Vítimas do fogo cruzado
Dados sinalizam o desgaste das políticas tradicionais de combate ao crime no Brasil
*Sociólogo, professor da PUCRS e membro do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Socióloga, professora da UFPEL e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Quando foi criado, em 2006, um dos principais objetivos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública era o de qualificar o debate sobre o tema, buscando identificar e difundir boas práticas de redução da violência e dar transparência aos dados da criminalidade e da gestão da segurança pública no Brasil. Com a publicação da 9ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, podemos dizer que o objetivo de aumentar a transparência foi atingido, mas não foi acompanhado por uma melhora sustentada da gestão da segurança.
Utilizando dados fornecidos pelas secretarias estaduais de segurança pública referentes ao ano de 2014, a última edição do Anuário chama a atenção para o fato de que, depois de um período (iniciado no ano de 2003) de redução e estabilização das ainda muito elevadas taxas de mortes violentas intencionais (que incluem homicídios, lesões corporais seguidas de morte, latrocínios e mortes praticadas pela polícia), a curva volta a subir a partir de 2012, e o ano de 2014 marca um novo recorde, sendo ultrapassado o alarmante e absurdo índice de 58 mil mortes ao ano, o equivalente a uma taxa nacional de 27,8 casos por 100 mil habitantes.
Os números apresentados pelo Anuário permitem constatar que há diferenças de Estado para Estado, mas no último período o aumento dos homicídios foi verificado em 18 das 27 unidades da Federação, e aqueles que não acompanham a tendência de aumento apresentam pequena redução em relação ao ano anterior. O maior crescimento pode ser observado em alguns Estados da região Nordeste, mas também no Rio Grande do Sul, que apresentou o segundo maior crescimento, da ordem de 21,1%.
O Anuário compila dados oficiais e apresenta estatísticas sobre o gasto com segurança pública no país e em cada Estado, os números da população carcerária e dos adolescentes submetidos a medida socioeducativa. O que se constata é que o gasto público no setor não é pequeno e tem aumentado, e as taxas de encarceramento também são cada vez maiores. O que estes números demonstram é que a fórmula tradicional de combate ao crime e à violência é cara e não traz os resultados esperados.
Em um cenário marcado pela dificuldade de integração entre as polícias, ausência de mecanismos de controle efetivos da atividade policial, descontrole do superlotado ambiente carcerário e disseminação da violência nos conflitos cotidianos e nas disputas entre grupos ligados aos mercados ilegais, as poucas experiências exitosas, como o Pacto Pela Vida em Pernambuco, não conseguem se manter ao longo do tempo, pela falta de reformas estruturais no setor e pela falta de um comprometimento maior da União na indução de políticas de segurança e dos municípios na implementação de programas de prevenção.
A aposta tradicional tem sido a de colocar toda a responsabilidade na redução da criminalidade nas mãos das polícias, carentes de uma reestruturação que racionalize a utilização de recursos escassos e viabilize a melhoria das taxas de esclarecimento de crimes graves, e que aproxime as estruturas policiais da comunidade. O resultado é uma dinâmica de criminalização que apenas atua no varejo dos mercados ilegais, superlotando presídios e instituições de internação juvenil e potencializando a capacidade de arregimentação das facções criminais.
Inverter essa lógica passa, em primeiro lugar, por qualificar o debate e abandonar a postura de muitos gestores, que adotam a máxima de que “o que é bom a gente divulga, o que é ruim a gente esconde”. Também não é mais possível iludir a sociedade com afirmações como “a polícia prende e a justiça solta”: a legislação penal é uma só para todo o país, e investindo em prevenção, no controle de armas e na qualificação da atuação das polícias, integradas territorialmente e mais próximas da comunidade, alguns estados têm obtido, pelo menos em períodos em que os governos assumem protagonismo na área, resultados importantes na redução da violência.
O Anuário apresenta também uma pesquisa, realizada pelo Datafolha, que demonstra que metade dos brasileiros concorda com a afirmação de que “bandido bom é bandido morto”. Afirmação corroborada por muitos portavozes da segurança pública, quando declaram que a taxa de homicídios é alta porque são “bandidos matando bandidos”. Do outro lado, certos círculos universitários aderem a um discurso supostamente crítico, que coloca sobre os policiais e sobre o “sistema” a responsabilidade pela violência. No meio do fogo cruzado, mais e mais vidas humanas são perdidas, trazendo um custo social cada vez mais elevado em sofrimento e dor para as vítimas preferenciais, e acirrando as tensões sociais.
Reverter este cenário através de um pacto nacional pela redução de homicídios, qualificando a atuação das polícias e investindo na soma de esforços do poder público e da sociedade civil, com foco na prevenção, parece ser a ação mais eficaz contra a opção pela chacina e pelo justiçamento. A receita já foi em parte experimentada e apresentou bons resultados. Por que não é aplicada?
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