CONSTITUIÇÃO E PODER
No Brasil, sempre buscamos uma boa razão para limitar o direito do cidadão de exercer o seu direito ao sufrágio. Por aqui, a raça, o sexo, ou a falta de dinheiro, já foram fatores que limitaram o exercício pleno da cidadania. No século XIX, o grande jurista do Império, Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente, certamente colhido pelo contexto em que vivia, não teve pejo de declarar legítimas as limitações ao exercício do sufrágio pelo que acreditava ser um conjunto de “incapacidades resultantes do sexo, da menoridade, da demência, da falta de luzes e da ausência das habilitações, que convertessem o voto em um perigo social”[1].
Contudo, já vão longe os tempos em que o negro, a mulher, ou o pobre não podiam exercer seus direitos políticos. Contemporaneamente, sufrágio geral, ou princípio da universalidade, ou da generalidade, em matéria eleitoral quer significar, em primeiro lugar, que o simples fato de o indivíduo pertencer ao povo de um Estado já lhe confere o direito de votar e ser votado, de eleger e ser eleito. Com eleições gerais, ou universais, quer-se dizer, pois, que o direito de votar compete a todos os cidadãos, excluindo-se, de regra[2], aqueles que não detenham a cidadania do país em que as eleições se verificam[3].
Por outro lado, não se pode esquecer que a capacidade, ou o direito fundamental, de um cidadão ser candidato para cargos políticos, mescla-se, certamente, com o direito de todos os eleitores de escolher determinadas pessoas para ocupar determinado cargo público[4]. Em outras palavras, o princípio da universalidade protege tanto eleitor como o candidato, vinculando uma à outra realidade.
Assim, o lado mais visível do princípio da universalidade impõe a conclusão de que, ao limitar o direito dos cidadãos votarem, direta ou indiretamente, obstaculiza-se também o direito daquele que pretende lançar-se como candidato. Entretanto, e esse é o lado menos notado do princípio da universalidade, todas as vezes que se impede alguém de se candidatar, estamos, sem dúvida, cerceando o cidadão no exercício legítimo de seu voto. A equação é de fácil entendimento: (i) se, de um lado, num universo mais restrito de eleitores, muito provavelmente, diverso será o resultado daqueles que serão eleitos; (ii) de outro, ao restringir o universo dos candidatos, com toda certeza, também se reduzem as possibilidades abertas aos eleitores.
Da mesma forma que, no passado, uma legislação muito restrita quanto ao círculo de eleitores (excluindo mulheres, pobres, ou analfabetos) comprometia o resultado quanto ao universo de candidatos com reais possibilidades de êxito eleitoral, atualmente, ao reduzir, significativamente, o universo de candidatos, o sistema eleitoral brasileiro compromete o âmbito de proteção dos direitos do próprio eleitor. Em síntese, quem cria inelegibilidades, além de limitar candidaturas, goste ou não, atinge também o voto do eleitor.
Nada obstante, sustentados num forte apelo midiático contra a política, não são poucos os que festejam qualquer espécie de inovação legislativa tendente a restringir o número de candidatos.
Como não se pode restringir o direito político de ser candidato sem comprometer o direito político de votar, aqueles que tomam a sério o direito fundamental de participação política do cidadão, facilmente, compreenderão que, ainda que uma ou outra restrição se mostre necessária, ela apenas se justificará em situações e diante de motivos de considerável relevância constitucional.
Pieroth e Schlink afirmam ainda que o princípio de que as eleições devem ser gerais é, além de tudo,caso especial do princípio da igualdade das eleições, já que aqui se estabelece e se impõe a idéia de que todos os cidadãos do Estado têm igual capacidade para eleger e ser eleito[5].
É certo, como adverte Klaus Stern, que a generalidade, ou universalidade, não implica necessariamente a impossibilidade de serem impostas restrições ao direito ao sufrágio. Tampouco implica a impossibilidade de toda espécie de diferenciação. Limitações ou diferenciações, não obstante devam ser evitadas, podem ser admissíveis, desde que exista uma causa constitucionalmente justificadora de sua existência[6]. Por exemplo, a nacionalidade tem sido, como se viu, uma exigência quase universalmente admitida como requisito à titularização e ao exercício do sufrágio. No caso brasileiro, a nossa Constituição, no artigo 14, parágrafo 2º, excluiu do universo dos eleitores tanto os estrangeiros como, durante o serviço militar obrigatório, os conscritos.
De qualquer sorte, não obstante a exigência da nacionalidade, deve-se atentar, no Brasil, à especial condição dos portugueses, conforme o artigo 12, parágrafo 1º (cito): “Aos portugueses com residência permanente no País, se houver reciprocidade em favor de brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta Constituição”.
Além disso, no artigo 14, parágrafo 1º, a Constituição já havia excluído do conjunto de titulares dos direitos políticos os brasileiros que ainda não tenham completado os 16 anos. Por sua vez, os analfabetos, conquanto possam votar, são excluídos da capacidade política passiva (artigo 14, parágrafo 4º, da Constituição). Não podem ser candidatos.
No Direito Comparado, depois de prever o sufrágio, no corpo original da Constituição, os norte-americanos através de emendas impuseram, ainda, uma série de limites aos Estados no que tange ao seu poder de impor restrição ao princípio da universalidade do sufrágio. Assim, a 15ª Emenda à Constituição norte-americana proibiu os estados-membros de impor restrições com “base na raça, cor, ou prévia condição de servidão”; a 19ª Emenda proíbe cerceamentos ao voto em razão do sexo; a 24ª impede a imposição de tributos como condição para que se possa votar (any poll tax or other tax), e a 26ª Emenda garante o direito dos cidadãos ao sufrágio quando alcancem a idade de 18 anos[7].
Entretanto, não obstante a ausência de expressa restrição ou autorização constitucional para que se imponham restrições à universalidade do sufrágio, a Suprema Corte norte-americana tem entendido razoáveis restrições impostas pelos estados-membros com base em exigência de residência mínima na circunscrição eleitoral. Com base, nesse entendimento, por exemplo, aquela Corte já teve ocasião de decidir que apenas os cidadãos residentes numa determinada municipalidade têm direito votar, considerando legítima a denegação da garantia do voto a cidadãos que residam em áreas adjacentes à cidade, mas nelas ainda não incorporadas, ainda que o município estendesse aos moradores das faixas limítrofes os seus poderes de polícia sanitária e de licença para negócios[8].
Em resumo, segundo o direito norte-americano ou alemão, o que o princípio da universalidade do sufrágio impede é a existência de exclusões ilegítimas do cidadão do processo eleitoral. Nesse sentido, mais uma vez a universalidade do sufrágio, ao apresentar-se como caso especial do princípio da igualdade no âmbito das eleições[9], proíbe o legislador, para além das próprias restrições constitucionais, de excluir das eleições grupos determinados de cidadãos por motivação política, religiosa, econômica, profissional ou social, assim como exige que todos possam o mais possívelexercer os seus direitos políticos em igualdade de condições.
A idéia de que, à luz do princípio da universalidade do voto, o legislador ordinário não pode impor exclusões ilegítimas poderia parecer despicienda no Brasil, ao argumento de que aqui as únicas exclusões são aquelas já fixadas constitucionalmente. Contudo, ao contrário do que tendemos a acreditar, a própria Constituição abre a porta para que, direta, ou indiretamente, o legislador possa impor restrições ao universo dos que possam votar ou ser votados, quando, por exemplo, estabelece os casos de perda e suspensão de direitos políticos, arrolando situações que, na sua maioria, dependem da disciplina do legislador ordinário[10].
Além disso, no seu artigo 14, parágrafo 9º, a Constituição veiculou autêntica reserva de lei qualificada, autorizando o legislador complementar a estabelecer outras possibilidades de restrição ao sufrágio passivo, na forma de “outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.
Diante desse específico dispositivo constitucional, por tudo o que se disse, a reserva de competência legislativa para restringir o sufrágio passivo deveria ser aqui, como sempre, exercido com especial senso de cautela e de autocontenção. Sinceramente não tenho certeza de que esse tenha sido o caso da Lei Complementar 135, de 2010, a chamada Lei da Ficha Limpa. Colocando de lado todas as suspeitas de inconstitucionalidades que contra ela foram levantadas, mas afastadas pelo Supremo, o fato é que, do ponto de vista, puramente político, essa nova lei, indubitavelmente, pelo extenso rol de inelegibilidades que suscita, simultaneamente, além das candidaturas que sepultou, subtraiu do cidadão muitas de suas possibilidades de escolha. Não seria exagero dizer que, no Brasil, hoje, em função da referida lei, boa parte das nossas disputas eleitorais serão decididas não nas ruas e pelos eleitores, mas, em Tribunais e por juízes e operadores do Direito. Se isso, realmente, como sustentam os defensores da Lei Complementar 135, faz bem à democracia, acredito que não demoraremos a descobrir.
Mas o Direito Eleitoral ordinário registra outros casos de restrição ao sufrágio, seja na sua forma ativa, seja na sua forma passiva. O artigo 71 do Código Eleitoral, por exemplo, arrola várias situações em que o cidadão perderá a condição de eleitor com o cancelamento de seu alistamento eleitoral, entre as quais estão a infração as regras relativas ao domicílio eleitoral, suspensão ou perda dos direitos políticos, a pluralidade de inscrição (alistamento eleitoral) ou deixar o eleitor de votar em três eleições consecutivas[11]. Logicamente, à exceção dos casos de perda ou suspensão dos direitos políticos (porque casos de restrições impostas pelo próprio texto constitucional, no seu artigo 15), todos esses motivos de exclusão da condição de eleitor, como autênticas restrições ao princípio da universalidade do sufrágio, só se justificam, se forem considerados compatíveis, constitucionalmente, entre outros princípios, com o princípio da proporcionalidade e com a proteção do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Assim, atenta à restrição ao voto imposta pela exclusão de alistamento eleitoral a quem, por exemplo, deixe de votar em três eleições consecutivas, a jurisprudência do TSE tem considerado superada a infração do eleitor que tenha justificado o seu voto (artigo 7º, do Código Eleitoral). Além disso, conforme lembra José Jairo Gomes, o Tribunal Superior Eleitoral fixou em resolução não estar sujeito à sanção do cancelamento da inscrição como eleitor o portador de doença ou deficiência que torne impossível ou extremamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais[12].
Em resumo qualquer restrição ao sufrágio, seja no que diga respeito à capacidade política ativa, seja no que respeite à capacidade política passiva, deve submeter-se ao que a teoria constitucional, contemporaneamente, designa como “limites dos limites”, entre os quais sobressaem o princípio da proporcionalidade e a garantia do conteúdo essencial do direito fundamental. No caso do sufrágio, tenho séria e honesta dúvida se a legislação do chamado “ficha-limpismo” no Brasil alcançou respeitar esses limites.
[1] Pimenta Bueno, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império, texto integral in Marquês de São Vicente, José Antônio Pimenta Bueno, op. cit., p. 265.
[2] Atentar, no Brasil, à especial condição dos portugueses, conforme o art. 12, § 1º.
[3] Degenhart, Christoph. Staatsrecht I: Staatsorganisationsrecht, p.10.
[4] Nowak, John E. et Rotunda, Ronald D. Constitutional Law. 2004, p. 1019.
[5] Pieroth, Bodo von/ Schlink, Bernhard. Grundrechte: Staatsrecht II. 16 ed., Heidelberg: Müller, 2000, p. 110.
[6] Stern, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland (Band I), 1984, p. 303/4.
[7] Tudo cfe. Nowak, John E. et Rotunda, Ronald D. Constitutional Law. 2004, p. 988/9.
[8] Ver Holt Civic Club v. Tuscaloosa, 439 U.S. 60, cfe. Nowak, John E. et Rotunda, Ronald D.Constitutional Law. 2004, p. 1007.
[9] Jarass, Hans et Pieroth, Bodo. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland: Kommentar. München: Beck, 2000, p. 657.
[10] Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
[11] Art. 71. São causas de cancelamento: I - a infração dos artigos. 5º e 42; II - a suspensão ou perda dos direitos políticos; III - a pluralidade de inscrição; IV - o falecimento do eleitor; V - deixar de votar em 3 (três) eleições consecutivas. (Redação dada pela Lei nº 7.663, de 27.5.1988) § 1º A ocorrência de qualquer das causas enumeradas neste artigo acarretará a exclusão do eleitor, que poderá ser promovida ex officio , a requerimento de delegado de partido ou de qualquer eleitor.
[12] 22.986 de 2008, art. 1ª, § 2º, cfe. Gomes, José Jairo. Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 125.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico
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