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O verdadeiro desafio não é inserir uma idéia nova na mente militar, mas sim expelir a idéia antiga" (Lidell Hart)
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sábado, 21 de maio de 2016

O golpe é outro

"Um governo não eleito e um Congresso desmoralizado, contando com grande banda de música na imprensa, formarão um rolo compressor sobre a cidadania, impondo mudanças regressivas no meio de uma crise social já enorme. Não sabemos para onde isso vai nos levar."



César Benjamin Revista Piauí, maio de 2016 


Meus amigos estranharam quando eu disse que me opunha à aceitação, pela Câmara dos Deputados, da admissibilidade do impedimento de Dilma Rousseff, que agora será objeto de apreciação no Senado. Sempre fui crítico aos governos do PT e considero a presidente uma figura lamentável sob todos os pontos de vista. Além disso, ao contrário do que dizem os governistas, não creio que as regras da democracia estejam em risco. 

Os motivos jurídicos para o impedimento podem ser considerados suficientemente fortes ou não, mas existem. Somam-se, é claro, a motivos políticos. Oponho-me ao processo em curso por causa dos desdobramentos que ele terá: um governo não eleito encontrará pronta uma maioria parlamentar qualificada – apta, pois, a alterar a Constituição –, articulada sabe-se lá de que forma, aberta a todo tipo de negociações e ávida para repartir o novo poder. Será um salto no escuro. 

O programa apresentado há pouco tempo pelo PMDB, intitulado “Ponte para o futuro”, antecipa que diversos dispositivos constitucionais, como as despesas obrigatórias em educação e saúde, a indexação dos benefícios da Seguridade Social ao salário mínimo e o estatuto do Banco Central, serão questionados. Também será questionada a CLT, pois, a depender do PMDB, os acordos diretos entre patrões e empregados terão mais valor do que aquilo que as leis determinam. 

O mesmo texto promete uma política econômica conservadora puro-sangue, sem as ambiguidades do PT, o que inclui um corte drástico nas despesas de custeio para obter superávit nominal (e não apenas primário) nas contas do setor público. Chega a ser difícil imaginar o significado disso. É uma meta praticamente impossível. O golpe, em curso, não será o afastamento de Dilma Rousseff. Será a formação de um governo comprometido com um programa que muito dificilmente seria aceito pelo povo brasileiro nas urnas. 

Estaremos expostos a um intenso fogo de barragem, com o mesmo grupo de economistas apresentando sua versão, reiteradamente, de modo a legitimar pela imprensa alterações constitucionais importantes, patrocinadas por um governo não eleito e realizadas por um Congresso que já perdeu legitimidade aos olhos da população. 

O debate que veremos será apenas um simulacro. O impedimento mimetizará uma eleição indireta. Aqui desembocou a esperteza política do PT e de Lula, tão enaltecida nos últimos anos. Foram eles que se juntaram a figuras lombrosianas e lhes deram tanto poder. * * * Seja qual for o governo, o padrão de gastos do Estado – e, portanto, sua relação com a sociedade – precisará ser revisto em uma dimensão que ultrapassa muito as desastradas tentativas de ajuste que estão em curso desde janeiro do ano passado. 

A atual configuração desses gastos e o nível de consumo a que a sociedade se acostumou na última década não são compatíveis com um crescimento econômico sustentado, com relativo equilíbrio nas contas fiscais e externas. Empurramos o problema para frente durante alguns anos, à custa de aumentar endividamentos. É certo que esse tempo acabou. Mas há diferentes maneiras de lidar com a questão, e não uma só. Aumentar juros e provocar recessão não é uma delas. Entre os grandes gastos do Estado destacam-se a Seguridade Social, que cuida dos pobres, e a rolagem da dívida pública, que cuida dos ricos. Juntas, representam nada menos que 22% do PIB. 

Apesar de sua importância, são dois temas em que a desinformação predomina. Vale a pena olhar para eles. A dívida pública ultrapassou R$ 3 trilhões. Diante da enormidade desse número, é fácil convencer as pessoas de que o Estado é irresponsável, gasta muito mais do que arrecada e por isso se endivida pesadamento junto ao setor privado, sugando recursos que poderiam se destinar ao investimento. Isso justitifica os cortes draconianos anunciados, que seriam necessários para que possamos juntar recursos para pagar essa dívida. É a economia política da dona de casa, completamente intuitiva. 

Se ela fosse verdadeira, as faculdades de economia poderiam fechar. Dívidas públicas existem no mundo inteiro porque são um recurso legítimo dos Estados nacionais. Como os investimentos feitos hoje beneficiam as gerações futuras, é justo que elas repartam os custos com as gerações atuais. Quando bem realizados, esses investimentos estimulam o crescimento econômico e assim contribuem para aumentar a capacidade de arrecadação de tributos, equilibrando as contas num momento seguinte. Além disso, a dívida é essencial para que o Estado possa fazer política econômica. 

Uma economia não pode funcionar direito nem com moeda demais nem com moeda de menos. A compra e venda de títulos é o mecanismo que permite que a autoridade monetária regule a liquidez em cada momento: ela compra títulos para colocar moeda em circulação e vende títulos para obter o efeito oposto, o que nada tem a ver com Estado perdulário. A dívida interna, que foi ao chão depois do confisco de Collor no início da década de 1990, não voltou a crescer porque o Estado tenha gastado mais do que arrecadou, até mesmo porque em quase todos os anos, desde então, ocorreu o contrário. 

A regra é que o Estado brasileiro tenha superávit, quando consideradas receitas e despesas não financeiras. A dívida cresceu por mecanismos inerentes à política monetária do próprio Banco Central, obrigado a vender títulos sistematicamente para esterilizar a grande quantidade de capital atraído pelos juros altos que o Brasil oferece. Há muitos anos o Banco Central age de um modo que transforma uma crise cambial potencial em uma crise fiscal real. O resultado negativo dessa política aparece como déficit do Tesouro, misturado com a contabilidade geral do Estado. 

Nenhuma dívida pública do mundo jamais será paga. Por isso, não há um limite fixo para elas (o Japão deve 230% do seu PIB, os Estados Unidos, 104%). Seu tamanho só é relevante na medida em que influencia os custos e as condições de sua rolagem em cada momento. A dívida brasileira não é especialmente alta, como percentagem do PIB (cerca de 67%), mas é muito cara. Além disso, as trapalhadas de Dilma Rousseff aceleraram seu crescimento, o que, de fato, inspira cuidados, pelos custos crescentes que isso acarreta. 

Mas é essencial não perder de vista que dívida pública não é igual a dívida privada. Nem os governos vão pagá-la nem os credores querem recebê-la, pois ambos precisam dela. Se o Arcanjo Gabriel, atendendo aos pedidos da esquerda, descesse do céu com sua espada de fogo e zerasse a nossa dívida precisaríamos criar outra imediatamente. * * * Os títulos públicos brasileiros são hiperindexados e recebem generosos juros reais. Negociados diariamente, são um ente híbrido, uma dessas jabuticabas que só existem aqui: rendem como se fossem uma poupança premiada, mas têm a mesma liquidez da moeda. Isso é uma anomalia evidente. 

Contraria os fundamentos de todas as escolas de pensamento econômico. Nossa economia funciona com dois tipos de moeda: a comum, à qual todos têm acesso e que se desvaloriza no ritmo da inflação, e a financeira, que, além de protegida, dá lucro certo, sem passar pelas operações da economia real. Nessas condições, será mesmo que o setor privado financia o governo ou ocorre justamente o contrário? Quem, afinal, financia quem? 

O problema, como se vê, não está só no nível da taxa de juros, mas no próprio regime de política monetária que predomina no Brasil. Isso custa 8% do PIB, sem gerar gritarias. O que tira o sono dos conservadores é o salário mínimo pago aos aposentados. É aí que querem desindexar, em nome do equilíbrio financeiro do setor público, ameaçado pelo alegado déficit da Seguridade Social. Também aqui a confusão predomina, pois há números para todos os gostos. 

O grande acordo civilizatório inscrito na Constituição de 1988 foi a formação de um sistema de Seguridade com três componentes: saúde pública (amparo universal aos doentes), assistência social (amparo a portadores de deficiência e a pessoas em situações de risco social) e previdência (amparo aos que ultrapassaram o período de vida laborativa). Esse sistema, que o programa apresentado pelo PMDB quer desmontar, é o coração do pacto social brasileiro contemporâneo. 

Por sua extensão, capilaridade e profundidade, provavelmente é o principal motivo da nossa relativa estabilidade social. Justamente por isso, é caro: custa 14% do PIB. Os dois primeiros componentes da Seguridade correspondem a direitos líquidos de cidadania. Como tal, não contam com receitas próprias, sendo financiados pelos tributos que os constituintes criaram para esse fim (as contribuições sociais). 

Não se aplica nesses casos o conceito de déficit (ninguém diz, por exemplo, que uma escola pública, que oferece ensino gratuito, é “deficitária”; tampouco se pode dizer isso de um hospital público ou da asisstência a uma pessoa pobre e portadora de uma deficiência grave). Só o terceiro componente da Seguridade, a previdência propriamente dita, gera receitas próprias. Mesmo assim, a Seguridade oscila entre déficit e superávit, ano a ano, a depender das condições gerais do país. 

Contra seu equilíbrio atua a Desvinvulação das Receitas da União, mecanismo que permite que o governo não aplique nela uma parte dos tributos que são recolhidos em seu nome e que acabam desviados para o pagamento de juros. Além disso, há as desonerações fiscais para diversos setores do empresariado, que atingiram R$ 158 bilhões em 2015. É uma esquizofrenia: abre-se mão de receitas com facilidade e ao mesmo tempo denuncia-se a existência de um déficit. 

A Previdência, especificamente, tem cerca de 32 milhões de beneficiários, com rendimentos médios de R$ 1.036,00. É muito difícil prever sua evolução, pois as variáveis decisivas para seu equilíbrio financeiro de longo prazo não estão situadas dentro dela, mas na economia como um todo: a evolução do emprego formal, o patamar de salários, a produtividade dos trabalhadores ativos etc. É justo rever abusos e privilégios, onde eles existem, e prudente adotar medidas para adaptar o sistema ao novo perfil demográfico brasileiro – aumentando a idade para as aposentadorias, por exemplo –, mas nada disso pode servir de pretexto para um desmonte selvagem. 

Há um bom debate a ser feito, de preferência com o máximo de objetividade, envolvendo um espectro de alternativas muito mais amplo do que normalmente se vê. Mas, pelo andar da carruagem, não haverá debate nenhum. Um governo não eleito e um Congresso desmoralizado, contando com grande banda de música na imprensa, formarão um rolo compressor sobre a cidadania, impondo mudanças regressivas no meio de uma crise social já enorme. Não sabemos para onde isso vai nos levar. 

 * * * 

Estamos diante de uma escolha de Sofia: se Dilma Rousseff, por milagre, sobreviver ao impedimento, continuaremos sujeitos a um não-governo. Se Michel Temer assumir, teremos um governo hostil à construção da nação. O problema, pois, não é que as regras formais da democracia estejam em perigo. De certa forma, é justamente o oposto: estamos às vésperas de um grave retrocesso social e civilizatório tornado possível pelo desastre do PT e o competente manejo daquelas regras pela oposição. 

A dimensão de longo prazo da crise atual é ainda mais grave: estamos assistindo ao fim de um ciclo longo da vida política e institucional brasileira, inaugurado na década de 1980. O arranjo então construído acabou. As discussões sobre se Dilma voltará ao poder ou se Lula concorrerá em 2018 são bizantinas. O tempo deles passou. Precisaremos, em algum momento, criar novos atores e novas instituições, mas estamos longe de saber fazer isso. Agora vem a anomia. 

O sonho do Brasil-nação, que floresceu no século XX, pode estar terminando, ou, pelo menos, sendo colocado em suspenso por longo tempo. Presos em nosso labirinto de mediocridade, incapazes de realizar um esfoço endógeno minimamente coerente, desprovidos de forças nacionais renovadoras, caminhamos para estacionar em nosso lugar natural no sistemamundo, a mais extrema periferia. O PT não consegue ver isso, pois, apesar de ter alguma sensibilidade social, nunca pensou a nação. 

A solução menos ruim, no curto prazo, é que o TSE casse a chapa Dilma-Temer, pelas ilegalidades cometidas durante o processo eleitoral. A convocação de novas eleições propiciaria dois ganhos para o país: a realização de um debate de grande intensidade, que ajudaria a explicitar as questões de fundo, e a formação de um novo governo legítimo, seja ele qual for. Precisamos, pelo menos, deter a marcha da insensatez. 

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