Entrevista especial com Whelton Pimentel de Freitas
“Na América Latina, somos mais de 30 milhões de
famílias lutando por um teto, ou seja, morando em área de risco ou
morando de favor, em favelas, em áreas inadequadas ou mesmo pagando
aluguel”, informa o coordenador da União Nacional Por Moradia Popular –
UNMP.
Confira a entrevista.
Foto: www.deputadovander.com.br |
“Há capacidade e terras tanto do governo federal quanto dos estados para suprir toda a demanda do déficit habitacional quantitativo”, diz Whelton Pimentel de Freitas à IHU On-Line em entrevista concedida por telefone. O coordenador da União Nacional Por Moradia Popular – UNMP participa do segundo Módulo da Escola Latino-Americana de Moradia Popular, no Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – Cepat, com membros de seis países latino-americanos.
Um dos ativistas da moradia popular, Freitas, conhecido como Leleco,
diz que a casa “tanto para o Estado quanto para o mercado é um objeto
de troca”. Por isso, defende a “autogestão” da moradia não só como uma
ferramenta de gerenciamento dos recursos públicos, com fiscalização
social, mas também como um instrumento de organização da sociedade para
quebrar os “paradigmas capitalistas que geram o individualismo”.
“Enquanto morar for um privilégio para poucos, ocupar será também um
direito nosso, e nós vamos dar função social a esses imóveis da União
como exemplo para que municípios e estados façam o mesmo, em vez de
servir somente às elites e deixar esses imóveis ociosos para especulação
ou, até mesmo, causando uma disfunção dentro da cidade. O direito à
cidade é um direito também às terras públicas e aos imóveis”, ressaltou.
Na entrevista a seguir, ele também avalia o programa Minha Casa, Minha Vida
e destaca que se pode “descartar a importância de construir 3,4 milhões
de moradias para um déficit habitacional de 5,7 milhões”. Entretanto,
ressalta, “o programa Minha Casa, Minha Vida tem
contradições, porque foi criado dentro de uma perspectiva da crise
mundial para gerar empregos e para que as empresas pudessem operá-lo”.
Whelton Pimentel de Freitas (foto) é coordenador da
União Nacional por Moradia Popular – UNMP, membro do Conselho Nacional
das Cidades e coordenador do Fórum Mineiro pela Reforma Urbana de Minas
Gerais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como surgiu a União Nacional por Moradia
Popular – UNMP? Qual sua proposta no sentido de resolver a questão da
moradia?
Foto: Arquivo pessoal |
Whelton Pimentel de Freitas – A UNMP completa 25 anos em 2013. O trabalho começou em 1987 com a iniciativa de três estados: Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Hoje estamos presentes em 23 estados. A UNMP
é uma conquista dos movimentos populares, sobretudo no campo da
formação, que trouxe consigo três temas importantes, os quais estão
sendo debatidos no evento.
O primeiro diz respeito à autogestão como uma ferramenta de socialismo e de empoderamento dos movimentos populares
não só para administração de recursos, mas também para fugirmos das
expectativas que o capitalismo sempre impõe, de ter a centralização do
poder, ou seja, uma arrogância dentro da própria estrutura
organizacional.
Outro tema importante é o do mutirão que, casado com a autogestão,
causa não só laços de solidariedade como o fortalecimento da luta da
produção da moradia, transformando o que seria lucro em ganho para o
coletivo. Também estamos debatendo o direito à cidade, porque sabemos
que o resultado da luta dos movimentos é muito maior do que a construção
de casas, e isso traz para a discussão um quarto tema: a propriedade
coletiva, que diz respeito à habitação do território, por exemplo, dos
índios, que no Brasil conviviam numa propriedade coletiva, tendo uma
relação de respeito com a terra. Esses três temas se reúnem no evento,
que representa a Secretaria Latino-Americana dos Movimentos de Moradia.
IHU On-Line – Em que consistem as propostas de autogestão e propriedade coletiva para produção de moradias populares?
Whelton Pimentel de Freitas – A autogestão prescinde
não só de uma definição teórica, mas também de um instrumento do
socialismo possível. Digo isso porque a casa como moradia, tanto para o
Estado quanto para o mercado, é um objeto de troca, ou seja, se produz,
num pedaço de terra, algo para alguém morar. Mas essa pessoa tem de ter
um papel de propriedade individualizado, ou seja, a moradia passa por um
valor de mercado. A casa, portanto, é vista como um objeto de uso, que
faz parte daquela gama de direitos envolvidos com os outros direitos que
afetam a moradia: transporte, trabalho, direito de ir e vir. Então, a
autogestão não é só uma ferramenta de gerenciamento dos recursos
públicos com fiscalização social, mas tem também um sentido de
autogestão, ou seja, ser uma organização da sociedade para quebrar esse
paradigma capitalista que gera o individualismo.
A autogestão trata essencialmente do empoderamento dos movimentos
sociais para que eles, como parte de um problema social, sejam a
solução. Vemos que a institucionalidade sozinha não resolve esse
problema da moradia, tanto que este era considerado um problema de
governo e não de Estado, desde a criação do FGTS. Somente na Constituição de 1988 os temas moradia e reforma urbana foram pautados.
O debate da propriedade coletiva
traz, por fim, uma provocação fundamental: nós todos trabalhamos
coletivamente e temos uma propriedade coletiva quando nos organizamos.
Quer dizer, quando ocupamos um terreno ou uma propriedade, nos
organizamos de forma coletiva e num determinado momento somos
surpreendidos por essa ferramenta capitalista cruel e desagregadora de
individualizar os títulos. Ou seja, lutamos juntos, mas depois de
conquistar o direito de morar, devolvemos o individualismo dentro
daquilo que é chamado de escrituração e propriedade.
IHU On-Line – Como você analisa a situação da moradia na
América Latina? No evento estão presentes lideranças do Brasil,
Argentina, Uruguai, Venezuela, Equador e Chile. Como a questão da
moradia popular se caracteriza em cada país?
Whelton Pimentel de Freitas – As cooperativas de vivienda (habitação) no Uruguai são todas organizadas em propriedades coletivas, organizam os trabalhadores que precisam dessa política de Estado e produzem moradia de modo cooperado, mantendo a propriedade coletiva. Eles têm um marco regulatório que vem se desenvolvendo e que está presente na relação dos recursos de financiamento do Estado subsidiados para essas organizações. Não é o mesmo que acontece no Chile, por exemplo, onde não se tem um marco regulatório que permita essa mesma relação.
Whelton Pimentel de Freitas – As cooperativas de vivienda (habitação) no Uruguai são todas organizadas em propriedades coletivas, organizam os trabalhadores que precisam dessa política de Estado e produzem moradia de modo cooperado, mantendo a propriedade coletiva. Eles têm um marco regulatório que vem se desenvolvendo e que está presente na relação dos recursos de financiamento do Estado subsidiados para essas organizações. Não é o mesmo que acontece no Chile, por exemplo, onde não se tem um marco regulatório que permita essa mesma relação.
Houve um avanço muito grande no governo de Hugo Chávez, na Venezuela,
que não só tem um marco regulatório fundamental, como também tem feito
diversas intervenções em áreas públicas e privadas, com desapropriações,
permitindo que a produção da moradia passasse a ser um elemento de
“missão”, como dizia Chávez.
De outra forma, o Equador tem dificuldades com o financiamento dessas políticas públicas.
Por fim, a Argentina a partir do governo Kirchner
também tem uma iniciativa importante das cooperativas. Os trabalhadores
tomam conta da forma de produção daquelas empresas que foram fechadas
entre as décadas de 1970 e 1990, depois do governo da ditadura militar, e
agora eles encontram também um marco regulatório, embora tenham
diferenças regionais gritantes.
O Brasil entra nesse contexto como um país que se
envolve com a pátria grande. Portanto, as diferenças entre os marcos
regulatórios, entre programas e financiamento, e a relação com os
movimentos, vem encurtando essas distâncias na medida em que vamos
provocando essa interação e integração latino-americana, que já vem
sendo feita pelos governos.
IHU On-Line – É possível estimar quantas famílias estão sem casa na América Latina?
Whelton Pimentel de Freitas – Os dados são controversos, mas nós temos um número muito expressivo. Na América Latina,
somos mais de 30 milhões de famílias lutando por um teto, ou seja,
morando em área de risco ou morando de favor, em favelas, em áreas
inadequadas ou mesmo pagando aluguel. Somente no Brasil, segundo dados do PNUD e do IBGE, são 5,7 milhões de sem teto, mas acreditamos que ultrapassa os oito milhões.
IHU On-Line – Entre as propostas para resolver o problema da
moradia, uma delas é ocupar os prédios públicos e privados abandonados
ou desocupados. Em que consiste essa proposta?
Whelton Pimentel de Freitas – Nós estamos lutando por uma agenda institucional com o governo, a partir do Ministério das Cidades, da Secretaria Geral da Presidência e do Ministério do Planejamento para que a Secretaria de Patrimônio da União faça a destinação dos imóveis para habitação de interesse social. Já temos um marco regulatório.
O Estado brasileiro, desde o governo Lula, está avançando nessa perspectiva.As áreas em questão são terras do INSS, da extinta Rede Ferroviária Federal, do Instituto Brasileiro do Café, do Instituto do Álcool e de Açúcar.
Há capacidade e terras tanto do governo federal quanto dos estados
para suprir toda a demanda do déficit habitacional quantitativo.
Estamos, sim, ocupando terras públicas e prédios, mas também numa agenda
voluntária dentro do governo criamos um grupo de trabalho nacional.
Teremos uma reunião em Curitiba com a secretária de
patrimônio da União, que participou da abertura do evento, a fim de que
possamos disponibilizar outros terrenos.
Na União Nacional de Moradia Popular, no Paraná, já temos a produção social de moradia dentro de áreas públicas em terrenos federais.
Enquanto morar for um privilégio para poucos, ocupar será também um
direito nosso e nós vamos dar função social a esses imóveis da União
como exemplo para que municípios e estados façam o mesmo, em vez de
servir somente às elites e deixar esses imóveis ociosos para especulação
ou, até mesmo, causando uma disfunção dentro da cidade. O direito à
cidade é um direito também às terras públicas e aos imóveis.
IHU On-Line – Que avaliação faz do programa Minha Casa, Minha Vida como proposta de moradia popular?
Whelton Pimentel de Freitas – Não tenha dúvidas de que o Minha Casa, Minha Vida é fruto de um enfrentamento e de uma política de quem faz diferente. Ele foi criado ainda no final do governo Lula, que passou seus dois governos preparando essa proposta. Dilma está trazendo à baila a proposta mais arrojada, apesar de enfrentar alguns problemas.
Não podemos descartar a importância de construir 3,4 milhões de
moradias para um déficit habitacional de 5,7 milhões. O programa Minha Casa, Minha Vida
tem contradições, porque foi criado dentro de uma perspectiva da crise
mundial para gerar empregos e para que as empresas pudessem operá-lo.
Essa é a contradição, porque essas mesmas empresas, em vez de entenderem
que essa é uma política pública para aqueles que não têm teto, têm
buscado tirar o lucro de todos esses recursos públicos e, muitas vezes,
isso se traduz em falta de qualidade nas moradias.
Precisamos criar mecanismo de controle social, tendo que enfrentar a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil,
para que eles não permitam que esta grande política do Estado
brasileiro se transforme em apenas objeto para o lucro das empresas. O
programa Minha Casa, Minha Vida é muito bem-vindo, sim.
Ele é, na medida em que não tínhamos nenhuma resposta do governo, uma
resposta à altura e ao tamanho. O que precisamos agora é que os
prefeitos e os governadores entendam que desapropriar terras e dar
função social da propriedade, conforme aponta a lei do Estatuto das Cidades, deve ser uma constante para que o programa tenha construções em áreas bem localizadas.
O grande desafio é que os entes federados compreendam que o pobre, o
trabalhador, precisa ter acesso à cidade. Portanto, precisamos construir
casas em localidades mais centrais, perto do trabalho, do posto de
saúde. Enfim, o programa Minha Casa, Minha Vida é uma
luz para toda a América Latina. Alguns dos governos que citei têm
buscado, por meio deste programa, pelo investimento estatal, pela
consolidação de marcos da legislação, maneiras de enfrentar o déficit de moradia.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios na luta social pelo direito à moradia urbana?
Whelton Pimentel de Freitas – A regularização fundiária,
o reconhecimento do Estado brasileiro na autogestão como ferramenta
para que as entidades possam trabalhar e enfrentar o capitalismo, dando
qualidade e produção da moradia. O gargalo dos recursos, por exemplo, é
outro desafio. Estes estão muito voltados para as cidades das regiões
metropolitanas ou para as grandes cidades, e nós precisamos efetivamente
fazer com que o programa chegue ao interior, para não permitir que 200
milhões de habitantes só tenham essa ilusão da grande cidade, provocando
um êxodo rural.
Precisamos reconhecer que a cidade não é apenas um local de consumo,
ela é local de produção, ela é um local onde os trabalhadores e as
trabalhadoras possam também ter uma vida digna e de qualidade.
Precisamos também ter uma sociedade solidária, mais politizada e
consciente de que tudo o que produzimos é, iguamente, uma relação com a
natureza e uma relação de desenvolvimento sustentável.
Portanto, apenas estimular a produção da moradia e do consumo não
deve significar uma luta para enfrentar os problemas sociais e
ambientais do futuro. Temos de mudar a lógica do investimento do governo
federal não para dar respostas à crise econômica, mas para dar
respostas a uma sociedade profundamente ligada às injustiças, à
segregação.
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