Se cabível o Inquérito Policial Militar para apuração dos indícios de autoria e materialidade, deve ser este o instrumento adequado a ser utilizado pela Polícia Judiciária Militar, em substituição ao Auto de Prisão em Flagrante.
1. Introdução
A prisão em flagrante, espécie de prisão provisória, encontra-se presente na legislação processual criminal militar. Em razão de fato criminoso e dos elementos existentes no local da infração (vestígios, testemunhas, vítima, instrumentos utilizados no delito) uma providência administrativa (peça preliminar à ação penal) poderá ser adotada: a autuação em flagrante. Para fins deste estudo, as situações que se aplicam à realidade dos integrantes da Polícia Militar serão enfatizadas.
Como medida cautelar, esta espécie de prisão tem por objetivo garantir que o autor do delito seja responsabilizado por sua conduta. Competirá, em regra, ao oficial militar, denominado Autoridade de Polícia Judiciária Militar, adotar os procedimentos previstos no Decreto-Lei nº 1.002/1969, denominado Código de Processo Penal Militar (CPPM), no que estiver recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/1988). Para Capez (2007), a prisão em flagrante destina-se a assegurar o bom desempenho da investigação criminal ou para impedir que solto o agente continue a praticar crimes.
O policial militar depara-se rotineiramente com situações de perigo ao atuar nas ruas, durante as ações e operações de manutenção da ordem pública, podendo incorrer em fato que se amolde aos tipos penais previstos no Código Penal Militar. Em algumas situações, no cumprimento das obrigações profissionais, poderá ser preso, mesmo agindo em legítima defesa (por exemplo, ao atirar em infrator penal que subjugava terceiro com uma arma de fogo) ou no estrito cumprimento do dever legal (como no caso de uso da força para restabelecer a ordem pública), dependendo da interpretação jurídica dos fatos.
Importante ressaltar que a prisão em flagrante de policial militar, decorrente de fato praticado em serviço, quando presente uma ou mais causas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, tem gerado discussão, pois encontra entendimentos diversos pelos operadores do Direito Militar.
Adverte-se que este autor não objetiva questionar a importância do instituto jurídico da prisão em flagrante, visto seu indiscutível valor como primeira reprimenda ao militar que afronta a hierarquia, a disciplina ou age com vontade inequívoca de violar as normas previstas no Código Penal Militar (CPM), Decreto-Lei nº 1.001/1969. Contudo, diante do princípio constitucional da inocência, lança-se argumentação quanto à necessidade de efetuar a prisão em flagrante do profissional de segurança pública, diante da presença de causas que afastam a existência do crime, como nos casos previstos nos artigos 38 e 42 do CPM.
2. Desenvolvimento
2.1 A Prisão em Flagrante no Direito Militar
A palavra “flagrante”, segundo Neto (2000), vem do latim flagrans, flagrantis, tendo por significado aquilo que é ardente, queimante. A prisão do infrator penal decorre da presença visível do crime, aquilo que está acontecendo. Para Costa (2007, p. 34), apud Maria Stella Villela S. L. Rodrigues:
[...] a prisão em flagrante é uma das espécies mais antigas de prisão, por uma razão de ordem sócio-psicológica: a prática do delito provoca, em quem o presencia, a necessidade de concorrer para o restabelecimento da ordem pública violada e para a punição do culpado por esta violação. De início a flagrância, penalmente, conceituava-se pelo clamor público, seja quando o criminoso era perseguido pelo povo ou quando surpreendido na prática da infração penal.
O Código de Processo Penal Militar estabelece, como uma das modalidades de prisão provisória, a prisão em flagrante:
Art. 243. Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.[...]Art. 246. Se das respostas resultarem fundadas suspeitas contra a pessoa conduzida, a autoridade mandará recolhê-la à prisão, procedendo-se, imediatamente, se for o caso, a exame de corpo de delito, à busca e apreensão dos instrumentos do crime e a qualquer outra diligência necessária ao seu esclarecimento.[...]Art. 247, § 2º - Relaxamento da Prisão§ 2º Se, ao contrário da hipótese prevista no art. 246, a autoridade militar ou judiciária verificar a manifesta inexistência de infração penal militar ou a não participação da pessoa conduzida, relaxará a prisão. Em se tratando de infração penal comum, remeterá o preso à autoridade civil competente. (grifo nosso)
Do acima exposto, especialmente o contido no § 2º do art. 247 do CPPM, observa-se que a Autoridade de Polícia Judiciária Militar detém competência legal para, se entender inexistente o crime militar, determinar o imediato relaxamento da prisão. Por conseguinte, remeterá toda documentação produzida à Justiça Castrense (podendo determinar a instauração de Inquérito Policial Militar), não caracterizando tal ato ofensa às funções do Poder Judiciário ou extrapolação das competências administrativas.
A Teoria Analítica do Crime ensina que o delito contempla três elementos: tipicidade, anjuridicidade e culpabilidade. Sem um destes não haverá crime, sendo este o entendimento majoritário dos estudiosos do direito criminal brasileiro.
Em linhas gerais e numa rápida análise, na tipicidade, devemos entender que houve a perfeita adequação do fato ao tipo legal, capaz de gerar ofensa ao bem jurídico tutelado. Ressalta-se que a tipicidade somente ocorrerá se a conduta for contrária à norma, excluindo-se, portanto, os casos em que a conduta é imposta ou fomentada pela lei penal. Antijuridicidade ou ilicitude compreende a contrariedade do fato ao ordenamento jurídico-penal, ou seja, o agente age contra a lei, exceto nos casos em que esta considera justificável a sua conduta, como as previstas no art. 42 do CPM. A culpabilidade, nos valorosos ensinamentos de Greco (2009), diz respeito ao juízo de censura que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Reprovável ou censurável é aquela conduta levada a efeito pelo agente que, nas condições em que se encontrava, podia agir de outro modo.
Inicialmente a Autoridade de Polícia Judiciária Militar fará a leitura da tipicidade e antijuridicidade. Na sequência, avaliará sobre as circunstâncias que levariam à autuação em flagrante do agente militar sob o aspecto da culpabilidade, ou seja, a conduta adotada pelo agente foi ou não necessária por ocasião de sua ação. No direito criminal militar, as causas de excludentes de culpabilidade estão previstas no art. 38 do CPM e compreendem a coação irresistível e a obediência hierárquica.
2.2 Da Polícia Judiciária Militar
A persecução penal na esfera do direito criminal militar compete à Polícia Judiciária Militar e ao Ministério Público. O primeiro realizará a investigação para levar informações sobre a infração penal e sua autoria e, ao segundo, titular da ação penal, caberá pedir ao Estado-Juiz a instauração do processo criminal.
A Polícia Judiciária Militar está prevista nos artigos 7º e 8º do Decreto-Lei nº 1.002/1969 (CPPM), sendo competente para apuração dos crimes militares definidos no CPM ou em lei especial que esteja sujeita à jurisdição militar, buscando identificar o seu autor para que seja, posteriormente, submetido ao devido processo legal. Em todas as instituições militares, na esfera federal (Forças Armadas) ou estadual (Polícias Militares e Bombeiros Militares), haverá o funcionamento da Polícia Judiciária Militar.
Nas instituições militares estaduais é comum que as atribuições dos comandantes das Unidades (Batalhões, por exemplo) sejam delegadas aos oficiais dos diversos postos para que autuem em flagrante àquele contra quem recaem indícios do cometimento de crime militar. Como, em regra, a ação penal militar é pública, não será possível à autoridade de polícia judiciária dispensar as providências legais para prender quem esteja em flagrante de delito.
2.3 Da Autuação em Flagrante Delito
Estabelece o art. 5º, LXI, da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, que não se imporá prisão ao indivíduo, exceto nos casos de flagrante ou mandado judicial, salvo nos casos de transgressão disciplinar ou crime propriamente militar. O inciso LXVI, do mesmo artigo, estabelece que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Para a legislação castrense, art. 243 do CPPM, será preso e autuado em flagrante delito o militar que estiver cometendo um crime, acabar de cometê-lo, for perseguido logo após o fato delituoso em situação que faça acreditar ser ele o seu autor ou for encontrado, logo depois, com instrumentos, objetos, material ou papéis que façam presumir a sua atuação no fato delituoso.
O art. 253 do CPPM contempla a liberdade provisória, decorrente de prisão em flagrante, podendo ocorrer quando o juiz de direito verificar pelo auto de prisão que o agente praticou o fato em certas condições estabelecidas no Código Penal Militar. Alerta-se que este controle jurisdicional somente ocorrerá se a autoridade de Polícia Judiciária Militar (Comandante) entender pertinente a autuação em flagrante.
Concessão da liberdade provisória
Art. 253. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato nas condições dos arts. 35, 38, observado o disposto no art. 40 e dos arts. 39 e 42, do Código Penal Militar, poderá conceder ao indiciado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogar a concessão.
Para ilustrar, destacam-se duas excludentes de ilicitude que ocorrem com maior frequência nas atividades rotineiras do policial: a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal. A legítima defesa, prevista no art. 42, II, do CPM, ocorrerá quando o militar utilizar os meios proporcionais para repelir injusta agressão à sua pessoa ou de terceiro, podendo empregar instrumentos como tonfa, bastão, espargidor ou arma de fogo. O estrito cumprimento do dever legal, presente no art. 42, III, do CPM, admite, por exemplo, que o agente público encarregado da manutenção da ordem empregue a força contra o cidadão infrator, especialmente diante de desobediência ou resistência praticada contra as ações da Polícia.
O CPPM instituiu que a competência para dizer se um militar será ou não autuado em flagrante pertence à Autoridade de Polícia Judiciária Militar, compreendendo o comandante militar da área territorial em que ocorreu o delito ou o comandante do infrator.
Em decorrência de situações reais, não raras vezes, os comandantes militares e seus assessores enfrentam um dilema: autuar ou não em flagrante? Para responder ao presente questionamento, a autoridade deverá buscar elementos legais e doutrinários modernos que orientem para a decisão mais acertada.
Nos ensinamento de Costa (2007, p. 34), “o flagrante é um ato administrativo, sendo inegável seu caráter cautelar; tornam-se inamovíveis os pressupostos: fumus boni juris et periculum in mora”. Diante destes, torna-se imperioso refletir sobre a necessidade de encarceramento do profissional de segurança pública, sobretudo quando a ação decorrer do enfrentamento à criminalidade.
Nos ensinamento do douto promotor do Ministério Público da União, Jorge César de Assis (2006), a decisão sobre autuar em flagrante ou instaurar um Inquérito Policial Militar tem se constituído como tormentosa questão:
Inicialmente, deve-se ter em conta que a autuação em flagrante de um policial militar é decisão que cabe unicamente à autoridade de polícia judiciária militar, no teatro dos fatos, após proceder às investigações vestibulares determinadas pela Lei Processual. Após isso, convicto de autoria e materialidade, deverá decidir pelo procedimento de polícia judiciária a ser elaborado, sendo a regra de ouro o favorecimento do status libertatis. É dizer, que o flagrante, no passado ensinado como regra em observância ao princípio do in dúbio pro societate, hoje deve ser encarado como exceção.
Ao abordar sobre a Prisão em Flagrante, Capez (2007, p. 258), argumenta que o auto não será lavrado se estiver presente uma das hipóteses de exclusão da antijuridicidade, ressaltando que o delegado não deverá adentrar em questão doutrinária de alta indagação.
Na visão de Alves (2011, p. 6), “a autoridade policial tem poderes para investigar de acordo com o seu entendimento, desde que não cometa abusos, respeitando os direitos e garantias individuais”.
3. Conclusão
Resta claro que se cabível o Inquérito Policial Militar para apuração dos indícios de autoria e materialidade, deve ser este o instrumento adequado a ser utilizado pela Polícia Judiciária Militar, em substituição ao Auto de Prisão em Flagrante. O cerceamento de liberdade do militar deve ser exceção, em consonância à doutrina mais atualizada do Direito e aos princípios jurídicos, dentre os quais o da inocência, liberdade e razoabilidade.
Do que foi exposto, pode-se afirmar que se houver a clara presença de cláusulas excludentes de ilicitude ou culpabilidade, diante dos indícios de cometimento de fato aparentemente típico pelo Policial Militar, será recomendável à Autoridade dispensar a prisão em flagrante, não havendo neste ato nenhuma ofensa ao direito pátrio. Para tanto, a autoridade, de acordo como seu livre convencimento, interpretará a situação fática, observando diversas nuances da ação ou operação policial realizada.
A legislação criminal, nos aspectos processuais, avança no sentido de afirmar a garantia dos direitos previstos na Constituição da República Federativa do Brasil/1988. Não seria razoável deixar de efetivar tais direitos ao Policial Militar, profissional que atua diuturnamente para a manutenção da ordem pública e defesa da sociedade.
4. Referências
ALVES, Reinaldo Rossano. Direito Processual Penal. 7. ed. Niterói, Impetus, 2010.
ANGHER, Anne Joyce. Vade Mecum Acadêmico de Direito. 14. ed. São Paulo, Rideel, 2012.
ASSIS, J.C; CUNHA, F.L; NEVES, C.R.C. Lições de Direito para a Atividade das Polícias Militares e das Forças Armadas. 6. ed. Curitiba, Juruá, 2006.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 14. ed. São Paulo, Saraiva, 2007.
COSTA, Alexandre Henriques da. Manual Prático dos Atos de Polícia Judiciária Militar. São Paulo: Suprema Cultura, 2007.
GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral, Volume I. 1. ed. Rio de Janeiro. Impetus. 2009.
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