AUTORIA DOS ATOS
[Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico desta segunda-feira (29/4)]
Um dos temas que gerou maior discussão durante o julgamento da Ação Penal 470 foi a aplicação da teoria do domínio funcional da organização naquele processo. Cuida-se de concepção relativamente complexa, razão pela qual muito se questionou a possibilidade de seu emprego com relação aos fatos julgados. Agora, com a publicação do extenso acórdão, é possível conferir com maior exatidão qual foi a linha seguida, de forma prevalente, pelo Supremo Tribunal federal (STF).
A teoria do domínio funcional da organização, tal como elaborada originalmente, visava a estabelecer a configuração de autoria em situações nas quais não se verificasse a realização do fato criminoso diretamente por uma dada pessoa, tampouco houvesse uma determinação específica dada por esta para a prática do ato por um terceiro. Entretanto, em razão de existir um aparato de poder (estabelecido ao largo da ordem jurídica) dominado pelo agente em questão, que dele se serve para a prática de crimes, utilizando os executores imediatos como meros fantoches - já que são substituíveis e não têm qualquer poder de decisão -, deve-se considerar a existência de autoria do agente mediato em tais hipóteses.
Menções a essa teoria surgiram em diversos pontos do acórdão, mas ela foi mais aprofundadamente discutida no julgamento do denominado núcleo político. É impossível tecer análise detida do tema neste espaço, razão pela qual escolhe-se somente um aspecto. Da leitura do acórdão, verificam-se algumas afirmações no sentido de que haveria domínio funcional em razão de que alguns acusados ocupariam "o topo da estrutura" de partidos, por serem líderes de bancada ou presidentes de partido. Com efeito, não se pode concordar com a aplicação da teoria do domínio funcional somente a partir de tais dados. Um partido político não apresenta as características de um aparato de poder estabelecido paralelamente ao ordenamento estatal. Tampouco se podem caracterizar os demais participantes de um partido político como fungíveis e substituíveis, estando à mercê de seus dirigentes e sem qualquer capacidade de ação.
Na verdade, prosseguindo na leitura do acórdão constata-se que teria ficado comprovada a prática de condutas específicas - participação em reuniões, assinaturas de documentos, por exemplo - pelos acusados. Com isso, percebe-se que não seria necessário valer-se da teoria do domínio funcional para analisar a autoria ou participação de cada acusado, até porque essa construção foi pensada exatamente para casos nos quais tais condutas específicas não costumam ser verificadas. Seria suficiente, portanto, examinar o conjunto probatório relativo a cada conduta individual e a ligação subjetiva entre as condutas, verificando se os comportamentos constatados indicavam a prática delituosa ou não.
Ainda que os dois caminhos teóricos possam levar ao mesmo resultado no que se refere a esse caso específico, é importante observar que a utilização da teoria do domínio da organização em âmbitos para os quais não foi concebida levará ao abandono da responsabilidade penal subjetiva, que consiste em somente se atribuir pena diante de condutas próprias do acusado, decorrentes de decisões pessoais suas, e não alheias.
Helena Regina Lobo da Costa é professora doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)
Revista Consultor Jurídico
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