeda em circulação e vende títulos para
obter o efeito oposto, o que nada tem a ver com Estado
perdulário.
A dívida interna, que foi ao chão depois do confisco de Collor no
início da década de 1990, não voltou a crescer porque o Estado
tenha gastado mais do que arrecadou, até mesmo porque em
quase todos os anos, desde então, ocorreu o contrário.
A regra é
que o Estado brasileiro tenha superávit, quando consideradas
receitas e despesas não financeiras. A dívida cresceu por
mecanismos inerentes à política monetária do próprio Banco
Central, obrigado a vender títulos sistematicamente para
esterilizar a grande quantidade de capital atraído pelos juros
altos que o Brasil oferece. Há muitos anos o Banco Central age
de um modo que transforma uma crise cambial potencial em
uma crise fiscal real. O resultado negativo dessa política aparece
como déficit do Tesouro, misturado com a contabilidade geral do
Estado.
Nenhuma dívida pública do mundo jamais será paga. Por isso,
não há um limite fixo para elas (o Japão deve 230% do seu PIB,
os Estados Unidos, 104%). Seu tamanho só é relevante na
medida em que influencia os custos e as condições de sua
rolagem em cada momento. A dívida brasileira não é
especialmente alta, como percentagem do PIB (cerca de 67%),
mas é muito cara. Além disso, as trapalhadas de Dilma Rousseff
aceleraram seu crescimento, o que, de fato, inspira cuidados,
pelos custos crescentes que isso acarreta.
Mas é essencial não perder de vista que dívida pública não é
igual a dívida privada. Nem os governos vão pagá-la nem os
credores querem recebê-la, pois ambos precisam dela. Se o
Arcanjo Gabriel, atendendo aos pedidos da esquerda, descesse
do céu com sua espada de fogo e zerasse a nossa dívida
precisaríamos criar outra imediatamente.
* * *
Os títulos públicos brasileiros são hiperindexados e recebem
generosos juros reais. Negociados diariamente, são um ente
híbrido, uma dessas jabuticabas que só existem aqui: rendem
como se fossem uma poupança premiada, mas têm a mesma
liquidez da moeda. Isso é uma anomalia evidente.
Contraria os
fundamentos de todas as escolas de pensamento econômico.
Nossa economia funciona com dois tipos de moeda: a comum, à
qual todos têm acesso e que se desvaloriza no ritmo da inflação,
e a financeira, que, além de protegida, dá lucro certo, sem passar
pelas operações da economia real. Nessas condições, será
mesmo que o setor privado financia o governo ou ocorre
justamente o contrário? Quem, afinal, financia quem?
O problema, como se vê, não está só no nível da taxa de juros,
mas no próprio regime de política monetária que predomina no
Brasil. Isso custa 8% do PIB, sem gerar gritarias. O que tira o sono
dos conservadores é o salário mínimo pago aos aposentados. É aí
que querem desindexar, em nome do equilíbrio financeiro do
setor público, ameaçado pelo alegado déficit da Seguridade
Social. Também aqui a confusão predomina, pois há números
para todos os gostos.
O grande acordo civilizatório inscrito na Constituição de 1988 foi
a formação de um sistema de Seguridade com três
componentes: saúde pública (amparo universal aos doentes),
assistência social (amparo a portadores de deficiência e a
pessoas em situações de risco social) e previdência (amparo aos
que ultrapassaram o período de vida laborativa). Esse sistema,
que o programa apresentado pelo PMDB quer desmontar, é o
coração do pacto social brasileiro contemporâneo.
Por sua
extensão, capilaridade e profundidade, provavelmente é o
principal motivo da nossa relativa estabilidade social. Justamente
por isso, é caro: custa 14% do PIB.
Os dois primeiros componentes da Seguridade correspondem a
direitos líquidos de cidadania. Como tal, não contam com
receitas próprias, sendo financiados pelos tributos que os
constituintes criaram para esse fim (as contribuições sociais).
Não se aplica nesses casos o conceito de déficit (ninguém diz, por
exemplo, que uma escola pública, que oferece ensino gratuito, é
“deficitária”; tampouco se pode dizer isso de um hospital público
ou da asisstência a uma pessoa pobre e portadora de uma
deficiência grave). Só o terceiro componente da Seguridade, a
previdência propriamente dita, gera receitas próprias.
Mesmo assim, a Seguridade oscila entre déficit e superávit, ano a
ano, a depender das condições gerais do país.
Contra seu
equilíbrio atua a Desvinvulação das Receitas da União,
mecanismo que permite que o governo não aplique nela uma
parte dos tributos que são recolhidos em seu nome e que
acabam desviados para o pagamento de juros.
Além disso, há as desonerações fiscais para diversos setores do
empresariado, que atingiram R$ 158 bilhões em 2015. É uma
esquizofrenia: abre-se mão de receitas com facilidade e ao
mesmo tempo denuncia-se a existência de um déficit.
A Previdência, especificamente, tem cerca de 32 milhões de
beneficiários, com rendimentos médios de R$ 1.036,00. É muito
difícil prever sua evolução, pois as variáveis decisivas para seu
equilíbrio financeiro de longo prazo não estão situadas dentro
dela, mas na economia como um todo: a evolução do emprego
formal, o patamar de salários, a produtividade dos trabalhadores
ativos etc. É justo rever abusos e privilégios, onde eles existem, e
prudente adotar medidas para adaptar o sistema ao novo perfil
demográfico brasileiro – aumentando a idade para as
aposentadorias, por exemplo –, mas nada disso pode servir de
pretexto para um desmonte selvagem.
Há um bom debate a ser feito, de preferência com o máximo de
objetividade, envolvendo um espectro de alternativas muito
mais amplo do que normalmente se vê. Mas, pelo andar da
carruagem, não haverá debate nenhum. Um governo não eleito
e um Congresso desmoralizado, contando com grande banda de
música na imprensa, formarão um rolo compressor sobre a
cidadania, impondo mudanças regressivas no meio de uma crise
social já enorme. Não sabemos para onde isso vai nos levar.
* * *
Estamos diante de uma escolha de Sofia: se Dilma Rousseff, por
milagre, sobreviver ao impedimento, continuaremos sujeitos a
um não-governo. Se Michel Temer assumir, teremos um governo
hostil à construção da nação. O problema, pois, não é que as
regras formais da democracia estejam em perigo. De certa
forma, é justamente o oposto: estamos às vésperas de um grave
retrocesso social e civilizatório tornado possível pelo desastre do
PT e o competente manejo daquelas regras pela oposição.
A dimensão de longo prazo da crise atual é ainda mais grave:
estamos assistindo ao fim de um ciclo longo da vida política e
institucional brasileira, inaugurado na década de 1980. O arranjo
então construído acabou. As discussões sobre se Dilma voltará
ao poder ou se Lula concorrerá em 2018 são bizantinas. O tempo
deles passou. Precisaremos, em algum momento, criar novos
atores e novas instituições, mas estamos longe de saber fazer
isso. Agora vem a anomia.
O sonho do Brasil-nação, que floresceu no século XX, pode estar
terminando, ou, pelo menos, sendo colocado em suspenso por
longo tempo. Presos em nosso labirinto de mediocridade,
incapazes de realizar um esfoço endógeno minimamente
coerente, desprovidos de forças nacionais renovadoras,
caminhamos para estacionar em nosso lugar natural no sistemamundo,
a mais extrema periferia. O PT não consegue ver isso,
pois, apesar de ter alguma sensibilidade social, nunca pensou a
nação.
A solução menos ruim, no curto prazo, é que o TSE casse a chapa
Dilma-Temer, pelas ilegalidades cometidas durante o processo
eleitoral. A convocação de novas eleições propiciaria dois ganhos
para o país: a realização de um debate de grande intensidade,
que ajudaria a explicitar as questões de fundo, e a formação de
um novo governo legítimo, seja ele qual for. Precisamos, pelo
menos, deter a marcha da insensatez.
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