O desembargador Márcio de Moraes, que responsabilizou a União pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, comenta a sentença histórica e diz que o país ainda não se livrou do fantasma do autoritarismo
Branca Nunes
Naquele 27 de outubro de 1978, até os mais incrédulos tiveram de admitir que ainda existiam juízes no Brasil. Em plena vigência do Ato Institucional n° 5, Márcio José de Moraes condenou a União pela prisão, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog. Formado na turma de 1968 da faculdade do Largo São Francisco, depois de cinco anos de muito estudo e nenhuma militância política, esse paulista de Jacareí era apenas um magistrado disposto a cumprir seu dever quando o destino colocou em suas mãos um processo cujo desfecho mudaria o curso da história. Hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, Moraes ressalva que o país não está imune a um tipo de autoritarismo perseguido por líderes que trocaram a farda pela fantasia de defensor do povo, mais adequada ao discurso populista. Aos 68 anos, o juiz que fez a lei impor-se ao AI-5 mantém em seu gabinete no 22º andar do prédio localizado na Avenida Paulista a Olivetti Lettera 22 com a qual redigiu a maior parte da sentença histórica. Além dos inevitáveis calhamaços sobre assuntos jurídicos e alguns livros que identificam um apaixonado torcedor do São Paulo, completam a decoração um cartaz com os versos de Ouvir Estrelas, poema de Olavo Bilac, imagens de São Francisco de Assis e de São José e, sintomaticamente, uma estatueta de Dom Quixote. Na entrevista a VEJA, uma das raríssimas concedidas nestes 25 anos, Moraes afirma que o caso Herzog não se encerrou com a expedição, em março passado, do novo atestado de óbito, que atribui a morte do prisioneiro a lesões e maus-tratos sofridos durante interrogatórios nas dependências do extinto DOI-Codi. Para ele, o drama só terá chegado ao fim com a identificação dos culpados.
O que mudou no caso Herzog com o novo atestado de óbito? O atestado é uma decorrência natural da sentença proferida em 1978, que já invalidava a versão oficial do enforcamento e do suicídio. Decidi anular o exame necroscópico porque havia sido feito por um só perito, quando a lei exigia no mínimo dois. Harry Shibata, que subscreveu o documento junto com o também médico legista Arildo de Toledo Viana, assinou o laudo sem sequer ter visto o corpo de Vladimir Herzog. Como ele próprio admitiu em juízo, essa era na época a praxe no Instituto Médico Legal de São Paulo. O novo atestado encerrou uma etapa desse episódio. Mas acredito que o caso só estará terminado depois da abertura de um inquérito policial para descobrir os autores do crime, como determinei na sentença ao pedir o cumprimento do artigo 40 do Código de Processo Penal. A não execução dessa ordem judicial configura omissão do Estado.
Com o arquivamento do processo, quem pode tomar essa providência? Basta que o Ministério Público Federal peça o cumprimento dessa ordem transitada em julgado. Ou mesmo a família. Não só os diretamente envolvidos no caso Herzog, mas todos os que tiveram alguma ligação com a ditadura militar precisam ter seu papel revelado.
Ivo Herzog, filho do jornalista assassinado, acha que o presidente da CBF, José Maria Marin, deve ser afastado da vida pública pelos ataques feitos ao pai pouco antes da prisão e morte. O senhor concorda? O essencial é que seja apurada a responsabilidade histórica dessas pessoas, e não só de militares ou congressistas. Muitos empresários que hoje posam de arautos da democracia eram aliados do regime. A participação deles, o apoio financeiro, o apoio à tortura, tudo isso deveria ser revelado.
O senhor acha que a Comissão da Verdade deve investigar todos os crimes, inclusive os praticados por movimentos de esquerda que se engajaram na luta armada? Como a comissão não poderá investigar minuciosamente todos os crimes ocorridos durante a ditadura militar, deve concentrar-se nos praticados pelo Estado. Os assassinatos, roubos e assaltos à mão armada cometidos por grupos de esquerda foram crimes comuns. A gravidade dos cometidos pelo Estado é maior porque foram crimes institucionais, oficiais. Lamentavelmente, a Lei da Anistia abrangeu o crime de tortura que, para mim, é um crime de lesa-humanidade, não suscetível à prescrição. Seria como anistiar o genocídio.
A Olivetti Lettera 22, com a qual redigiu a maior parte da sentença
Antes do caso Herzog, o senhor fazia restrições ao regime militar? Quando ocorreu a revolução de 1964, eu não tinha uma opinião política formada sobre a situação política – em alguns aspectos, até simpatizava com os militares. Não considerava João Goulart um bom presidente. Isso começou a mudar quando percebi que aquela história de restabelecer a democracia era falsa. Na faculdade, havia um clima de efervescência política, mas eu procurava não me envolver. Como estava em São Paulo para estudar, via aquela agitação com certo preconceito. Nós qualificávamos de arruaceiros os que militavam no movimento estudantil, e eles nos chamavam de alienados. Ou alienas, como muitos deles preferiam. No fundo, talvez eu tivesse medo de ver aflorar meu lado político.
Só aflorou com o caso Herzog? Embora se falasse muito em tortura e morte de presos políticos, não queria acreditar que aquilo tudo pudesse ser real. Mudei de ideia ao saber da morte de Vladimir Herzog. Não dava para engolir a história de que ele havia se apresentado espontaneamente ao DOI-Codi e que, no mesmo dia, decidiu suicidar-se. Essa tragédia está realmente acontecendo e não fiz nada, disse a mim mesmo. Uma semana depois, participei do ato ecumênico na Praça da Sé, que ficava perto do meu escritório de advocacia. Queria de alguma maneira me redimir dos anos de omissão, mas ainda estava preso a certas amarras. Assisti a tudo de uma pastelaria que ficava próxima à catedral. Caso a polícia invadisse a praça, poderia dizer que estava lá só para comer pastel. Havia uma mistura de tensão e emoção no ar, não só pela possibilidade de intervenção dos militares, mas por ser a primeira manifestação abertamente hostil ao regime depois de tantos anos de silêncio.
O senhor se surpreendeu quando soube que iria julgar o processo que Clarice Herzog moveu contra a União? O processo deveria ser julgado pelo juiz João Gomes Martins, titular da 7ª Vara. Como substituto, acompanhei a elaboração da sentença e participei como ouvinte dos depoimentos das testemunhas, mas não podia imaginar que o processo acabaria nas minhas mãos. Repentinamente, um mandado de segurança impetrado pela União proibiu a leitura da sentença do Dr. João. Os militares acreditavam que, por estar às vésperas da aposentadoria compulsória, ele não teria nada a perder e poderia decidir contra os interesses do regime. Eu tinha 33 anos e uma carreira inteira pela frente. Num primeiro momento foi um choque. Mas também senti que estava preparado. Como advogado de banco, havia estudado profundamente o tema da responsabilidade civil. Sabia qual era o caminho a seguir.
Em qual momento o senhor resolveu condenar a União? As provas eram irrefutáveis. Os jornalistas Rodolfo Konder e George Duque Estrada, que estavam presos no DOI-Codi no dia da morte de Vladimir Herzog, ouviram os sons que vinham da sessão de tortura. Eles viram o amigo. Mais: o corpo foi encontrado em suspensão incompleta. Se as pernas tocam o chão, o suicídio é impossível. Ao contrário do que alegavam os militares, o cinto com o qual Herzog teria se enforcado não fazia parte do macacão usado pelos presos. Isso para citar apenas algumas provas. Só mais tarde entendi que minha convicção íntima havia nascido na Praça da Sé, três anos antes, no dia do ato ecumênico.
O Judiciário era muito pressionado pelos militares? A Justiça Federal de primeira instância foi criada em 1965 para ser uma espécie de Justiça da ditadura militar. Com exceção dos poucos concursados, entre as quais me incluo, os juízes eram nomeados por ato do presidente da República, depois de indicados pelo ministro da Justiça. Por isso, os militares raramente precisavam recorrer a pressões ostensivas. Mas o clima opressivo era evidente para quem divergia do regime ou ousava contrariar o governo.
A revogação do AI-5 estava marcada para 1º de janeiro de 1979. Por que o senhor não esperou essa data para anunciar a decisão? Sabia que o valor da sentença se amparava em dois pilares. Primeiro, deveria ser tecnicamente inatacável, científica, profunda, não panfletária e sem adjetivos ou declarações políticas. Segundo, teria de ser publicada ainda na vigência do AI-5 para não ser reduzida a um mero ato judicial.
Qual era o seu estado de ânimo enquanto escrevia a sentença? Sentia muito medo. Num primeiro momento, fiquei tão atormentado imaginando o que teria acontecido com Vladimir Herzog que não conseguia dormir. Só tive um pouco de paz quando separei a imaginação da realidade presente e me concentrei no dever judicial. Escrevi a sentença durante as férias. Mandei minha família para a casa dos meus pais em Jacareí e trabalhei durante 20 dias, dia e noite, inclusive nos fins de semana. Não conversei com ninguém, foi um trabalho solitário.
O desembargador Márcio José de Moraes, em seu gabinete no 22º andar do Tribunal Regional Federal da 3ª Região
Por que o senhor evitou comentar esse episódio durante tanto tempo? <Como já disse, sentia muito medo. Achava que, quanto mais aparecesse na imprensa, maior seria o risco de sofrer ameaças ou retaliações. E também porque não queria personalizar a sentença. Não era uma decisão pessoal, mas do Poder Judiciário como órgão do Estado. O juiz na ribalta passa a ser afetado por defeitos comuns em seres humanos ─ egoísmo, narcisismo, essas coisas. Naquela época, soube que o presidente Ernesto Geisel e o ministro da Justiça, Armando Falcão, conversaram sobre a hipótese de me aplicarem alguma forma de punição. O próprio Geisel encerrou o assunto ao avisar que não pretendia cassar mais ninguém do Judiciário.
Passados 25 anos, o Legislativo e o Executivo demonstram pouca simpatia pelo Poder Judiciário, que também vem colecionando conflitos internos. O que houve? Embora seja mais aberto, participativo e mais próximo da cidadania, o Judiciário vive uma época de baixa autoestima. Os dirigentes da magistratura, corregedores e presidentes de tribunais superiores estão impregnados de irresponsabilidade e sofrem de incontinência verbal. Não medem os efeitos exercidos por suas declarações sobre os juízes de primeira instância, ainda em formação, que compõem a base que sustenta a luta da magistratura. Não se pode apresentar o Judiciário como um poder infestado de bandidos, porque essa generalização é falsa. Além disso, existe hoje uma supervalorização dos números e estatísticas. Isso resulta em cobranças baseadas exclusivamente na quantidade de ações que são julgadas, em detrimento da qualidade dos julgamentos.
O Brasil se livrou de vez do fantasma da ditadura? Creio que não. Daí a importância da memória, da verdade, das discussões a respeito daquele período. Podem até parecer muito remotas para as novas gerações, mas são essenciais para impedir que situações históricas semelhantes ressurjam com outras vestimentas, outras nuances que camuflam a mesma violência. Acho difícil a volta da ditadura explícita, fardada. Mas existe o risco da ditadura travestida, da ditadura populista que já desponta em diversos países da América do Sul. A ditadura de um partido só, a ditadura do simpático, dos fundamentalistas, dos que se vestem de povo e fazem tudo para amordaçar a oposição supostamente para o bem desse povo. Eles tentam até desqualificar um julgamento do Supremo Tribunal Federal, que respeitou todos os direitos constitucionais de ampla defesa, porque se dizem defensores dos oprimidos.
O senhor parece referir-se aos desdobramentos do processo do mensalão. Existem semelhanças entre o caso Herzog e o julgamento em fase de conclusão no STF? Ambos contribuíram para a afirmação da democracia e do Poder Judiciário. A sentença do caso Herzog fez com que a população voltasse a acreditar na Justiça e foi um passo adiante no caminho da redemocratização. Aquela decisão reconheceu, em nome do Estado, que ocorriam sequestro, tortura e morte de presos políticos. O mensalão mostrou que todo brasileiro tem que pagar pelo crime que cometeu, independentemente do cargo que ocupa e da influência que tem no governo.
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