DIÁRIO DE CLASSE
A expressão Estado Constitucional de Direito pode soar como pleonasmo. De fato, se uma comunidade política se apresenta organizada pelo Direito, com regras jurídicas observadas regularmente pelas instituições e pelos diversos atores sociais, esse Estado só pode serConstitucional. Todavia, os eventos do entre guerras na primeira metade do século XX, que permitiram a existência de Estados de Direito baseados no arbítrio e na vontade totalitária de certas maiorias ocasionais, gerando executivos hipertrofiados, levou a literatura constitucional a estabelecer um qualificativo para o Estado de Direito no interior do qual o poder é exercido de forma limitada, em um regime de equilíbrio constitucional entre os poderes constituídos.
Desse modo, a expressão Estado Constitucional de Direito quer designar uma realidade política no interior da qual o exercício do poder encontra-se limitado por uma Constituição, e a ação institucional dos poderes constituídos é praticada de forma equilibrada. Assim, Estado Constitucional de Direito não é qualquer Estado de Direito, mas apenas aqueles que observam um regime de poder limitado e equilibrado.
Limitação e equilíbrio são, portanto, expressões correlatas quando o assunto é Estado Constitucional de Direito. Quando há equilíbrio institucional, há, consequentemente, poder limitado. Erupções de arbítrio, voluntarismos e autoritarismos na ação institucional de um dos poderes leva a desequilíbrios e, consequentemente, a exercício do poder fora dos limites constitucionais.
A restauração do equilíbrio, em tais casos, é planejada pela própria Constituição quando estabelece as contrapartidas de controle recíproco entre os poderes constituídos estampadas no sistema, um tanto quanto vulgarizado pela literatura constitucional, de freios e contrapesos (ou, checks and balances). Assim, ao mesmo tempo em que afirma garantias de independência institucional de cada um dos poderes, ou funções do poder, a Constituição estabelece contornos gerais sobre as possibilidades de intervenções recíprocas cuja finalidade última é a manutenção ou restauração do equilíbrio perdido, que se configuram nas hipóteses em que um dos poderes, por meio de seus agentes, pratica atos questionáveis desde o ponto de vista das limitações constitucionais aplicadas à sua ação.
A recente decisão proferida, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Cautelar 4070/DF tem gerado manifestações críticas por parcela da comunidade jurídica porque, no momento em que suspendeu o mandato de um congressista a título de medida cautelar penal diversa da prisão, acabou por criar uma interferência indevida em um outro poder, levando a um eventual desequilíbrio na relação interinstitucional. Afirma-se, então, que a decisão do Supremo é carente de fundamentos jurídicos e ultrapassa os limites constitucionais de sua atividade de controle, em face do que estabelecem os artigos 53, parágrafo 2º e 55, parágrafo 2º da Constituição de 1988.
Afinal: teria o Supremo Tribunal Federal proferido uma decisão política e, desse modo, violado o Estado Constitucional de Direito?
Minha resposta é negativa. Parece-me que a interpretação conferida à questão pela unanimidade do Plenário do Supremo Tribunal Federal é um exemplo daquilo que, com Lenio Streck, podemos chamar de resposta constitucionalmente adequada. Consequentemente, tal decisão pode ser sustentada desde a perspectiva do Direito, e não da política. Isso por dois motivos: o primeiro de ordem mais ampla e abstrata; o segundo, de ordem concreta ou restrita.
O motivo abstrato: ao contrário do que se afirma (que o Supremo teria ultrapassado os limites de sua atuação constitucional, ofendendo, assim, o ideal de constituição equilibrada), penso que, na hipótese, o tribunal agiu exatamente para garantir o equilíbrio e (re)colocar a legitimidade institucional, dada pelo exercício limitado do poder político, nos seus devidos trilhos. Ora, as acusações que pesam sobre o deputado que teve seu mandato suspenso apontam para um tipo de conduta que vai além de simples manobras regimentais para levar adiante os interesses de seu grupo político. Elas fazem transparecer a figura de alguém que, em tese, estaria usando as prerrogativas de sua função para a prática de atos, digamos, não republicanos, operando-se uma total confusão entre o público e o privado (para dizer o mínimo). Se tais acusações puderam ser, ao menos, indiciariamente comprovadas, então estamos diante de um parlamentar que abusou de sua função e que se colocou como uma espécie de Nixon do Congresso (Não existe essa coisa de ilegalidade, quando o ato questionado é do presidente). Sendo mais claro: se tais acusações possuem indícios probatórios robustos (o que me parece ser o caso, já que 11 ministros da mais alta corte de Justiça deste país assim entenderam), então estamos tratando de alguém que se colocou acima da lei e da ordem constitucional, fazendo irromper, em nossa frágil democracia, uma dimensão de poder ilimitado.
Parece-me óbvio então que, diante de tais circunstâncias, o Supremo está autorizado a agir para reparar o quadro de desequilíbrio institucional instalado pela atuação do deputado.
Não podemos aceitar a interpretação tábula rasa que se pretende dar às imunidades parlamentares garantidas pela Constituição. Se as considerarmos como instâncias imaculadas, postas a salvo de qualquer controle jurisdicional, então teremos, em plena República, um reduto de privilégios corporativos absolutamente incompatíveis com um sistema constitucional como o nosso. Dizendo com todas as letras: vingando a interpretação de que a imunidade parlamentar impede, em qualquer hipótese, a determinação judicial da suspensão do mandato, estaríamos a conceber que os cargos de deputado e senador teriam uma preservação constitucional mais vigorosa do que aquela que se confere ao presidente da República e aos próprios ministros do Supremo. Ou seja, os atos do presidente podem ser controlados, e ele acabar afastado do cargo, por um outro poder; os atos de um ministro do Supremo também (de se notar: ambos podem sofrer processo de impeachment perante o Congresso nos casos de crimes de responsabilidade). Todavia, os atos de deputados ou senadores só poderiam ser objeto de sindicância por parte do próprio Congresso. Ora, em um quadro como esse, é mais fácil derrubar um presidente da República do que chamar à responsabilidade um congressista.
Reconhecer razão a essa interpretação, portanto, significa asseverar um desequilíbrio institucional, violando frontalmente o ideal de constituição equilibrada.
Por outro lado, penso que há uma falácia interpretativa veiculada por esse entendimento, nomeada por Lawrence Tribe e Michel Dorf como interpretação desintegradora da Constituição. Para Tribe e Dorf, a interpretação por desintegração “levanta uma questão, dá total importância e valor a ela, fornece-lhe todas as possíveis interpretações, e, ao mesmo tempo, ignora o fato de que ela está imersa em um todo” [1].
Assim, o intérprete da Constituição tem o dever de harmonizar os detalhes específicos que aparecem nas disposições que guarnecem a imunidade parlamentar com o todo da Constituição, bem como com a tradição política na qual ela está imersa. Isso significa: temos o dever de preservar, na interpretação da Constituição, as diretrizes básicas do equilíbrio interinstitucional e do exercício limitado — e não arbitrário — do poder político. Conforme me parece ter ficado claro em linhas anteriores, a ação do Supremo Tribunal Federal, no caso específico da AC 4.070, conforma esses elementos em vez de causar desequilíbrio, como querem sustentar algumas vozes jurígenas.
Com relação aos motivos concretos: em primeiro lugar, há que se afastar qualquer contrariedade da decisão do Supremo com relação ao paragrafo 2º do artigo 55 da Constituição Federal. Quem leu a decisão do ministro Teori sabe que, em diversos momentos, foi por ele ressaltado que não se estava a discutir a cassação do mandato do deputado, mas, simplesmente, sua suspensão. Vale dizer, apesar de suspenso de suas funções, Cunha continua deputado. E assim permanecerá até o final da presente legislatura, salvo se, pelas vias institucionais da própria Câmara dos Deputados, venha a perdê-lo na hipótese de cassação pelo Plenário da Casa.
De outra banda, a imunidade prevista no artigo 53, parágrafo 2º refere-se à prisão preventiva, e não às medidas cautelares diversas da prisão, previstas no artigo 319 do CPP. Querer encontrar aqui um elo de prejudicialidade entre uma medida e outra (no sentido de que se não cabe prisão, não cabe também uma medida cautelar diversa), é “forçar a barra”. Ora, há entre essas medidas, a prisão preventiva e as outras cautelares, certo nível de autonomia. O argumento de que estaríamos aqui diante de uma hipótese em que o acessório segue o principal é descabido.
Por isso, vai bem o voto do ministro Teori, parecendo-me adequado à Constituição, quando afirma que não devemos discutir se todas as hipóteses de limitação às imunidades parlamentares estão enumeradas na Constituição Federal. Sempre que interpretamos o Direito, construímos significados a partir de uma leitura moral da Constituição, sem que isso represente voluntarismos ou ativismos inconsequentes. Isso vale inclusive para direitos fundamentais, imagine então para garantias parlamentares. Como se sabe, na literatura estadunidense existe uma discussão para saber se os direitos são apenas aqueles enumerados pela Constituição ou se, também, existem direitos não enumerados. Um autor em específico, chamado Ronald Dworkin, afirma que essa discussão pode ser resolvida por meio da tese da “leitura moral da Constituição”. Penso que a mesma solução pode ser aplicada à hipótese vertente: o intérprete da Constituição tem o dever de colocá-la sob a melhor luz. Há que se presumir que o Direito representa uma teia inconsútil, consistente e coerente, e não um emaranhado de regras tortas que referendam privilégios, inconcebíveis em um regime republicano e em um Estado Constitucional de Direito. Enfermidades muito rigorosas podem exigir, no limite, a amputação de um membro do corpo humano. Cortando na carne, salva-se o paciente. No caso, a aparente medida extrema tomada pelo Supremo Tribunal Federal pode parecer uma “amputação constitucional”, mas, na verdade, ela representa apenas a consagração do mais elementar princípio de todo o constitucionalismo moderno: limitação do poder para gerar Constituição equilibrada.
[1] TRIBE, Laurence. DORF, Michael. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 23.
Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp) e da Faculdade Guanambi (BA).
Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Seu comentário é sua opinião, que neste blog será respeitada