Autor: JOSÉ
LUIZ BARBOSA*
Primeiramente,
antes de apresentarmos nossas considerações acerca da aplicação
e implicação da Lei de Tortura aos encarregados da aplicação
da lei, é necessário definir a palavra TORTURA: do latim,
tortura, significa suplício, martírio, tormento, transe
aflitivo, podendo ser físico ou psicológico. O significado do
verbo torturar também traduz o mesmo sentido, na língua
espanhola, no inglês (to torture), no francês (torturer), no
italiano (torturare) e no alemão (foltern). Estas semelhanças de
tradução e significado são um indicativo de que a prática da
tortura sempre foi, e continua sendo, um mecanismo globalizado,
perverso e aviltante, na maioria absoluta das nações-Estado.
A
tortura não surgiu de repente. Há fatores históricos, em sua gênese
e uma incursão nesta área é fundamental para a melhor compreensão
de seus componentes culturais, sociológicos e políticos.
Possibilitará, ainda, se descortinar como e porque este
instrumento cruel adquiriu contornos tão naturalizadores e
banalizantes, chegando a ponto de tornar-se prática institucional
e componente do poder. Ela está incorporada e socialmente aceita.
Sob o manto de proteger e assegurar a tranqüilidade pública, o
restabelecimento da ordem, a repressão e aplicação de castigo
ao criminoso (onde a síndrome da vitimização social
potencializa a cumplicidade do silêncio), é aceita,
consuetudinariamente, como método e procedimento, por seus
perpetradores.
Os
primeiros registros sobre maus tratos e penas cruéis, infligidos
aos prisioneiros de batalhas, remontam à Idade dos Metais. Quando
a cidade de Babilônia dominou a Mesopotâmia, já no segundo milênio
antes de Cristo, o rei Hamurabi criou o primeiro código de leis,
que dispunha de penas severas e degradantes, como a do Talião, do
“olho por olho, dente por dente”. Naquela época, não haviam
sido iniciadas as incursões imperialistas, podendo-se considerar
que foram os Assírios, povo mesopotâmio, que, de maneira
corrente, utilizaram a tortura contra os povos conquistados.
Já
no século VIII a.C., o modo de produção era escravagista, sendo
os escravos considerados, unicamente, indivíduos de deveres, não
usufruindo de qualquer direito. Os maus tratos e a violência física
eram utilizados, indiscriminadamente, sem nenhuma contestação.
No século II a.C., Roma se dividiu em dois grupos: democratas e
aristocratas. Foi o início do que, posteriormente, denominaria-se
Democracia e Ditadura, sendo, na última, onde se desenvolveria a
tortura política.
No
século V, período da Idade Média, discursar, manifestar ou
falar contra a ordem religiosa predominante era o suficiente para
que o cidadão fosse levado ao suplício, nas fogueiras, em praça
pública. As guerras santas, no mundo árabe, em nome de Alá,
assim como as Cruzadas, também tinham como características os
maus tratos e a brutalidade a que eram submetidos os capturados.
Na
região da Valáquia, Sul da Romênia, nos idos do século XV,
Vlad Tepes, consagrado como Drácula, pelo cinema e literatura de
ficção, era, reconhecidamente, tido como símbolo das forças do
mal e da tortura. Tinha como método o empalamento, que consistia
em introduzir um ferro no ânus ou no umbigo, até que saísse
pelo pescoço da vítima.
A
política colonialista que se desenvolveu a partir do século XV
reforçou, ainda mais, a prática escravagista – submetendo,
principalmente, a raça negra e os povos vencidos. Durante os séculos
XVI e XIX, em momentos e circunstâncias diferentes, a opressão,
as penas cruéis e degradantes e os maus tratos eram característicos
do regime e de um modo de vida de submissão e subserviência.
Das
páginas da História, podemos extrair, ainda, como momentos em
que a prática da tortura era sistemática, os episódios da
independência dos Estados Unidos, quando foram redigidas as
Declarações dos Direitos do Homem e da Independência (1776),
por Thomas Jefferson. Vale destacar, também, a queda da Bastilha,
na Revolução Francesa (1789), símbolo do autoritarismo do
governo e, ainda na Europa, as revoluções de 1830 e 1848
(contrapondo-se nacionalismo, liberalismo e socialismo). Já nos
Estados Unidos, podemos apontar a Guerra de Secessão
(1861-1865); no extremo oriente, os conflitos
sino-japoneses e, finalmente, na América Latina, os processos de
suas independências.
Outros
momentos em que vigorou a tortura foram Primeira Guerra Mundial
(1914 - 1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sendo os períodos
entre guerras marcados pela eclosão de regimes de exceção, em
toda Europa. Assim também aconteceu nos países
latino-americanos, como o Brasil, no Governo Getúlio Vargas.
Na
Europa, destaque para o período
dos regimes fascistas – como o português de Salazar, o
espanhol de Franco, o italiano de Mussolini e o nazismo alemão de
Hitler. Mesmo antes da prática da tortura, os Direitos Humanos
eram, então, sistematicamente violados, pelas execuções
extrajudiciais, a idealização da superioridade racial, econômica,
político-ideológica ou bélica.
O
anti-semitismo adotado pela Alemanha culminou com o holocausto
judeu, nos campos de concentração ou nos laboratórios, onde
eram feitas experiências com pessoas vivas. Paradoxal e
extraordinariamente, se na Primeira Guerra Mundial eram os judeus,
antes de tudo, alemães, lutando para defender o país, do pós-primeira
guerra, até a deflagração da Segunda Guerra Mundial, eram,
antes de serem alemães, considerados judeus-semitas.
O
período entre guerras foi marcado pelo terror, sendo a prática
da tortura justificada pela necessidade de se reconstruir as
economias dos países devastados pela Primeira Guerra Mundial. O
fascismo acaba, com o término da Segunda Guerra Mundial, mas a prática
de tortura persiste, no velho continente.
Ela só será, institucionalmente, abolida, na década de
setenta, quando Salazar é substituído, na Revolução dos
Cravos, em Portugal, e ocorre a morte de Franco, na Espanha.
Na
Europa, ainda hoje, ocorrem morticínios e torturas, entre grupos
rivais religiosos. Irlandeses do norte e do sul se digladiam e as
questões históricas que atravessam longos anos, não
sensibilizam, nem a imprensa, nem tampouco a população. As
divulgações de violações de Direitos Humanos dos países do
extremo oriente asiático, por exemplo, são freqüentes, mesmo
com todas as dificuldades de se publicá-las.
O
governo americano chegou a ameaçar a China, devido às graves denúncias
de organismos internacionais de proteção dos Direitos Humanos.
No Timor Leste, recentemente, houve graves denúncias e tentativas
de malograr a dominação, valendo ao timorense José Ramos Horta
o prêmio Nobel da Paz do ano de 1996. O estado de barbárie,
selvageria e violência
é vivido, também, no continente africano, principalmente na região
central, configurando-se no que Thomas Hobbes chamava de “O
homem é o lobo do homem” ( homo
homini lupus ).
Ainda,
especificamente, quanto às denúncias de prática da tortura,
podemos citar o Iraque (os curdos no norte do país), o Sri Lanka
(desaparecimento de jornalistas), o Zimbábue (a impunidade), a
Turquia (desaparecimentos e execuções extrajudiciais, no meio
rural e urbano), e o Marrocos (desaparecimento de políticos).
Numa
rápida retrospectiva histórica pelo Brasil, podemos constatar
que a tortura e os maus tratos estiveram presentes nos 300 anos de
colonialismo. As
execuções extrajudiciais atingiam, também, os não-escravos
(confederação do Equador - 1824). Vale lembrar a execução de
Frei Caneca, a Sabinada, na Bahia (1837-1838), a Guerra dos
Farrapos, no Rio Grande do Sul (1835) e a Balaiada, no Maranhão
(1838-1841). Somam-se a esses episódios, graves denúncias de
torturas, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas
(1930-1945).
Com
a instauração dos governos militares, da década de 60 até
meados de 80, volta à cena a tortura, com todos os requintes de
crueldade. Uma estrutura institucional do Estado operacionalizava
a caça aos comunistas e subversivos de toda ordem, que
discordavam do regime autoritário vigente. Os fins justificavam
os meios e o império da força dominava o império da lei. Os
Direitos Humanos não passavam de letra morta, tida pelos
opressores, como discurso em defesa, não dos oprimidos, mas de
criminosos considerados da pior espécie e perigosos para o regime
estabelecido pela elite dominante.
Observa-se,
que a tortura e o seu recrudescimento, com todas as suas características,
foi se instalando, sutil e gradativamente, integrando a cultura
social e dos agentes estatais. Em elevada
incidência, esta prática tem sido variável condicionada
aos regimes políticos autoritários, mas em maior ou menor grau
atravessou e avançou sobre a fronteira do regime democrático,
violando liberdades democráticas e desrespeitando os direitos
civis da população.
Durante
o regime militar, a tortura era orientada por princípios político-ideológicos.
Já na era da democratização, ela se orienta, fundamentalmente,
por critérios sócio-econômicos, realçando os componentes étnico-racial
e das minorias excluídas e marginalizadas.
Apesar
dos avanços normativos, é importante ressaltar que o próprio
Brasil, em seu primeiro relatório sobre a tortura, assume ainda
persistir tal prática no país. Ela é usual para se extrair
informações, confissões forçadas, obter ganhos com extorsões
ou como forma de punição. Tem, nesse sentido, como principais
instrumentos, o espancamento, choques elétricos, afogamentos,
privações, ameaças, humilhações, intimidações psicológicas,
entre outros.
A
anistia política foi decretada no Brasil, como instituto
destinado a relegar os terrores da ditadura ao esquecimento.
Oficializava-se, assim, o perdão para aqueles que se opunham a
determinado sistema ou modelo político vigente. O que fica
dissimulado no instituto da anistia, no entanto, é uma preocupação
bem maior dos torturadores do que dos torturados, em se
resguardar. Isso porque, com a mudança dos detentores do poder,
seria possível a responsabilização pelos crimes e
monstruosidades, cometidos em nome do regime da ditadura. Com a
anistia, ficou assegurada a garantia da impunidade para essas
pessoas.
Este sentimento de impunidade, desfrutado, por muito tempo,
pelos torturadores, consolidou a tortura como instituição
nacional. Um fato para o qual não podemos fechar os olhos é o
estreito relacionamento da prática de tortura com o desempenho da
atividade policial. Esta não é uma exclusividade brasileira. São
inúmeros os casos, nas mais diversificadas formas protagonizadas
pelas polícias da maior parte do Mundo.
A
tortura constituiu-se, historicamente, em verdadeira instituição
nacional e o Brasil foi um dos últimos países ocidentais a
tipificá-la como crime. A Constituição da República de 1988
estabeleceu no art. 5º, inciso III, que ninguém será submetido
à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante, dispondo no
inciso XLIII que a lei considerará crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia as práticas da tortura...,
por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo
evitá-los, se omitirem; e o Brasil ratificou, desde 1989, a
Convenção Contra a Tortura e Outras Penas Cruéis (1984) e a
Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985).
Para
cumprir o texto constitucional e os compromissos internacionais
assumidos, foi introduzido, no ordenamento jurídico brasileiro, a
lei 9455/97. Isso aconteceu, logo após a enorme repercussão
nacional e internacional do episódio da Favela Naval, em
Diadema/SP, que tipificou o crime de tortura. Até então,
inexistia na legislação repressiva penal anterior, a lei
9455/97, conduta delituosa tipificadora da prática da tortura.
Sendo assim, policiais, não raras vezes, eram condenados por
crimes definidos legalmente, como abuso de autoridade, lesão
corporal ou sob outro nomem
juris, mas que configuravam métodos e práticas de tortura. A
tortura era prevista somente como circunstância agravante ou
qualificadora de certos crimes praticados com violência (homicídio,
lesões corporais, estupro, roubo, etc.), quando o delito se
revestia de extrema crueldade ou para infligir, deliberadamente,
sofrimento à vítima.
O
sociólogo João José Leal, ao abordar o tema, faz distinção
entre dois tipos específicos de tortura, as quais textos de
convenções e acordos internacionais procuram atingir: a tortura
policialesca ou inquisitorial, praticada por motivo meramente
funcional ou instrumental e a institucional, utilizada por motivos
político-ideológicos. Em relação à tortura policialesca,
assim se refere:
“A
tortura policialesca, geralmente praticada nos porões dos presídios
e cadeias, por funcionários estatais subalternos (agentes,
investigadores, comissários, carcereiros, e policiais militares),
conta com o apoio disfarçado ou com a conivência declarada de
magistrados, membros do Ministério Público e autoridades
policiais. É tolerada com base no entendimento de que, em relação
a certos suspeitos, o único meio de obter prova material e da
autoria do crime é através do castigo físico ou mental. É
comum, no discurso policial, a afirmativa de que, ‘com ladrão,
só na porrada’. Também é comum a concordância de leigos
(principalmente de vítimas de crimes contra o patrimônio) com a
prática da tortura, sob a justificativa que é o único meio para
se chegar a resultados satisfatórios no campo da investigação
policial. Outros, ainda, numa atitude sinistra e de inconcebível
cinismo moral, entendem que a tortura ainda constitui o justo
castigo pelo crime cometido”.
É
papel das organizações policiais e sociedade civil demonstrar
que essas práticas não são isoladas e que persistem, em boa
parte, devido à falta de empenho político para investigar,
afastar, processar, julgar e punir quem comete tortura. Sem querer
contemporizar, antes de nos empenharmos em culpabilizar os
eventuais autores da tortura, é necessário admitir o controle
civil efetivo, autônomo e independente das polícias, como fator
inibidor e preventivo da tortura e violência policial. Sem contar
a necessidade premente de estudos para diagnosticar as causas e
para o desvelamento de alternativas construtivas, na erradicação
de todas as formas de tratamentos cruéis, desumanos e de tortura.
Também
se faz fundamental o investimento prioritário em qualificação e
treinamento profissional, métodos científicos de investigação,
tecnologia e pesquisa científica multidisciplinar. Deve-se
contemplar, dessa maneira, os profissionais da base das polícias;
aqueles que executam as atividades (“o
fazer polícia”). Pois é nesse campo que ocorrem os
entrechoques e conflitos multivariados dos direitos e interesses
dos cidadãos, sob a ótica do respeito e promoção dos Direitos
Humanos, como via de mão dupla.
A
polícia constitui-se no aparelho repressivo do Estado e tem sua
atuação pautada no uso da violência legitima. É difícil
admitir, mas existe, na sociedade, uma demanda para a prática da
violência policial. É esta violência que serve à sociedade,
dentro de diversos aspectos e circunstâncias, mas, especialmente,
no tocante à solução dos crimes contra o patrimônio e na
repressão das classes perigosas.
Decorre
dessa complexidade, a enorme dificuldade do Estado, no âmbito da
Segurança Pública, no que se refere ao controle da violência
legitima, do qual decorreria, consequentemente, a extinção do
uso ilegítimo da força, por parte das organizações policiais.
Este é um problema grave que deve ser solucionado pelos muitos
setores da sociedade organizada. A violência ilegítima,
praticada por agentes públicos que detêm o monopólio legitimo
do uso da força, coloca em risco e ameaça, substancialmente, as
estruturas democráticas necessárias ao Estado de Direito.
A
democracia é questão de extrema importância, neste contexto,
pois a violência policial, inevitavelmente, produz as mais graves
violações aos Direitos Humanos e à cidadania, que são
elementos do regime democrático. A função de manter a ordem,
prevenindo e reprimindo crimes, tem os limites de sua atuação,
dentro dos padrões de respeito aos direitos fundamentais do cidadão,
como o direito à vida, à liberdade, à segurança e à sua
integridade física e mental.
A
criminalização da ação policial não produzirá, por si só,
os efeitos desejados pela sociedade, no tocante à redução da
violência policial. Vale ressaltar que a violência é sua ambiência
laborativa e sua atuação percorre, na maioria das vezes, a
fronteira da ilegalidade. Mesmo nas situações em que a violência
empregada seja legítima, uma atitude e comportamento irrefletidos
podem ser interpretados como pratica
de tortura. Podem
mesmo levar o policial à efetiva prática dessa insidiosa violência,
até mesmo por desconhecimento dos limites precisos de sua atuação
legal. A especialidade da instituição policial é a violência:
preveni-la, praticá-la, testemunhá-la,
socorrer e reprimir seus efeitos e, ainda, incipientemente,
pesquisá-la e estudá-la.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho
de 1990), anterior, portanto, à lei de crimes de tortura, em suas
disposições sobre crimes praticados contra a criança e o
adolescente, estabeleceu em seu art. 233
in verbis:
“Submeter
criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância
à tortura:
Pena
– reclusão de um a cinco anos.
§
1º - Se resultar lesão corporal grave:
Pena
– reclusão de dois a oito anos.
§
2º - Se resultar lesão corporal gravíssima:
Pena
– reclusão de quatro a doze anos.
§
3º - Se resultar morte:
Pena
– reclusão de quinze a trinta anos.”
O
art. 233 do Estatuto teve sua aplicabilidade sustentada por
estreita maioria de votos, em julgado de Habeas Corpus do Excelsio Pretório, que considerou tipificada a
tortura no Direito Penal, nos caso em que a vítima fosse menor de
18 anos de idade. Deixou, entretanto, um vácuo, pois pecou em não
definir o que era tortura, na acepção legal, no que consistia,
quais as ações e omissões que lhe davam corpo. Ficou silente a
este respeito, prejudicando, substancialmente, a efetiva
responsabilização penal pela prática delituosa.
A
Lei 9.455, de 07 de Abril de 1997, regulamenta, em suas disposições,
e estabelece as espécies de condutas, representadas em três
principais verbos (constranger, submeter, e omitir) que exprimem ação
e omissão, transcrevemos ipis
literis:
“Art. 1º - Constitui crime de tortura:
I – Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça,
causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a)
Com o fim de obter informação, declaração ou confissão
da vítima ou de terceira pessoa;
b)
Para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c)
Em razão de discriminação racial ou religiosa;
II – Submeter alguém, sob sua guarda,
poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a
intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar
castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena – reclusão de dois a oito anos.
§ 1º - Na mesma pena incorre quem submete
pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico
ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei
ou não resultante de medida legal.
§ 2º - Aquele que se omite em
face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las,
incorre na pena de detenção de um a quatro anos.”
A
delimitação legal daquilo que consiste a tortura no tipo penal
inicia-se pelo vocábulo constranger, que significa “forçar”,
“coagir”, “violentar”, ao passo que submeter é
“dominar”, “vencer”, e “subordinar”. O constrangimento
e a submissão têm que ser, necessariamente, exercidos sobre
determinada pessoa, empregando-se violência ou grave ameaça e
produzindo-lhe sofrimento físico ou mental. O elemento subjetivo
ou psicológico, denominado, pelo Direito Penal, de dolo do autor da ação delituosa, é um aspecto comum em todas as
modalidades típicas de tortura (seja a de constranger, submeter
ou omitir), onde emerge a vontade e a consciência de que se está
torturando a vítima.
Assim,
constitui uma das modalidades do crime de tortura (art. 1º, I), a
prática de violência ou ameaça causadora de sofrimento físico
ou psíquico a uma pessoa, visando obter uma confissão, informação
ou declaração; ou forçar uma pessoa a praticar uma ação
criminosa, por ação ou omissão ou, ainda, com objetivo de
discriminá-la racial ou religiosamente.
Outra
modalidade tipificada na Lei (art. 1º, II) se caracteriza pela prática
de violência ou ameaça que cause intenso sofrimento físico ou
psíquico a uma pessoa que esteja sob a guarda, poder ou
autoridade de quem pratica o ato de tortura; que determine castigo
a vítima ou medida de caráter preventivo (que seria uma das
formas de castigo ou corretivo, infligido à vítima da tortura
para que não volte a praticar a infração ou crime, onde figura
como acusada de sua prática).
É
de vital importância, para dissipar as dúvidas, esclarecer como
configuram-se a violência e a grave ameaça, capituladas na lei
9455/97. A violência é o emprego de força física, ocasionando
a eliminação da resistência do ofendido. A grave ameaça
consiste na manifestação do propósito de causar à vítima de
tortura, um mal futuro que se consumará, havendo a vontade do
autor da ameaça.
Outros
aspectos de igual relevância são os que dizem respeito a
“guarda”, “poder” e “autoridade”, de conceituações
de natureza penal. No que se refere à “guarda”, se enquadram
todas as hipóteses em que a lei ou ato judicial tenham incumbido
alguém de dar proteção e amparo a uma pessoa, compreendendo
também qualquer situação de fato em que se tenha atribuído a
guarda a alguém, desde que esteja demonstrada tal situação.
Existindo a relação jurídica de sujeição do sujeito passivo
ao torturador, fundada em vínculo de direito público ou privado,
presume-se o exercício ou idéia de poder.
O
conceito de “autoridade”, em que se enquadra o policial
militar, no exercício de suas funções, esta disposto no art. 5º
da Lei nº 4898/65 (abuso de autoridade), o que permite a integração
da legislação penal sob exame: “Art.
5º Considera-se autoridade para os efeitos desta lei, quem exerce
cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou
militar, ainda que transitoriamente ou sem remuneração”. Sendo
assim, esta é uma das situações, em que o crime de tortura se
caracteriza como próprio; no qual o autor tem que,
necessariamente, possuir determinada qualidade, no caso do
policial militar, investido de autoridade, enquanto agente estatal
público, no exercício de suas atribuições policiais.
A
Lei 9.455/97 (do crime de tortura), nos parágrafos 1º e 2º do
art. 1º dispõe que:
Ҥ
1º - Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a
medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio
da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de
medida legal.
§
2º - Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o
dever de evitá-las ou apurá-las incorre na pena de detenção de
1 (um) a 4 (quatro) anos”.
No
parágrafo 1º, há um aspecto relacionado com os policiais
militares no exercício de suas funções, no que se refere à
pessoa presa; expressão que deve ser interpretada, o mais
abrangentemente, considerando-se a pessoa que esteja em prisão
temporária ou em qualquer outra forma de prisão cautelar, e também
quem está preso, por decisão de sentença condenatória.
A
modalidade de prisão em flagrante é aquela em que o policial
militar se depara, no exercício de suas atividades; tida como
prisão cautelar, não podendo, igualmente, o preso ser submetido
a sofrimento físico ou psíquico. Neste contexto, é previsível
que o dispositivo se aplique, também, para os casos de apreensão
em flagrante, por prática de ato infracional (conforme
estabelecido na Lei 8.069/90 Estatuto da Criança e do
Adolescente). Como já mencionado, a interpretação e aplicação
tendem a ser mais abrangentes, em face de situações que culminem
com a privação ou restrição da liberdade.
A
última forma de consumação do delito de tortura é aquela
cometida por omissão, cujo conteúdo está transcrito no parágrafo
2º do art. 1º. A omissão, doutrinariamente, não é somente
“deixar de fazer”, ou inércia ou inação,
omitir é o não fazer aquilo que se tinha o dever de fazer.
Estarão sujeitos à punição prevista nesta Lei, tanto aquele
que se omite em evitar ou opor-se às condutas de constrangimento
e submissão que possibilitam continuidade, pelo torturador,
impedindo que o crime se consume, bem como aquele que, tomando
conhecimento, deixa de apurar, devidamente, para fins de
responsabilização penal. Como podemos perceber, em qualquer das
circunstâncias declinadas, o agente tem o dever de
garantir e resguardar a integridade física e mental da pessoa
humana.
A
conduta omissiva consiste no hesitar em adotar providências para
promover a apuração da prática de tortura de que se teve
conhecimento, detendo o agente público omisso o dever legal de
proteção e vigilância da pessoa sob sua guarda, poder e
autoridade.
No
parágrafo 4º do art. 1º da Lei em análise, são previstas
situações cominadas como agravantes, que podem redundar em
aumento de pena, de um sexto a um terço. Entre tais situações
agravantes, está a qualidade de agente público sujeito ativo da
prática da tortura. A outra recai na condição da pessoa que
sofreu a tortura (criança, adolescente, gestante, ou deficiente);
e a última, se o crime foi praticado, mediante seqüestro.
Observamos, no entanto, ter ficado de fora a figura do idoso que,
sob nosso ponto de vista, deveria ter sido incluída, levando-se
em conta sua fragilidade e debilidade física e mental.
A
lei trata o crime de tortura com o rigor necessário, com vistas a
coibir, inibir, e prevenir sua prática. No entanto, em se
consumando o crime e transitada em julgada a sentença condenatória,
estabelece o parágrafo 5º do art. 1º que o agente público
atingido perderá seu cargo, emprego, ou função pública. Além
disso, prevê sua interdição para o exercício daqueles, pelo
dobro do prazo da pena aplicada, equivalendo à proibição de
concorrer a cargo, emprego, ou função pública, pelo prazo
fixado. Independente do quantum
da pena aplicada, são efeitos automáticos da condenação.
Como
previu a Constituição Federal, em seu inciso XLIII do art. 5º,
o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou
anistia, o que ficou estabelecido nos parágrafos 6º e 7º da lei
em comento. Dispôs, ainda, que o regime inicial para cumprimento
da pena é fechado, permitindo a progressão do regime, o que
corrigiu distorção no que preceituava a Lei nº 8.072/90, de
Crimes Hediondos, que, anteriormente, estabelecia o cumprimento
integral em regime fechado.
O
instituto da inafiançabilidade, previsto no parágrafo 6º da Lei
da tortura, principalmente de ordem prática nas atividades
policiais, é o relativo às exceções abertas à imposição de
prisão em flagrante delito. Ele faz com que, em tratando-se de prática
de tortura, as exceções da prisão em flagrante fiquem reduzidas
somente ao Presidente da República, aos Governadores de Estado,
Chefes de Governos estrangeiros e suas comitivas e Diplomatas
acreditados perante o Governo brasileiro.
O
crime de tortura foi concebido como comum, o que fará surgir
questões relativas à competência de julgamento, quando o autor
for policial militar no exercício de suas atribuições: se pela justiça comum, ou pelo foro criminal especializado da Justiça Militar. Isso porque
inexiste a tipificação do delito de tortura na legislação
penal militar. De qualquer forma, antes mesmo da edição da lei
que criminalizou a prática da tortura, já existia o conflito
sobre a competência, quando, então, se discutia as disposições
do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ora
revogadas.
Concluímos
que a Lei atribui acentuado rigor, na repressão à prática da
tortura, ao passo que contribui para evitar e promover a
desmoralização da autoridade pública, ao assumir condutas
arbitrárias e violentas contra aqueles que têm o dever de
proteger e preservar a integridade física, psíquica e moral.
Notadamente,
esta prática vem sendo implementada em todos os Estados-nação.
É o que podemos verificar em outras legislações, a exemplo da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de
dezembro de 1948, em seu art. 5º. O mesmo ocorre na Convenção
Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes, adotada pela resolução nº 39/46, da Assembléia
Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1984. Outro
exemplo é a Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a
Tortura, adotada e aberta à assinatura no XV Período Ordinário
de Sessões, da Assembléia Geral da Organização dos Estado
Americanos, em Cartagena das Índias (Colômbia), em 9 de Dezembro
de 1985.
Podemos
observar que todos estes instrumentos visam a erradicação e punição
da tortura, sendo também um pouco anteriores à Constituição
Cidadã de 1988, que também consagrou como princípio fundamental
a suspensão, proibição e vedação absoluta à prática da
tortura. Só essa constatação bastaria para que ficássemos
perplexos e atônitos. O Brasil já era país signatário de
tratados e convenções que punem e erradicam a tortura, desde
1989. Também sua Constituição, promulgada em 1988, prevê a
proibição desta prática. No entanto, somente 9 (nove) anos
depois, foi promulgada, no País, uma lei que tipifica e pune o
crime.
É
importante frisar que a tortura era
instrumento corrente para reprimir, castigar, intimidar,
humilhar e matar pessoas, no período ditatorial. E, mesmo após o
término desse regime, é forçoso diagnosticar que o Estado
Democrático de Direito ainda está longe de se completar, jurídica
e socialmente, uma vez que até mesmo os direitos inerentes à
pessoa humana padecem de legislação específica para sua efetiva
aplicação.
Alguns
estudos sobre práticas de tortura e de violência policial,
desenvolvidos pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, da
Universidade de São Paulo, demonstram que as práticas policiais
de natureza autoritária têm acontecido, independentes do regime
político. Elas se devem a uma continuidade de métodos utilizados
no regime autoritário, que a transição política não conseguiu
extinguir, pelo fato dos governos de transição terem tratado as
instituições policiais como organismos neutros, nos quais a
democratização política atacaria as raízes autoritárias. Esta
continuidade, entretanto, possibilitou a adequação de práticas
autoritárias dentro de um governo democrático, gerando, com
isso, a existência de um “regime de exceção paralelo”.
Para
ajustar os órgãos de segurança pública à realidade democrática,
é importante, antes de tudo, que a sociedade descubra que tipo de
polícia ela quer: uma polícia que respeite os direitos do cidadão,
que exista para dar segurança e não praticar violência ilegítima;
ou uma polícia corrupta (que livra de flagrantes os filhos das
classes abastadas) e arbitrária (que utiliza a tortura e o extermínio,
como métodos preferenciais de trabalho e que atinjam, na grande
maioria, as classes populares).
No
plano da organização policial, a proteção da pessoa humana impõe
o revigoramento da vida democrática, pela participação direta
dos policiais, na esfera decisória. Ainda hoje, contudo, as
instituições policiais encobrem, com freqüência, a efetiva
perpetuação da oligarquia política institucional, herança de
um modelo organizacional centralizador e de estrutura hierárquica
excessivamente verticalizada. Tal quadro impossibilita e dificulta
mudanças mais dinâmicas e ágeis para sua verdadeira vocação
de proteção e defesa do cidadão e, sobretudo, de respeito e
promoção dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Atualmente,
impulsionados pelo processo de tomada de consciência de sua própria
cidadania, os policiais que operam nas atividades de linha ou
operacional estão alinhando e incorporando a diretriz que emana
da essência do “ser policial”. Neste sentido, a filosofia é
de que esses policiais sejam garantidores dos direitos
fundamentais das pessoas, como mediadores e administradores dos
conflitos sociais, nas violações e transgressões da lei;
mantendo sempre a serenidade de espírito, a firmeza de caráter,
no convívio com as grandezas e misérias da condição humana.
De
resto, é possível afirmar e até prognosticar que o que foi
construído, ao longo da existência dos órgãos de segurança pública,
principalmente as Polícias Militares, passa por uma fase de
transição e reconstrução. A visibilidade das mudanças ainda
é prejudicada pela estrutura organizacional, que padece de
entropia acumulada pela sua trajetória histórica. Por outro
lado, a cidadania incorpora-se, como valor, passando a fazer parte
dos princípios éticos e morais, interna e externamente. Essa
evolução possibilitou aos profissionais a reflexão e o repensar
de seu papel, enquanto sujeitos de Direito, agentes de Direitos
Humanos e garantidores das liberdades individuais e coletivas.
É
inegável que a organização militar, enquanto guardiã e
defensora do interesse público, haverá de ser remodelada,
estruturalmente, para produzir uma mudança de cultura e
comportamento. Assim, facilitará e expressará um clima
organizacional compatível com a importância e o reconhecimento
da profissão e das atividades de segurança pública e defesa
social. Estes são pontos vitais,
não só para a redução da violência e criminalidade,
mas, principalmente, para a concretização da participação
comunitária e do estabelecimento de uma cultura de paz social.
José
Luiz Barbosa, 3º Sgt PM
BIBLIOGRAFIA
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17/20.
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2.
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crimes hediondos, nos termos do art. 5º da Constituição
Federal, e determina outras providências)
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ao art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990).
Álvares,
Pércio Brasil. A criminalização da Tortura e suas implicações
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Construindo uma nova relação
2.
Polícia para quem precisa
3.
Violência policial: uma ameaça à Democracia.
Morini,
Cristiano. Toturanuncamais.org.br
1.
Direitos Humanos e Tortura
*José
Luiz Barbosa, Sargento da Polícia Militar de Minas Gerais. Presidente da Associação Mineira de Defesa e Promoção da Cidadania e Dignidade, ativista de direitos e garantias fundamentais, bacharel em direito - Artigo
apresentado no Seminário realizado em 29 de Junho de 2001.
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