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terça-feira, 2 de abril de 2013

Acervo do extinto Dops-MG revela como agiam os aparelhos repressivos em Minas e quem era o “inimigo”.


Guerra fria abaixo do Equador


Deputados da CPI visitam antiga sede da Secretaria de Segurança Pública e encontram acervo do Dops. Documentação já foi analisada pela CNV
Deputados da CPI visitam antiga sede da Secretaria de Segurança Pública e encontram acervo do Dops. Documentação já foi analisada pela CNV - Foto: Alair Vieira
Ainda que intransponível sigilo tenha soterrado por décadas inúmeras perseguições, atos de tortura e prisões ilegais e que tenha, possivelmente, havido perda e até mesmo adulteração dos documentos relativos à repressão política no Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) acredita que o resgate da documentação apresenta saldo positivo. De acordo com o relatório Direito à Memória e à Verdade, os arquivos do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG), somados aos de outros estados como Pernambuco e Rio de Janeiro, foram considerados de extrema relevância para a reconstrução de um passado nem tão longínquo.
“Pesquisas realizadas em todos esses arquivos constataram evidências de que teriam sido 'trabalhados', antes da abertura, uma vez que páginas foram eliminadas e sequências inteiras foram puladas. Mesmo assim, foram de grande utilidade para a complementação das informações e obtenção de novas”, diz o documento.
Conforme estatísticas do Arquivo Público Mineiro (APM), verificou-se que eram realizados, em média, 276 atendimentos por ano. Após liberar os documentos do Dops na internet, apenas nos primeiros três meses (de setembro a novembro de 2012), o site do APM obteve cerca de 4.386 acessos por mês, o que representou um acréscimo de 20% nas consultas realizadas pela rede.
Segundo o servidor do APM, Denis Soares da Silva, ainda hoje a busca pelos documentos é feita, em geral, por cidadãos que foram perseguidos pelo regime militar ou pelas famílias das vítimas. “Os objetivos variam muito, vai da simples vontade de conhecer os registros sobre si mesmo à tentativa de buscar reparação pelos danos causados pela ditadura, utilizando os documentos como provas em processos judiciais”, explica o servidor.
Além da importância histórica do acervo, os documentos podem esclarecer equívocos que a opacidade do tempo deixou. Denis reconhece que os documentos, em geral, trazem à tona histórias de sofrimento, de desalento e de reconciliações improváveis, mas também de reencontros. Ele se lembrou de um episódio em que uma mulher pediu para ver os documentos referentes ao pai. Para a surpresa do servirdor, tratava-se de um senhor que havia trabalhado nos aparelhos de repressão política. O conhecimento de tal fato havia ocasionado, anos antes, a ruptura da relação entre pai e filha. Ao ler depoimentos de presos políticos afirmando que o referido agente não os tratava com crueldade, que não havia praticado torturas, ela tomou a decisão de reaver o laço paterno. “Há ainda descobertas a serem feitas e elas podem mudar uma história de vida”, enfatiza.
Já se podem contabilizar também trabalhos científicos sobre os arquivos. Depois dos anistiados e seus familiares, acadêmicos e escritores são os mais interessados nos registros da polícia política de Minas. Em especial, a dissertação de mestrado Construindo o Direito de Acesso aos Arquivos da Repressão: o Caso do Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais, de Shirlene Linny da Silva, toma como estudo de caso os documentos, tendo como recorte temporal o período de 1964 a 1979. A pesquisa foi defendida em 26 de outubro de 2007 no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFMG.
A notícia se refere a Noberto Nehering, um dos líderes da Aliança Libertadora Nacional junto ao militante Carlos Marighella, que teria se "enforcado" com sua própria gravata


A notícia se refere a Noberto Nehering, um dos líderes da Aliança Libertadora Nacional junto ao militante Carlos Marighella, que teria se "enforcado" com sua própria gravata - Foto: APM
A partir do mapeamento dos registros, é possível perceber como atuavam os agentes do regime militar e quais eram os seus “alvos”. Os textos da imprensa interessavam particularmente aos militares. Ao todo, o estudo identificou 737 recortes de periódicos - o número é maior até mesmo que o de relatórios policiais (448) e o de depoimentos (475). O material de propaganda da resistência à ditadura também chegou a alcançar número considerado alto (446).
“O índice de ocorrência elevado desses termos contribui para algumas indicações importantes sobre a própria lógica de funcionamento da polícia política. A partir desses registros, a sociedade é dividida em grandes grupos: suspeitos, culpados, inocentes e aqueles que nunca tiveram 'passagem' pela polícia”, avalia a pesquisadora. Ela salienta ainda que cerca de 37% da documentação (740 pastas) são dossiês sobre a atuação de indivíduos. Denis afirma que houve casos em que um único “suspeito” foi acompanhado por quase 40 anos: “Encontramos pastas iniciadas na década de 1930 e que só foram encerradas na década de 1970”.
Comunismo - No Brasil do “Ame-o ou deixe-o”, slogan do regime militar, o inimigo em voga era o comunismo. O termo, junto à palavra subversão, tem consideráveis índices de ocorrência: 321 e 167 vezes, respectivamente. Os simpatizantes da vertente ideológica foram objeto de investigação do Dops desde 1929. Segundo a pesquisa, esse era o grande eixo da atividade da polícia política entre 1964 e 1968, destacando-se os temas relacionados ao Partido Comunista.
Os documentos referentes ao comunismo e às “ações subversivas” vão desde listas de suspeitos a depoimentos, fichas de identificação e manifestos de apoio à visão de mundo comunista. Depois da década de 70, o termo “sindicalismo” passa a ser também recorrente, “evidenciando a vigilância social sobre o mundo do trabalho e sobre os trabalhadores, especialmente os que integravam entidades organizadas”, segundo Shirlene Linny da Silva.
Em nome da segurança nacional a investigação da polícia política beirou a "paranoia"


Em nome da segurança nacional a investigação da polícia política beirou a "paranoia" - Foto: APM
Pode-se ter uma ideia aproximada desta vigilância e da “paranoia” dos aparelhos repressivos por meio do relato constante na pasta 4708, rolo 69, documento 3: “Chegou ao conhecimento dêste Cmdo que há grande quantidade de columbófilos (…) operando no território dêste Estado e que elementos comunistas se servem dêsse mêio para comunicações entre si. (…) Esses fatos, se confirmados, indicariam uma ameaça à segurança pública”. O Ministério da Guerra solicitava, neste documento, investigações e providências contra um cidadão de Sete Lagoas (Central) que criava pombos-correio para competição.
Um aspecto curioso em relação aos documentos, ainda de acordo com o estudo, reside no fato de que os arquivos do período posterior a 1976 passam a ser escassos. Coincidentemente, a Lei da Anistia (Lei Federal 6.683, de 1979) é válida para os crimes de natureza política ocorridos entre 1971 e 1979. Sendo assim, os agentes responsáveis por atos de tortura, assassinatos, ocultação de cadáveres ou prisões ilegais poderiam ser julgados e condenados, caso houvesse prova de que tais atrocidades foram cometidas fora do prazo estipulado pela lei.

Esta é a segunda da série de matérias sobre os arquivos do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais (Dops-MG). O processo de abertura dos documentos que registraram as atividades da repressão política no Estado será abordado ainda em outra matéria a ser publicada na próxima quinta-feira (4/4).

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